Autor de `Firmin', Sam Savage explica a gênese de seu best-seller
Juliana Krapp
Tudo o que ele queria era poder amar a Ginger Rogers. E, por isso, sonhava em ser o próprio Fred Astaire: ter a cintura fina, as pernas compridas e um queixo que parecesse "o bico de uma bota". Mas, quando se olhava no espelho, o que via era um camarada sem queixo, peludo e minúsculo: um rato. Literalmente.
Firmin é o protagonista-roedor que dá nome ao romance de estréia do americano Sam Savage, um sexagenário aposentado que ficou famoso de uma hora para outra com seu agora best-seller, recém-lançado no Brasil pela Planeta sem o subtítulo original, Adventures of a metropolitan lowlife (algo como "aventuras de uma vida rasteira na metrópole").
Firmin é um rato bibliófilo, eis o mote. Apesar de incapaz de falar ou de se comunicar, é ele o narrador do livro. Esqueça, no entanto, as singelas características que possuem os personagens-roedores em geral, o encanto redentor de suas habilidades humanóides: Firmin está muito longe dos contos de fada ou dos desenhos da Disney. Como ele mesmo afirma, prefere um bom papo com Dostoiévski ou Strindberg, "companheiros tão sofridos" quanto ele. E "histéricos" também. "Tenho desprezo pelo velho e bonzinho Ratty de O vento nos salgueiros", resmunga nosso herói. E acrescenta: "Tenho vontade de mijar na boca do Mickey Mouse e do Stuart Little. Afáveis, sempre arrastando os pés, graciosos [o grifo é do autor], eles ficam encravados na minha garganta como espinha de peixe".
Joyce no ninho
Firmin nasceu, pela força do acaso, no porão da Pembroke Books, livraria da Boston dos anos 60. Seu ninho foi feito sobre as folhas arrancadas de Finnegans wake, de James Joyce. Filho de uma rata alcoólatra, era o mais fraco na ninhada de 13 , que disputavam avidamente as 12 tetas da mãe. Assumiu-se, logo cedo, um freak: em vez de acompanhar a família na busca por comida, preferia devorar o acervo da livraria. Primeiro, no sentido literal. Depois, no literário: torna-se um ávido leitor, requintado e solitário. Ou seja: um baita sofredor, impossibilitado pelas suas limitações físicas de se expressar como gostaria. É, no fundo, um poeta que não pode escrever sequer uma linha.
- Firmin é um ser humano em todos os aspectos, exceto no físico explica - Savage, em entrevista ao Idéias. - É um humano preso em um corpo de rato, e essa é a sua tragédia. Temos a história de um rato imaginando ser um homem, ou a história de um homem imaginando que é um rato? É claro que ele é as duas coisas. Seja como for, a trajetória do próprio livro é surpreendente. Lançado há cerca de dois anos, pela pequena editora Coffee House Press, não ganhou quase nenhum espaço na imprensa. Seu autor, ainda inédito aos 65 anos, era completamente desconhecido no meio literário. O título foi alvo, como conta o próprio Savage, de uma única resenha, "pequena mas muito favorável" no Los Angeles Times. Apenas por acaso, o texto chamou a atenção de Elena Ramirez, manda-chuva da editora espanhola Seix Barral, que decidiu comprar os direitos da obra, inclusive para a língua inglesa. Não tardou para que o livro se tornasse um estouro na Espanha e na Itália, e reconhecido como um símbolo da paixão pela leitura. Agora está sendo traduzido para várias outras línguas, e em janeiro será relançado nos EUA pela Delta Books, uma divisão da Random House, editora gigante de Nova York.
Firmin é, finalmente, amado.
- Estou surpreso e animado com as cartas que recebo de pessoas do mundo todo, tocadas com a história conta Savage, assumindo-se ainda meio zonzo com tanto sucesso.
PHD em Filosofia pela Universidade de Yale, Savage foi professor na mesma instituição por algum tempo. Ao abandonar a faculdade, largou também a filosofia. Foi então mecânico de bicicletas, tipógrafo, carpinteiro e pescador. Ele guarda lembranças especiais desta última profissão, que disse ser a mais maravilhosa de todas: pescava sozinho, em seu próprio barco. Pena que a atividade não "dava para o sustento". Ao mesmo tempo, foi ela quem lhe deu condições para criar Firmin: como, durante o mau tempo, não podia pescar, aproveitava para escrever.
- Eu sempre pensei em mim mesmo como um escritor. Na pior das hipóteses me sentia um escritor fracassado, mas, ainda assim, um escritor revela Savage, acrescentando que, antes de Firmin, havia escrito incontáveis começos de romances, sempre abandonados. Por isso mesmo, o do ratinho salvou-se por pouco: - Ele poderia também não ter passado das primeiras páginas.
A diferença deste romance para os outros, inacabados, é que Firmin parecia "já estar escrito" em sua "cabeça", conta o autor. Tanto que o deu por encerrado com apenas seis meses de trabalho.
- Não acredito que tenha criado Firmin. Eu o descobri, quase sem perceber. Quando escrevi as primeiras páginas, sabia exatamente o tipo de pessoa que era o narrador, mas não sabia ainda que era um rato - explica. Só no dia seguinte me dei conta de que aquela era a voz de um rato. Não foi uma descoberta feliz. Mas pensei: "Bem, lá vai o meu leitor".
Sonhos literários
Freqüentador assíduo do Rialto, um cinema-inferninho que exibe de westerns a filmes pornográficos, Firmin é vítima de dores de amor. Enlouquecido por Ginger Rogers, tem consciência de seu amor impossível. E mergulha em alucinações literárias: "Lia Byron. Lia O morro dos ventos uivantes. Mudei meu nome para Heathcliff. Deitava de costas. Olhava os dedos dos pés. Depois disso, me lançava ao trabalho com energia redobrada. Era Jay Gatsby", descreve o próprio.
Firmin é, sobretudo, um sonhador. Em sua imaginação, é capaz de rodopiar em uma valsa segurando a cintura fina de Natasha Rostova, de Guerra e paz. Promove, também, alguns encontros literários: até convence o depressivo Baudelaire a entrar na mesma balsa de Huck e Jim (os aventureiros do clássico de Mark Twain). "Isso lhe fez muito bem", conclui o rato.
- Firmin é, ao mesmo tempo, muito engraçado e profundamente trágico. Engraçado e trágico, como você e eu e todos os outros resume Savage. - Claro, eu me identifico com ele: a minha vida, como a dele, foi marcada pelo fracasso.
O agora escritor de sucesso, aliás, está prestes a publicar um novo livro, The cry of the sloth (O choro da preguiça, em tradução livre), novamente pela pequena Coffee House Press:
- Estou trabalhando em histórias curtas. Não vou tentar outro romance. Na minha idade e no meu estado de saúde, seria insensato começar qualquer coisa que leve anos para ser concluída. Firmin
Sam Savage. Trad.: Bernardo Ajzenberg. Editora Planeta. 244 páginas.Reprodução /Fernando Krahn
http://ee.jornaldobrasil.com.br/reader/clipatextoorig.asp?pg=jornaldobrasil_117594/99063 22/11/2008
Nenhum comentário:
Postar um comentário