segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O escritor desconhecido


Como funciona o trabalho anônimo de escrever
desde discursos políticos
até grande  romances de ficção
ou obras biográficas
realizado pelos ghost writers

Há países que rendem homenagem a soldados desconhecidos. A Hungria rende sua eterna gratidão a um escritor. Um Escritor Desconhecido. Aquele que, no anonimato e a serviço do rei Bela III, contou a mais bela história sobre os húngaros, o Gesta Hungarorum, um manuscrito publicado por volta de 1200, que relata a história primitiva do país. Descrevendo-se apenas como um “servo fiel do rei”, o escritor desconhecido virou mito e estátua no Parque da Cidade de Budapeste, onde está sentado solenemente, envolto numa túnica que cobre seu rosto, segurando um lápis na mão. Dizem que tocá-lo dá sorte.
“Mas, quem é ele? Como vivia? Como era seu rosto? Sua voz? Quem amou? Ninguém sabe. Fiel ao seu ofício, ele jamais permitiu que sua identidade fosse revelada. Ele nunca deu valor nem a fama, nem a fortuna. Nada. O que lhe importava era apenas servir à humanidade com suas palavras, com seu ofício de escrever”, revela trecho do filme Budapeste, dirigido por Walter Carvalho e baseado no livro homônimo de Chico Buarque, que narra a história de José Costa, um ghost writer brasileiro que, assim como o célebre Escritor Desconhecido, escreve para terceiros em anonimato.
Menos romântico do que o mito húngaro, o “fantasma” de Chico sofre com a necessidade de ser lido e reconhecido, embora a necessidade fale mais alto. “Ver minhas obras assinadas por estranhos me dava um prazer nervoso, um tipo de ciúme ao contrário. Porque, para mim, não era o sujeito quem se apossava da minha escrita, era como se eu escrevesse no caderno dele”, diz o protagonista. No final do ano passado, outro filme, L’Autre Dumas, do diretor Safy Nebbou, toca também no tema, quando mostra a relação controversa entre o grande escritor Alexandre Dumas e seu possível ghost writer, Auguste Maquet.
“Decidimos que este seria um momento ideal para apresentar ao público alguns dos estudos técnicos e científicos da coleção do museu a fim de explicar os tipos e processos de investigação feitos para entender melhor as obras de arte”, explica o Ashok Roy, diretor de pesquisas científicas e curador da exposição da National Gallery.
Fora da ficção, o ofício de escritor-fantasma apresenta-se menos como um dilema e mais como uma oportunidade. A figura do “fantasma” há muito entrou pelos intestinos da arte, pelas vísceras da criação cultural, seja na literatura, na música ou em qualquer segmento onde se possa “terceirizar” a produção artística. Na literatura, o ghost writer (escritor fantasma) ficou mais famoso, mais ocupado, mais requisitado. Tem “carteira de trabalho”, fama nos bastidores das editoras, tem a compreensão dos colegas e, em alguns casos, goza até de respeitabilidade. Status de bastidor, de coxia, de penumbra autoral. O ghost writer não aparece, é o escritor que não recebe os créditos pelo trabalho, é um “autor de aluguel”, contratado por personalidades, celebridades, outros autores, editoras e por “freiras que viraram modelos, vigaristas que se transformaram em empresários, latifundiários”. Como o personagem Costa, da ficção, os fantasmas da vida real aceitam monografias, redação de discursos e produção de romances.
“O ghost writer tem que ser o mais discreto possível”, explicou por email uma das profissionais que atuam no mercado editorial brasileiro. Resposta similar dada por dezenas de outros escritores-fantasmas procurados pela Revista da Cultura, que, apesar de terem anúncios, sites e outras formas de divulgação, raramente concedem entrevista. “Trata-se de um compromisso ético com o cliente”, respondeu outro escritor, declinando do convite de participar da matéria. Razão pelo qual muitos acabam sem “rosto”.
Exemplo disso é o jornalista com quase trinta anos de experiência, um dos mais solicitados do país, ex-diretor de um jornal paulistano de larga circulação, correspondente de imprensa estrangeira, que em seu site http://www.ghostwriter.com.br/  revela mais sobre essa silenciosa profissão. Trabalhando há mais de uma década em uma editora de médio porte, tem em seu nome 29 livros publicados, alguns dos quais – garante – best-sellers traduzidos e lançados no exterior (Argentina, Equador, Portugal e Inglaterra). Como explica, não vê qualquer demérito em atuar como ou saber que alguém contrata o serviço de um ghost writer.
“Não há nenhuma vergonha nos serviços de um escritor-fantasma. Muito pelo contrário, servir-se deles pode até ser sinal de grande prestígio. Todo mundo sabe que os discursos dos presidentes de República e governadores, os relatórios dos ministros de Estado ou de diretores de grandes empresas não são redigidos pessoalmente ou pelas personalidades que os assinam. Políticos, estadistas, esportistas, atores e atrizes, homens públicos e empresários – todos eles contratam ghost writers para ajudá-los a redigir suas autobiografias, ou quando desejam relatar algum acontecimento em que tomaram parte, ou ainda quando querem deixar registrada a sua versão sobre um determinado fato polêmico”, conta.

