Leonardo Boff fala do papel de igrejas e religiões
na defesa ambiente
Imagem da Internet - Leonardo Boff
Gustavo Vieira *
Em entrevista da Campanha Primavera para Vida 2010 (PPV-2010) o teólogo Leonardo Boff fala da necessidade de ampliarmos o entendimento dos direitos para que a humanidade supere o antropocentrismo e entenda o direito para além de si mesma. Boff destaca, entre outras coisas, o modelo de relação para com a natureza e a Mãe Terra.
Enfatiza que as lideranças religiosas e ecumênicas devem inserir em suas celebrações e levar aos seus fiéis os ritos e os elementos da natureza. "As religiões mais que falar de natureza deveriam se habituar em falar de criação. Criação remete ao Criador. O ato de criação não ocorreu no passado primordial. Ele está ocorrendo a cada momento. Se Deus não continuar dizendo "faça-se a luz", "surjam as águas, os animas e as plantas e fundamentalmente ser humano" tudo voltaria ao nada. Assistimos a todo instante o milagre da criação e a emergência do céu e da Terra".
-As ações de assistência aos mais necessitados sempre foram presentes nas entidades religiosas ou ecumênicas. A que o senhor atribui a tendência recente destas entidades usarem o tema ambiental para a defesa dos direitos humanos?
-LB: Cresce a consciência de que todos somos ecointerdependentes, todos fazemos parte da natureza. Uma violência contra a natureza, como o desmatamento de uma região ou a excessiva utilização de agrotóxicos envenenando o nível freático das águas é entendida como uma injustiça ecológica, contra a natureza que, por sua vez gera uma injustiça social, pois prejudica as pessoas relacionadas com esta natureza. Com o desmatamento, elas possuem menos água, o clima é afetado e os agrotóxicos tornam a água contaminada. Então a concepção dos direitos deve ser ampliada, para superar o antropocentrismo, como se somente o ser humano fosse sujeito de direitos. Todos os seres vivos tem valor intrínseco, devem ser respeitados, convivem conosco e por isso são portadores de direitos. Nós somos seus representantes e guardiães e juntos formamos a democracia ampliada, de cunho sóciocósmico.
-Os estudos indicam que os mais pobres serão os mais afetados pelas catástrofes oriundas das mudanças no clima. Qual deve ser na opinião do senhor a prioridade das políticas públicas para evitar o aumento da miséria por este motivo?
-LB: Precisamos questionar o modelo de relação para com a natureza e para com a Mãe Terra. A modernidade entende a Terra como uma realidade bruta, sem inteligência, um baú de recursos a serem explorados e uma caixa de lixo onde jogamos nossos dejetos. A compreensão mais contemporânea, fruto das ciências da Terra e da vida e também da astrofísica, entende a Terra com um superorganismo que se autorregula e que combina o físico, o químico, o biológico de tal maneira que se torna sempre apta a manter e a reproduzir a vida. Esta Terra é viva, foi chamada de Gaia e pelas tradições da humanidade de Mãe Terra. Por uma decisão da ONU de 22 de abril de 2008 o dia da Terra passou a ser o dia da Mãe Terra. Terra a gente pode comprar, vender, usar. Mãe a gente não vende, não compra nem maltrata, mas cuida e venera.
O processo dominante de produção supõe o domínio da natureza, a superutilização de seus bens e serviços até a sua exaustão (veja-se o petróleo, o gás, o carvão etc.) em benefício da acumulação que beneficia pequena porção da humanidade e deixa à margem as grandes maiorias condenadas a serem "óleo queimado" do processo produtivo. Esse tipo de relação que se funda no poder enquanto dominação do outro, das classes, dos povos e da natureza, provocou a crise do aquecimento global e a espantosa injustiça planetária. Entregue à sua própria voracidade, este sistema pode levar a humanidade a um impasse e, talvez, a uma catástrofe ecológica e humanitária sem precedentes na história. Ou nós mudamos de paradigma de produção e de consumo ou corremos o risco de desaparecer como espécie. Então as políticas públicas devem começar por criar esta nova consciência e ensaiar um outro trato da natureza que se faça em sinergia com seus ciclos e com as capacidades de cada região.
