No salão de um hotel elegante, o angolano João Melo passa despercebido entre engravatados e moças bem-arrumadas em trânsito por Brasília. É um homem reservado, de blazer escuro e óculos dourados de armação fininha. Por trás de tamanha discrição, no entanto, esconde-se um dos intelectuais mais respeitados do mundo lusófono. João Melo gosta de dizer que toca vários apitos: é escritor, jornalista, professor universitário e deputado pelo partido do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), que governa o país desde a independência, em 1975. Mais: é filho de Aníbal de Melo, que participou da fundação do MPLA e lutou pelo fim da colonização portuguesa ao lado de Agostinho Neto (o primeiro presidente do país).
Confira parte da entrevista concedida à jornalista MARIANA CERATTI - Correio Braziliense - e ainda um trecho de O efeito estufa, um dos contos de Filhos da pátria:
Os filhos da pátria soma-se aos seus outros três livros de crônicas, Imitação de Sartre e Simone de Beauvoir, O serial killer e O dia em que o Pato Donald comeu pela primeira vez a Margarida, todos marcados pela sua observação do cotidiano do país, em especial o de Luanda. Quantas histórias se pode encontrar e imaginar nessa capital grande e caótica de um país em desenvolvimento?
Muitas. A pergunta é se os escritores são realmente capazes de dar conta de todas essas histórias. Felizmente, para todos nós, angolanos e africanos em geral, não faltam histórias. O desafio é dar conta dessas histórias todas. Luanda é uma cidade que eu amo particularmente, é a cidade em que cresci e realmente tem passado por uma série de transformações. É a cidade africana mais antiga ao sul do Saara, uma cidade cheia de história e histórias. É uma cidade que nos últimos anos cresceu caoticamente, desmesuradamente, por força da guerra que ocorreu em Angola de 1975 a 2002; ela foi indiretamente afetada pela guerra, porque serviu de refúgio para milhões de angolanos que fugiram de outras regiões do país. Cresceu de 500 mil habitantes em 1975 para, por baixo, 4 milhões hoje (não há censo no país desde 1970), e sem poder acompanhar esse ritmo de crescimento em termos de infra-estrutura. Agora que a guerra acabou, está-se a fazer um esforço grande para isso. de qualquer forma, Angola toda está representada em Luanda. Angolanos de todas as origens aportaram a Luanda e lá se enraizaram e dificilmente voltarão para seus lugares de origem. É um melting pot autêntico, além do mais, é uma cidade cada vez mais cheia de cidadãos de outras nacionalidades. Um grande caldeirão com problemas muito grandes, que para nós são uma matéria-prima riquíssima.
Como faz essas observações que inspiram as suas histórias?
Felizmente, como eu toco muitos apitos, tenho a sorte de ter vários contatos. Sou jornalista profissional há mais de 30 anos; além disso, como deputado, tenho a obrigação de estar em contato com as pessoas; como professor, estou com os jovens, que são sempre bastante estimulantes. E eu sempre gostei de Luanda, gosto de conhecer as cidades — mesmo as estranhas — gosto de ver não com olhar de turista, mas por dentro. E eu me considero um razoável conhecedor de Luanda. Portanto, sou bom ouvinte. Não sou muito extrovertido como pessoa, mas bom ouvinte, estou sempre atento às histórias que estão no ar. Temos que captá-las e transformá-las do ponto de vista literário. Para que uma história qualquer se transforme em literatura, é preciso um trabalho de mediação literária, esse processo que transforma os episódios do dia-a-dia em literatura. Morei muito tempo num bairro central, Maculossu, um bairro cheio de histórias, que já entrou na literatura angolana há muito tempo, grandes autores como Luandino Vieira escreveram sobre ele; mas há dois anos estou a morar em uma área de expansão da cidade, um pouco fora do centro, chamada Talatona, no Luanda Sul.
O uso da ironia e do humor é forte na sua literatura. É um recurso intencional?
Um escritor queniano, Ngugi wa Thiong’o, costuma dizer que não se pode compreender a África sem o humor. Por outro lado, não sei se foi Bernard Shaw que disse: "Humor é coisa séria". Realmente, é uma ferramenta que uso por um lado naturalmente, porque embora eu não seja extrovertido, também me considero uma pessoa com grande capacidade de ironizar, de usar o humor. Por outro lado, é um recurso deliberado para discutir, questionar, ridicularizar e desconstruir os mitos que existem em qualquer sociedade, que são importantes, mas que é bom também desfazê-los para que a própria sociedade reflita sobre si própria. Portanto, eu diria a ironia em suas diversas facetas serve para questionar uma série de verdades absolutas. Não só verdades sociais, políticas, morais, mas também verdades literárias. Brinco com isso tudo nos contos que tenho escrito.
