Depois de emplacar alguns dos mais emblemáticos sucessos do cinema nacional dos anos 1970 e 1980, entre eles Toda nudez será castigada, ganhador do Urso de Prata no Festival de Berlim em 1973, Arnaldo Jabor parecia ter desistido do cinema. Os motivos? Desilusão com o meio cinematográfico, com a cultura nacional, mas, sobretudo, pela falta de dinheiro. Depois de mudar do Rio para São Paulo em busca de uma nova carreira e garantir a sobrevivência, o diretor carioca se tornou uma das vozes mais polêmicas do jornalismo (ou do “novo jornalismo”, como prefere) brasileiro, sempre usando termos ácidos e cores fortes para falar de política e, principalmente, criticar o governo.
Para fugir da “energia negativa” dos temas cotidianos que comenta na TV e nos jornais, Jabor decidiu voltar ao cinema 24 anos depois do premiado Eu sei que vou te amar, que deu a Fernanda Torres reconhecimento como melhor atriz em Cannes (1986), misturando em Suprema felicidade, seu novo filme, lembranças pessoais, família, sexo e música. Em um bate-papo no seu belo apartamento em Pinheiros, falou do processo de realização do filme, com estreia prevista para final de outubro, de suas influências literárias, da relação com Nelson Rodrigues e assumiu que encarna, sim, um personagem na televisão. E, sem esquecer a metralhadora crítica, aproveitou para detonar o Rio, novos autores e cineastas e a “bicha lamentosa” Fernando Pessoa.
Como foi a decisão de voltar a filmar depois de tanto tempo?
Na verdade, fiz um filme para a TV francesa nos anos 90, que só passou lá, e depois, muita publicidade por aqui. Mas meu último filme foi em 1986. O cinema brasileiro vive de ciclos, altos e baixos, e, em 1990, ele morreu. Não tinha mais dinheiro pra viver e fui fazer jornalismo. Estou falando a verdade. Tinha duas filhas para sustentar. Não tinha dinheiro para comer no Rio, a cidade estava muito decadente – agora que está melhorando. Quando mudei para São Paulo, conheci mais gente, ampliei meu horizonte. O cinema é muito corporativista, você fica num universo de quatro ou cinco pessoas muito fechado. Comecei na Folha de S.Paulo, onde fiquei dez anos, depois fui para o Globo e o Zero Hora. Comecei a gostar dessa coisa imediata, de falar direto com o público, escrever e no dia seguinte já ver o resultado. O Suprema felicidade, para você ter uma ideia, comecei a filmar dia 9 de maio de 2009. Mas já tinha levado um ano escrevendo e mais um ano arranjando dinheiro.
Mas o cinema nunca deu dinheiro?
Cinema nunca dá dinheiro. Fiz dinheiro com dois filmes, mas, se for dividir pelo tempo de trabalho, é uma mixaria. Eu sei que vou te amar teve 4,5 milhões de espectadores, o filme fez um puta sucesso, mas ganhei só 150 mil dólares... Os ingressos estavam com preços tabelados por causa do Plano Cruzado do Sarney. Mas, naquela época, fiquei muito duro e tive de vir para São Paulo para fazer jornalismo. Fui conhecer a realidade quando mudei para cá, só conhecia uma ficção chamada Rio de Janeiro. São Paulo abriu minha cabeça, é a cidade mais importante do Brasil – e a mais cara do mundo.
Voltar a filmar foi um chamamento então?
Depois de 15 anos, começou a me dar uma vontade de filmar novamente. Mas a vida de cineasta é sofrimento o tempo todo. Cineasta que vive de cinema só tem dois tipos de sentimento: ansiedade e frustração. Como nesse tempo passei a viver de salário – sou um empregado da TV Globo e dos jornais, graças a Deus –, tenho mais tranquilidade. Mas resolvi voltar porque ficar só falando de política e das mazelas nacionais o tempo todo é algo que vai impregnando a gente de uma energia negativa. Comecei a sentir necessidade de fazer uma obra de arte, não estou fazendo para ganhar um tutuzinho ou para impressionar as plateias, não preciso disso. Ficar mais conhecido do que sou, impossível. Não posso nem tomar um porre na rua que fica todo mundo me olhando. Tá entendendo? Foi puramente pelo amor à arte, à poesia e ao cinema.
O filme é bem diferente de seus filmes anteriores, é mais pessoal...