-Na sua opinião, como a conduta ética do indivíduo pode ajudar o amenizar o sofrimento das pessoas pelas injustiças ambientais a que estamos todos sujeitos?
-LB: O problema é global e por isso afeta a todos e a cada um. Cada um deve fazer a sua revolução molecular. Quer dizer, começar as modificações consigo mesmo, respeitando as águas, as plantas, realizando os famosos três erres: reduzir, reutilizar e reciclar. Se não podemos mudar o mundo, podemos sempre mudar este pedaço de mundo que sou eu mesmo. Se a grande maoria se dispuser a isso, assistiremos a emergência de uma nova consciência com práticas mais benevolentes para com a natureza e com uma opção de viver uma simplicidade voluntária. Constataremos que podemos ser mais com menos. Todos ganharão porque se sentirão incluídos e não vítimas de um processo altamente egoísta, excludente e hostil à vida.
-Você arriscaria uma nova redação dos dez mandamentos ou dos 7 pecados capitais à luz dos eventos climáticos atuais ou a sua abrangência ainda hoje é completa e atual na sua forma original?
-LB: Tenho medo de mandamentos, pois funcionam como superegos castradores. Acredito em valores que são coletivamente assumidos, internalizados e vividos como o cuidado para com todas as coisas, a responsabilidade coletiva pelo futuro comum, a compaixão para com todos os que sofrem, humanos e outros seres da natureza, o respeito irrestrito a cada ser, pois ele tem direito de existir e de continuar conosco, a cooperação de todos com todos de sorte que triunfe o ganha-ganha e não o ganha-perde, cultivo de valores intangíveis ou espirituais como a solidariedade, o amor, o perdão, o companheirismo, a abertura ao diferente, o diálogo aberto com todos e a capacidade de renúncia em benefício do bem comum. Creio que este paradigma poderá gestar outro tipo de civilização no qual não seja tão difícil ser humano e amar.
-Qual é o papel, na sua opinião, que as instituições religiosas ou ecumênicas poderiam assumir para a busca de um novo acordo climático global pelos instrumentos da ONU?
-LB: As religiões, pela abrangência que objetivamente possuem, possuem uma alta missão pedagógica. Elas ensinam a respeitar e a venerar e a pôr limites ao nosso desejo ilimitado. A elas cabe a missão de educar as pessoas para não respeitarem somente os textos sagrados e os lugares de veneração, mas a defender, respeitar a cada ser pois ele saiu da mão de Deus e revela possibilidades escondidas e realizadas do processo de evolução. É o respeito e a veneração que impõem limites à voracidade do poder e que obrigam a ciência a ser feita com consciência e a servir mais à vida que ao mercado. Por outro lado as ciências ajudam as religiões a superarem seu fundamentalismo de imaginarem que somente cada uma delas possui a verdade e é portadora da revelação divina. A verdade é como o sol, ilumina a todos e todos estamos em busca de uma verdade mais plena. Por isso as religiões podem ser fontes de paz e não de conflitos. Devem estar unidas a serviço da vida e da garantia de que ainda podemos ter futuro.
-Qual deve ser em síntese a mensagem que as lideranças religiosas e ecumênicas devem levar aos seus fiéis sobre a justiça ambiental em seus rituais e liturgias?
-LB: As religiões, as igrejas e os muitos caminhos espirituais devem inserir em suas celebrações e ritos os elementos da natureza, pois todos dependemos deles. Eles são portadores de vida e por isso todos devem manter com eles uma relação de respeito e de gratidão. As religiões mais que falar de natureza deveriam se habituar em falar de criação. Criação remete ao Criador. O ato de criação não ocorreu no passado primordial. Ele está ocorrendo a cada momento. Se Deus não continuar dizendo "faça-se a luz", "surjam as águas, os animas e as plantas e fundamentalmente ser humano" tudo voltaria ao nada. Assistimos a todo instante o milagre da criação e a emergência do céu e da Terra. Tudo isso leva a uma atitude gratidão, de veneração e de júbilo. Em nós surge a consciência ética de cuidarmos desta herança sagrada que Deus nos confiou e que o universo nos entrega dia a dia. Transformar tais idéias em experiências e atitudes faria com que a natureza fosse mais preservada e cuidada.
