Jung Mo Sung *
O jornal "O Estado de São Paulo" traz no dia de hoje (01/10/2010) uma entrevista com o bispo católico da diocese de Guarulhos, D. Luiz Gonzaga Bergonzini. Nesta entrevista o biso reafirma a sua "recomendação", dada no mês de julho, aos os fiéis católicos da sua diocese de que não devem votar na Dilma porque ela seria a favor do aborto.
Eu não quero entrar em discussão aqui se ela é ou não favorável a aborto - ela afirmou recentemente em uma reunião com lideranças das igrejas evangélicas e católica que ela pessoalmente é contra -, e nem se isso é motivo para esse tipo de pronunciamento político-pastoral. Mas quero propor algumas reflexões sobre esta lógica de "recomendar" ou mostrar o dever de votar ou não votar em determinado candidato ou partido em nome de um valor moral da religião. Prática essa que não é exclusiva dos setores ditos mais conservadores das igrejas cristãs. Há muita gente, nos mais diversos setores do cristianismo e de outras religiões (dos conservadores aos "progressistas" e ecoteológicos) que utilizam argumentos ou valores do campo religioso, místico ou espiritual para justificar diretamente as suas opções políticas e técnicas.
Eu quero crer que D. Bergonzini, e também outros que seguem esse tipo de prática, assume essa posição por uma consciência de dever apostólico ou pastoral. Eu penso que essas pessoas não são movidas por algum tipo de maquiavelismo que utiliza a religião para expressar ou defender algum tipo de preconceito ou adesão a um grupo político. Pelo menos conscientemente. A questão então é: o que os leva a esse tipo de atitude?
Há na entrevista do bispo uma afirmação que pode nos dar uma pista. Ele diz: "mina intenção não era me dirigir a todos os brasileiros, mas ao povo de Guarulhos, uma diocese que tem cerca de 1,3 milhão de habitantes e mais de 400 mil eleitores".
Ele, como muitos bispos, padres e agentes de pastoral da Igreja Católica, identifica dois sistemas de divisão territorial: a diocese e o município. Ele trata todos os habitantes da cidade de Guarulhos e de outras em torno deste como se fossem "habitantes" da sua diocese. O problema é que a diocese pode estar usando a divisão territorial dos municípios do Estado brasileiro para a sua delimitação geográfica, mas isso não significa que os habitantes dessas cidades sejam também "habitantes", ou melhor, membros da diocese.
Este equívoco vem do tempo da cristandade, quando a divisão geográfica do "Estado" ou do "reino" se identificava com a da Igreja católica e não havia problema no funcionamento dos dois. Mas os tempos mudaram e agora os habitantes das cidades não são mais "habitantes" da diocese, pois a diocese não tem mais habitantes, mas sim membros ou fiéis. Em um mesmo território geográfico existem duas lógicas institucionais, dois tipos de "legislação" e dois "espíritos de pertença" distintos. No Estado, um indivíduo é cidadão; na Igreja, fiel. E com certeza a diocese de Guarulhos não tem 1,3 milhões de fiéis católicos. E nem todos católicos se sentem ou se sabem pertencentes à diocese.
Isso nos leva a outra questão: na cidade de Guarulhos e adjacências há muito mais igrejas cristãs do que a Católica e também outras religiões que não sejam a cristã, sem falar nos não-religiosos e os ateus convictos.
Talvez a não percepção das diferenças entre o âmbito do Estado (onde se discute e atua politicamente), o âmbito da cultura (onde encontramos a diversidade cultural, religiosa e de valores morais) e o âmbito eclesiástico (onde temos o funcionamento da diocese) faça o bispo imaginar que ele tem a obrigação de "ensinar" para 1,3 milhões de habitantes que não devem votar em uma pessoa para dirigir o Estado brasileiro baseado em uma doutrina moral de uma Igreja. Ele passa de um valor moral de uma Igreja diretamente para questões do Estado e a política e quer impor a toda a sociedade, através das leis do Estado, um valor moral que ele considera fundamental para a fé católica.
É claro que a missão da Igreja Católica de evangelizar tem relação com o mundo da política. Mas, toda proposta que vai diretamente de um valor religioso ou espiritual para uma opção política, cultural ou técnica concreta se equivoca por desconhecer, negar ou querer fazer desaparecer as distinções que vimos acima. Por mais bem intencionado que seja, esse tipo de proposta ou prática acaba por levar a um tipo de totalitarismo e autoritarismo; sem falar em erros estratégicos e técnicos que isso acarreta.
Talvez, muitos dos que, em nome da vida, propõe essa "ligação direta" entre os verdadeiros valores religiosos e espirituais e opções políticas e técnicas estejam ainda marcados pelo totalitarismo e autoritarismo inerentes aos grupos que se vêem como portadores da verdade universal e absoluta.
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* Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo .Autor, em co-autoria com Hugo Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres", Ed. Paulus.
Fonte: Adital, 02/10/2010
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