Esse é meu nono filme, ele tem muita coisa de amor – um assunto fundamental na literatura. Ele não tem um gênero só: tem comédia, tragédia, tem música pra cacete, tem putaria, sexo, amor... É a história de um garoto que nasce no final da Segunda Guerra e vai até ele fazer 20 anos. São três atores que fazem o papel. É um filme de formação, a história de alguém se formando na vida, história da família. E do Rio de Janeiro, que viveu nessa época um momento muito rico com a bossa nova, a Copa do Mundo e o início de uma liberdade maior. O Rio de Janeiro, no final dos anos 50, começo dos anos 60, era um paraíso extraordinário, mas tinha as famílias de classe média ainda muito resistentes às mudanças. Então, existe uma dialética muito interessante entre a coisa da família deprimida e a alegria e a liberdade fora de casa.
A situação política da época é o pano de fundo da história?
Não tem nenhuma menção política. Foi de propósito, fiz questão de não fazer nenhuma referência histórica para não ser um filme de época. As roupas, os carros são de época, mas mostra o que transcende as épocas: amor, ciúme, inveja. Por acaso ele se passa nessa época.
Mas é um personagem que tem mais ou menos a sua idade, viveu na mesma época que você. Quanto de você tem nele?
Tem muito, mas não é um filme biográfico no sentido linear. É impossível contar a história da própria vida. Como dizia Pasolini: “A vida da gente é um filme que só se monta na hora que a gente morre, porque, até a hora de morrer, pode mudar”. São coisas que conheci, que busquei. Teve coisas que surgiram inconscientemente, sem notar. Tem um episódio: 50 e tantos anos atrás, levei um tapa de um garoto sem motivo e não reagi. No filme, me vinguei dele. Minha irmã também reconheceu no personagem do pai uma frase exatamente igual à que meu pai dizia. O inconsciente é muito mais presente do que a gente imagina.
Fazer esse filme funcionou um pouco como uma terapia então?
Esse não é um filme psicológico. Mostra como a gente não vive a época, a época é que nos vive. Como certas tristezas são de época, como as felicidades antes eram de um tipo, hoje são de outro. Felicidade nos anos 50 era casar, ter filhos e ficar trancado dentro de casa. O contexto muda os conceitos, mas os conceitos humanos continuam muito fortes.
E o que ele tem em comum com seus filmes anteriores?
Tem mais a ver com Tudo bem e Toda nudez será castigada, mas não tem nenhuma intenção crítica. De certa maneira, esse filme tem a tentativa inconsciente de sintetizar meus filmes: tem a família do Tudo bem, o menino e a puta de Toda nudez, a vontade de amar de Eu sei que vou te amar, a sexualidade do Eu te amo.
A sexualidade é muito latente em todos os seus filmes, dá pra sentir que foi algo que você experimentou em algum sentido. Nesse filme, com um garoto menor de idade, como você lidou com isso?
O tema principal é a educação sentimental e sexual de um menino. Ele está sempre em busca de uma mulher, porque naquela época as meninas não davam. As mulheres só começaram a dar em 1965, quando apareceu a pílula. Só se trepava com prostituta ou se masturbava. O filme é essa busca da felicidade. Todos os personagens estão em busca da felicidade, é um desejo que percorre as épocas.
Quais são suas influências estéticas para fazer cinema?
Minhas influências são mais literárias que cinematográficas. Sou de uma geração que achava o cinema uma arte menor. Comecei a respeitar o cinema quando já tinha uns 20 anos, quando teve uma mostra de cinema francês e uma mostra de cinema italiano no Rio. Aí que descobri a grandeza do cinema. Minha formação literária é muito forte, sempre li muito. Li muito teatro, isso é uma coisa que entendo, dos gregos até os mais pós-modernos. Entendo de dramaturgia por isso. Falta em alguns diretores no Brasil conhecer as regras da dramaturgia. Desde aqueles filmes neorrealistas do Nelson Pereira dos Santos passando pelo Cinema Novo até o Collor, fizemos uns 250 filmes dos quais pelo menos uns 100 muito importantes. Foi o Cinema Novo que mostrou o Brasil ao Brasil. Não havia novela, não tinha internet – o cinema foi a maneira de mostrar coisas que a literatura tinha tocado, mas não se viam. Glauber Rocha foi influenciadíssimo por Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Um tipo de cinema que foi muito importante para formar oBrasil que conhecemos hoje. Só que a gente esquece, se dilui.
Você frequenta salas de cinema? Assiste a filmes brasileiros?