The Ghost Writer (2010), o mais recente trabalho cinematográfico de Roman Polanski, retrata que nem sempre essa relação entre cliente e contratado se dá de forma tranquila, especialmente em “altos escalões”. O filme, ficção adaptada do romance literário O fantasma, de Robert Harris, conta a saga de um escritor-fantasma contratado para escrever as memórias de um primeiro-ministro britânico, envolvido em supostos crimes contra a humanidade. Polanski consegue mostrar as relações, às vezes conflituosas, repletas de incertezas e inseguranças no trabalho literário do ghost writer, além de criar um belo thriller.
No filme, o autor-fantasma é contratado por uma cifra bem convidativa, algo próximo a meio milhão de reais. Na vida real, o ghost writter brasileiro cobra conforme o trabalho solicitado, que não fica por menos de R$ 5 mil. Ele conta em seu site que trabalha silenciosamente, recebe sua remuneração profissional e depois desaparece para sempre (daí a designação de fantasma), mantendo inviolável o segredo de sua participação na obra. “A propriedade intelectual da obra fica para a pessoa que o contratou e pagou seus serviços. Ninguém, absolutamente ninguém, fica sabendo que ela utilizou os serviços de um escritor fantasma. É ela que assina o trabalho, que recebe os respectivos direitos autorais, que desfruta da fama e da glória que a obra possa render. O ghost writer, como todo fantasma que se preze, é um personagem discreto, não gosta de aparecer e prefere ficar no anonimato. Ninguém fica sabendo que foi ele que preparou o texto”, garante. O único trabalho que não aceita é a redação de trabalhos escolares ou teses universitárias, além de se recusar a usar nos textos expressões pornográficas, de baixo calão, ofensivas ou depreciativas a pessoas, raças ou grupos humanos.
A precaução é justificada. Segundo trabalho publicado em 2007 pela Faculdade de Medicina de Itajubá (MG), através da pesquisadora Maria Christina Anna Grieger, a venda de trabalhos científicos por ghost writers tem colocado em risco a produção científica nas universidades. Na área da saúde, por exemplo, fraudes na produção científica não são situações raras. Para analisar a dimensão desse comércio, a pesquisadora selecionou 18 sites nacionais que oferecem serviços de elaboração de artigos científicos, monografias, dissertações e teses. O resultado mostrou que das 18 empresas consultadas, dez (55%) responderam aceitando a encomenda mediante pagamentos que variaram entre R$ 200,00 e R$ 1.200,00. “Do ponto de vista ético, parece inquestionável a falha de caráter do pesquisador que se utiliza desse meio para sua produção científica”, explica Maria Christina.
A história mostra que nem todos os escritores-fantasmas estão preparados para desaparecer, para viver nas sombras. Em Budapeste, o protagonista é confrontado o tempo todo com perguntas como: “O que faz você pensar que crescer na sombra enobrece?”. Ele se defende: “A literatura não precisa se exibir”. As pressões familiares também ficam evidentes. A mulher de Costa confronta: “E você? Você diz que escreve tanto, mas eu nunca vi seu nome em lugar nenhum. Não sei o que responder quando perguntam o que meu marido faz. Meu querido, se você já editou um livro, não me chamou para o lançamento”, debocha.
Alguns casos ficaram conhecidos do grande público, tendo seus “fantasmas” revelados. Entre eles, Theodore Sorensen, o ghost writer do ex-presidente americano John Kennedy. Barbara Feinman seria a autora de Tarefa de uma aldeia e outras lições que as crianças nos ensinam, de Hillary Clinton. Muitos acreditam que Truman Capote era o ghost writer de O sol é para todos, livro de Harper Lee que recebeu o consagrado Prêmio Pulitzer. George Lucas teria utilizado os serviços de Alan Dean Foster para escrever sua famosa saga Star Wars. No Brasil, o português Francisco Gomes da Silva, o “Chalaça”, foi o ghost writer de D. Pedro I, escrevendo discursos, textos para jornais etc. Clarice Lispector também flertou com o anonimato e teria sido a ghost writer da atriz Ilka Soares. O caso mais recente é o de Jorge Tarquino, suposto escritor-fantasma de O doce veneno do escorpião (2005), sucesso de Raquel Pacheco (mais conhecida como Bruna Surfistinha), que vendeu mais de 300 mil cópias, e estreia versão cinematográfica em 2011, tendo a atriz Debora Secco como a ex-garota de programa.©
Embora nunca receba as glórias por seu trabalho, o que o escritor-fantasma deseja mesmo é ser fantasma, ser invisível, ficar na sombra de suas letras, um herói anônimo, senhor absoluto do seu próprio respeito, assim como foi o Escritor Desconhecido da Hungria. O resto? O resto é silêncio, bronze e pássaros grulhando em volta.©
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Reportagem por KELLY DE SOUZA

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