Por que não dá para enxergar a África sem humor?
Uma observação antes de responder: África são várias Áfricas; ela não é disforme, tem vários países com suas especificidades, suas culturas. A África ao sul do Saara é baseada na civilização banto, por exemplo. No entanto, existem alguns traços comuns, como em qualquer outra região do mundo. E um dos traços comuns é a tragédia. A história de tragédias que afeta o continente desde o contato com os europeus, desde a escravatura, a colonização, as várias guerras pós-independência, a fome, as doenças, etc. Isso tem afetado muitos países. Então, para que nós sejamos capazes de sobreviver, de nos mantermos lúcidos, só o humor nos auxilia. É fundamental. Não dá para ser como os portugueses, que inventaram o fado. Nós inventamos os ritmos que nos mantêm vivos, lúcidos, esperançosos, levamos esse ritmo para o mundo inteiro. Nosso divã é o humor.
Como o senhor avalia a repercussão da sua literatura e da dos demais escritores africanos de língua portuguesa no Brasil?
Apesar de um certo discurso brasileiro no sentido de dizer que o Brasil é o maior país negro do mundo depois da Nigéria, e apesar dos laços sangüíneos inquestionáveis entre África e Brasil, não há dúvida que o Brasil conhece pouco da África, principalmente da África atual. Este desconhecimento tem dois reflexos: por um lado, gera o preconceito. Achar que a Africa é uma coisa só, por exemplo. Por outro, gera um sentimento igualmente equivocado, que é uma visão romantizada, exótica, idílica, sem conflitos internos. Isso, ao meu ver, resulta do desconhecimento. Isso, ao meu ver, não se trata de culpar ninguém, mas acho que as lacunas que existem no sistema de cultura e midiático brasileiro são talvez as maiores responsáveis por esse desconhecimento. A realidade política, social, econômica e cultural dos países africanos está pouco presente na mídia e na cultura do Brasil. E, por isso, a literatura dos países africanos ainda é pouco conhecida aqui. Mas eu noto que começa a haver um certo interesse do mercado editorial e conseqüentemente isso começa a chegar à mídia pela literatura, principalmente dos países africanos de língua portuguesa. Já há cinco ou seis autores de Angola e Moçambique que são editados por editoras importantes, portanto, começa a haver um interesse maior, o que me parece fundamental. Já existia há muito tempo, de uns anos para cá, um interesse por parte da academia brasileira, como a USP, a UFRJ, e por outras universidades, quer no Nordeste, em Salvador, na Paraíba e no Sul, como em Curitiba, por exemplo. Mas só agora as editoras começam a interessar-se. Isso talvez tenha a ver com o fato de os próprios leitores começarem a reclamar coisas novas, histórias novas, aquilo que se chama literatura ocidental, ou literatura canônica, de alguma forma vive uma crise de comunicabilidade. Então, talvez os leitores comecem a interessar-se por outro tipo de histórias. Basta ver o boom que literaturas até então desconhecidas, como a afegã, por exemplo, a indiana, sem falar já no estouro da literatura da América Latina, que é muito mais antigo. Mas começa a haver espaço para outras vozes. É claro que tudo é muito incipiente, um trabalho de formiguinha que precisa ser feito. No entanto, é possível dizer que o inverso é verdadeiro. Nós, em Angola, conhecemos pouco da literatura feita no Brasil. Algumas pessoas mais interessadas, que têm a oportunidade de viajar, essas vão tendo acesso. Mas a maior parte do público leitor não tem. Claro que a nós, escritores africanos, nos interessa ser conhecidos no Brasil porque é uma sociedade muito próxima à nossa, e não só por causa da língua. Acho que essa questão tem que ser vista de ambos os lados, tem que ser uma coisa de mão dupla, é preciso levar a literatura brasileira a Angola e a outros países de língua portuguesa.
Devolvendo uma questão que você levanta na primeira linha do seu livro:
até onde é capaz de ir a humilhação do ser humano? O senhor julga que Angola chegou nesse ponto depois de tantos anos de guerra?