-Que espaço para uma mudança de paradigma político em torno da justiça ambiental você enxerga para o Brasil na próxima década considerando o cenário político-eleitoral atual?
-LB: Em termos geoecológicos o Brasil é um país decisivo para o equilíbrio do planeta Terra que com o aquecimento global entrou num processo de caos. Os eventos extremos mostram que a Terra perdeu seu equilíbrio e só encontrará outro subindo de temperatura. Esta elevação poderá fazer com que o caos se mostre destrutivo e muitas espécies não consigam de adaptar e venham a desaparecer. Regiões inteiras do planeta se tornarão inóspitas para milhões de pessoas. Estão previstos para os próximos anos cerca de 100-150 milhões de refugiados climáticos. Isso ocasionará um problema político mundial de grave consequências. Por sua natureza, o caos é criativo e generativo, quer dizer, provoca a eclosão de uma nova ordem.
O Brasil é a potência das águas, possui as maiores florestas úmidas do mundo, o maior estoque de terras agricultáveis e o leque mais diversificado de alternativas energéticas. Ele será decisivo para o novo equilíbrio da Terra. Tirando Marina Silva, constato que lamentavelmente nossos atuais governantes não possuem consciência da importância do Brasil e não mostram um acúmulo de consciência necessário para estarem à altura dos desafios mundiais. É uma pena que raia à irresponsabilidade à alienação. Desta vez não podemos falhar ou chegar tarde, pois o tempo do relógio corre contra nós. Caso contrário iremos ao encontro da escuridão.
-Qual é o papel do Brasil neste contexto global que o senhor imagina mais relevante do ponto de vista da transformação dos paradigmas econômicos e políticos atuais para os de uma nova sociedade com menos carbono?
-LB: O problema não é uma sociedade com menos carbono, mas uma sociedade que muda sua relação para com a Terra e a natureza, agindo em sinergia e não em exploração, respeitando os limites e as capacidades de cada ecossistema, atendendo as demandas das atuais gerações e abertos às demandas das futuras. O decisivo é dar o seguinte passo: passar de uma sociedade industrialista que estressa a natureza e cria injustiças sociais para uma sociedade de sustentação de toda a vida, a humana e as demais formas de vida, produzindo o suficiente decente para todos e não para a acumulação e para os ganhos do mercado. Essa mudança paradigmática temos que fazê-la, senão a Terra poderá continuar mas sem nós.
-Pergunta: Qual é a sua expectativa na transformação da Campanha Primavera para Vida em uma campanha nacional nesta décima edição?
-LB: Eu espero que seja suscitado espírito de solidariedade para com aqueles irmãos e irmãs que mais precisam, que sejamos movidos por um profundo sentimento de humanidade, sentido a dor dos outros, ajudando a aliviá-la e, sobretudo, criar uma corrente de entreajuda, de cooperação, de verdadeira irmandade, incluindo a natureza, quer dizer, a qualidade de vida das pessoas, a água que bebem, o esgoto tratado, o ar puro que respiram, as relações sociais e de vizinhança menos tensas e com mais motivos para viver e conviver. Sozinhos, não conseguimos tudo isso, mas com a graça do Espírito que nunca nos falta poderemos dar passos decisivos rumo a este sonho. Devemos pensar como Fernando Pessoa, o grande poeta português: "Quero ver uma Terra que ainda nunca existiu". Então será uma civilização biocentrada, a "Terra da Boa Esperança". O Brasil tem condições de ser o antecipador deste sonho possível e desta utopia necessária.
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*Leonardo Boff, teólogo, filósofo, representante da Carta da Terra e do grupo da ONU que formula a Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade. Site: www.leonardoboff.com.
* Jornalista CESE
Fonte: Adital, 01/10/2010
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