Vejo filmes em casa, revejo Caixa de Pandora sempre, Bergman [Ingmar]. Dos novos, só gosto do Tarantino [Quentin], do Takeshi Kitano, do Iñárritu [Alejandro González]... Gosto mais dos velhos mesmo. Fui muito influenciado pela Nouvelle Vague. O Cinema Novo tem duas costas: a Nouvelle Vague e o neorrealismo italiano. Essa mistura de realidade com delírio psicodélico e liberdade linguística, Godard [Jean-Luc] com Rossellini [Roberto], foi o que fez o Cinema Novo.
E o Nelson Rodrigues?
Ele é uma espécie de avô que tive. Mesmo sendo muito mais velho, eu era muito amigo dele. Quando o conheci, fazia exército, e o filho dele, Jofre, era meu colega, sempre pegava carona na saída do CPOR [Centro de Preparação de Oficiais da Reserva]. Anos depois, pedi para adaptar Toda nudez e acho que ele passou a me respeitar depois que viu o filme. Outra pessoa que me influenciou muito foi Eça de Queirós. Ele tem um texto harmônico, melodioso, o uso que faz das vogais, tem um ritmo... Shakespeare li tudo, em francês primeiro, depois em inglês. Passei seis meses lendo Proust, gênio absoluto. Joyce perto dele sai mancando.
Tem lido autores jovens?
Sou mais influenciado por Homero que por esses escritores “contemporâneos” [diz com sotaque inglês]. O livro mais importante da minha vida é a Ilíada – todo mundo deveria ler. Dos modernos, li muito Kafka, Borges, Thomas Mann, todas essas porras. E sempre li muita poesia, como a do João Cabral de Melo Neto, um cara genial que ensina a gente a escrever. Mas tem uns poetas que odeio... e vão me esculhambar por causa disso. Fernando Pessoa. Acho chato, insuportável, uma bicha lamentosa reclamando o tempo todo da inexplicabilidade da vida. João Cabral fala muito do mal que Fernando Pessoa fez à literatura.
Acabou sendo sua marca falar tudo assim na lata... Se não falar o que acho, falar de mim, vou falar o quê?
Nelson Rodrigues dizia que a única objetividade que ele conhecia era a subjetividade. Já recebi vários processos, nunca fui condenado. É bom ser odiado pelos canalhas.
Houve um momento em que você resolveu optar conscientemente pela provocação?
Meu primeiro artigo na Folha se chamava Todo paulista tem amante, de propósito, para provocar escândalo. No jornalismo, tentei fazer – e funcionou muito – o que os americanos chamam de New Journalism. O Norman Mailer influenciou muito o que faço, era o que tinha de melhor sobre a sociedade americana dos anos 60. Jornalismo literário sobre fatos políticos, ficcionalizar a realidade, tratar ela como uma comédia, drama, uma loucura. Porque a realidade é louca. Não existe uma realidade organizada que você tenha de respeitar. A realidade é uma esculhambação. O jornalismo que faço na TV, no jornal e na rádio tem a ver com meus filmes, na medida em que são todos ficcionalizados, irônicos, sacanas. Nunca quis ser, nem serei, objetivo.
Você muda de opinião?
Tem comentários que fiz que, quando revejo no YouTube, tenho até vergonha, nem lembro que fiz. Quem não muda de opinião, morre. As pessoas acham que mudar de opinião é falta de caráter, mas é uma questão de honestidade. Tem coisas que mudam. A burrice, meu caro, é uma coisa muito séria, é a Pedra da Gávea, uma força da natureza. A burrice é invencível, os séculos passam e a burrice continua dominante. Você vê o grau de burrice do nosso país... O Brasil é uma chanchada trágica e à beira da destruição.
Você encarna um personagem na TV?
Já virei um maluco da televisão, um ator de mim mesmo.
No cinema, o diretor é o rei do pedaço; no jornalismo, você tem um editor acima de você. O jornalismo enquadra a gente no mundo real. Tenho total liberdade editorial, mas, se tem um assunto delicado, mostro para o editor antes. Agora, voltando ao cinema, volto com uma experiência de vida mais ampla que a de 20 anos atrás. O jornalismo obriga a se manter informado, a entender dos assuntos.
A indústria cinematográfica que você encontrou é muito diferente da que você deixou? O que mais o impressionou?
A facilidade, a competência da equipe, os avanços tecnológicos, tudo inteligente. Não tem mais aquela coisa miserável do cinema brasileiro. Agora, ficou caro demais, o filme custou mais de 10 milhões de reais. E não vi nem um tostão ainda...©
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Reportagem de ANDRÉ FISCHER
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