Chegou praticamente ao fundo do poço. Vivemos realmente momentos muito difíceis, complicados, e só sobrevivemos, entre outras coisas, por causa do petróleo. Ele não é uma maldição, se for bem usado. E, sem dúvida, o fato de o termos nos permitiu sobreviver a todas as guerras, às agressões externas, etc. Mas a sociedade angolana chegou quase ao fundo do poço. Com exceção do setor do petróleo, a economia estava totalmente paralisada, as pessoas com grande deslocamento interno — no auge da guerra, houve 4 milhões de deslocados em uma população calculada em 15 milhões —, o país esteve na verdade dividido em dois. E a guerra não é só destruição física, mas moral, ética. As famílias desintegraram-se. Os valores morais entraram em crise. Realmente, chegamos a um ponto muito complicado. Mas além do petróleo, que nos permitiu sobreviver, além de uma liderança com uma visão moderna do país, também temos o humor, e isso nos permitiu sobreviver. E, agora, começamos a dar a volta por cima.
Como repercutiu em Angola a eleição de Barack Obama para a presidência dos Estados Unidos? O senhor está esperançoso com relação à ascensão do primeiro presidente negro daquele país? Por quê?
Certamente que em Angola isso repercutiu grandemente. Eu, pessoalmente, como cidadão angolano, como intelectual e político, estou entusiasmado. Não tenho ilusões: Obama é novo líder do império, tem interesses específicos. Mas é um evento simbólico extraordinário. Espero que, em termos de política propriamente dita, algo mude, especialmente a política externa. Estou entusiasmado sobretudo pelo significado simbólico desse evento, porque talvez marque o início de um tipo de sociedade pós-racial, não só nos Estados Unidos, mas no mundo inteiro, inclusive em África. Recentemente, comentando com alguém aqui no Brasil sobre isso, essa pessoa ficou admirada, mas depois compreendeu. Eu disse que Obama dificilmente seria eleito na maioria dos países da África, porque para os parâmetros da maioria deles, salvo dois ou três, ele é mulato, mestiço. Portanto, membro de uma minoria senão discriminada, marginalizada. Não institucionalmente, mas socialmente, politicamente. Há muitas discussões e resistências quanto ao fato de mulatos ou brancos serem membros do governo, esse tipo de coisa. Em certos setores da sociedade, posso dizer que nas massas, não há esse problema. Mas as elites sociais e econômicas têm esse tipo de problema. Por isso, dificilmente Obama seria eleito na África, mais ainda do que foi nos Estados Unidos. Espero que a vitória dele sirva para se dar um passo nessa discussão. Não é que essa coisa chamada raça deva ser negada. A experiência "racial" tem que ser assumida como memória e história, para que não se repita. Mas sem deixar de assumi-la como experiência, é preciso dar um passo adiante. Espero que isso também repercuta em África.
Trecho // O efeito estufa
"(…) Vamos aos factos: Charles Dupret era estilista. O único estilista preto!, dizia ele, como se isso acrescentasse alguma coisa à criatividade dos seus desenhos, à qualidade dos tecidos que utilizava ou ao detalhe dos seus acabamentos. O problema (ou simplesmente a questão, para não começar logo a dramatizar…) é que ele levava isso tão a peito, que o cenário de todos os desfiles era sempre totalmente preto, das passarelas aos cortinados, passando pelas cadeiras, pelas lâmpadas e todos os outros adereços. Escusaria de acrescentar que, obviamente, os próprios modelos eram também todos pretos, se não fosse necessário, pelo menos por curiosidade, evocar a abertura esdrúxula que costumava anunciar, através de um poderoso e oculto altifalante, a respectiva entrada na passarela: Senhoras e senhores, vão passar a seguir as pretas e os pretos autênticos de Charles Dupret, os únicos que são imunes ao efeito estufa!
As opções estético-epidérmicas do estilista foram consideradas uma lufada de ar fresco no amorfo panorama da moda local, o grito de Ipiranga dos jovens criadores autóctones e até mesmo uma autêntica revolução político-semiótica, digna não somente de figurar nas revistas especializadas de todo o mundo, mas também de ser estudada por Barthes e Umberto Eco, se acaso eles fossem capazes de olhar um pouco para lá (ou melhor, para cá) do Mediterrâneo. Um jornalista chegou a apodá-lo, depois de um desfile que acabou, como não podia deixar de ser, numa bruta farra, de The King of Black Style. Esse mesmo jornalista, contudo, teve uma grande maka com Dupret, posteriormente, quando num raríssimo assomo de lucidez, chamou a atenção para o facto de que os únicos que adquiriam as roupas do estilista eram brancos e, ainda por cima (melhor: inevitavelmente, por serem os mais endinheirados), gringos, pois os autóctones (em especial os de tez escura) não tinham bufunfa para essas extravagâncias (…)"
(Conto de Filhos da pátria, por João Melo, Editora Record, 2008)
http://www.correiobraziliense.com.br/divirtase/ 18/11/2008
http://www.correiobraziliense.com.br/divirtase/ 18/11/2008
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