Michelson Borges*
No livro Fama e Anonimato, o genial escritor-jornalista Gay Talese traz aquela que é considerada uma das melhores reportagens sobre Frank Sinatra, intitulada “Frank Sinatra está resfriado”. O mais interessante é que Talese produziu seu texto sem conversar diretamente com o cantor. Ele “apenas” ouviu pessoas que o conheciam e consultou várias fontes confiáveis. Fez um ótimo trabalho. A revista Superinteressante tentou algo parecido com Deus, mas passou a anos-luz de distância da garimpagem de informações realizada pelo jornalista norte-americano que sabia fazer o “dever de casa”. A matéria de capa deste mês da publicação que se considera de divulgação científica surpreende apenas por um detalhe: tratou em novembro de um tema que geralmente explora em dezembro, ou seja, religião. De resto, é o mesmo cardápio de sempre: acusações e críticas infundadas contra a fé judaico-cristã e uso de fontes limitadas e que expressam apenas um lado da questão.
A matéria está dividida em três grandes blocos: apresenta a “história de Deus” desde a “infância” (quando Ele seria apenas um deus menor no panteão dos nômades), passando pela “juventude” (torna-Se o Deus maior dos nômades e Se casa com Asherah) até a “idade adulta” (Se divorcia de Asherah e torna-Se o único Deus). E o texto sentencia logo de início: “Os deuses eram as forças por trás de uma natureza inexplicável para os primeiros humanos da Terra. Facetas de divindades borbulhavam em cachoeiras, galopavam com os cavalos selvagens, voavam com o vento, escondiam-se em cada rochedo, bosque ou duna do deserto. E do deserto veio a que daria origem ao Deus para valer.” Poético, até, mas de científico não há nada aí. São afirmações vazias, desprovidas de evidências, já que se reportam a um tempo imaginário do qual não temos registros históricos suficientes para sequer rabiscar uma história da religião. É como se pesquisadores encontrassem numa caverna uma bola de vôlei com um rosto pintado nela (lembra do Wilson do filme “O Náufrago”?) e deduzissem que homens primitivos reverenciavam bolas de vôlei. Nada mais falso. Aliás, quem brinca muito com essa história de homens das cavernas é Chesterton, em sua obra O Homem Eterno.
Mais à frente, Super diz que Javé [ou Yahweh] era uma divindade que “provavelmente começou como um deus menor, cultuado por nômades. Bem antes de a Bíblia ser escrita”. Curiosamente, na capa dessa edição, a revista não usa o “provavelmente”, mas afirma: “Houve um tempo em que Deus era apenas mais um.” É a velha tática das capas sensacionalistas e vendáveis.
A intenção do texto (que revela, na verdade, a intenção dos jornalistas e editores céticos de mãos dadas com teólogos liberais sempre convenientes) é igualar Yahweh a deuses mitológicos, desconstruindo, se possível, a fé de bilhões de pessoas. Como já disse, a matéria chega a afirmar que o Deus bíblico Se casou com a deusa Asherah, nos templos de quem se praticava a prostituição cultual tão reprovada pelos profetas de Israel. E mais: diz que “uma ameaça pairava sobre os deuses de Canaã. Era a ambição de Javé”. Francamente... Ambição tinha Lúcifer quando quis ocupar o lugar de Deus no Céu. Será que essa matéria da Super não foi “inspirada” por outras ambições?...
Depois, a reportagem se aproveita do Salmo 82 para reafirmar sua ideia de que Yahweh seria um entre tantos deuses: “[O Salmo 82] nos apresenta o chamado ‘conselho divino’: uma espécie de Câmara dos Deputados dos deuses, na qual eles se reúnem para discutir assuntos importantes.” Talvez o maior “problema” esteja com o verso 6, que diz: “Sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo.” Esse Salmo é citado e aplicado por Jesus em João 10:34 (o que a reportagem ignora). Como Super realmente não fez o “dever de casa”, não se deu ao trabalho de pesquisar o assunto mais a fundo. Caso tivesse feito isso, descobriria que a palavra hebraica traduzida como “deuses” nesse verso é elohim. Esse termo geralmente se refere ao único Deus, mas também tem outros usos. Os versos seguintes ao primeiro verso do Salmo 82 deixam bem claro que a palavra elohim se refere a magistrados, juízes e outras pessoas que ocupam posição de autoridade.
Biblicamente falando, chamar um ser humano em posição de autoridade de “deus” indica três coisas: (1) ele tem autoridade sobre os outros seres humanos;
(2) o poder que ele exerce como autoridade civil deve ser temido;
(3) ele obtém seu poder e autoridade de Deus, o qual é retratado no versículo 8 como julgando toda a Terra.
Segundo o site Got Questions?, “esse uso da palavra ‘deuses’ para se referir a humanos é raro, mas é encontrado em outro lugar no Antigo Testamento. Por exemplo, quando Deus enviou Moisés a Faraó, Ele disse: ‘Eis que te tenho posto por deus sobre Faraó, e Arão, teu irmão, será o teu profeta’ (Êxodo 7:1). Isso significa simplesmente que Moisés, como o mensageiro de Deus, estava comunicando as palavras de Deus e era, portanto, o representante de Deus para o rei. A palavra hebraica elohim é traduzida como ‘juízes’ em Êxodo 21:6 e 22:8, 9, 28.”
Ademais, a palavra “deuses” não pode se referir a divindades pagãs, pois, no Salmo 82, os “deuses” são juízes injustos que atuam na Terra (v. 2-4), “filhos do Altíssimo” (v. 6) e “homens” passíveis de morte (v. 7). (leia mais aqui.) Isso fortalece a ideia de que “deuses”, nesse texto, não são divindades que competiriam com Yahweh.
Para o pastor e escritor Douglas Reis, de São Francisco do Sul, SC, em artigo publicado em seu blog, há duas grandes tendências equivocadas na matéria da Super:
(1) considerar a formulação do conceito de Deus como algo progressivo e
(2) sustentar alegações pretensiosas e descabidas, sem oferecer pontos de vista alternativos (como reza a cartilha do bom jornalismo).
Reis pondera que, “se a espiritualidade pudesse ser reduzida a uma formulação que explicasse as leis naturais, seria certo que, à medida que outros métodos fossem adotados para o estudo da natureza, a espiritualidade seria dispensável. Contudo, o que vemos no início da história da ciência? Uma contribuição significativa para a revolução científica se deu por meio da influência da Bíblia!”
Ele cita Colin A. Russel, professor de História da Ciência: “[Em] conformidade com esse conceito está o papel predominante desempenhado na nova ciência por países protestantes como a Grã-Bretanha, Países Baixos e Alemanha. O que parece agora claro, sem qualquer contradição, é que uma redescoberta do cristianismo bíblico levou a uma nova percepção qualitativa da natureza, grande o bastante para abranger essas descobertas recentes e tornar possível a Revolução Científica.”
“Assim”, explica Reis, “a teologia bíblica, longe de tratar de um mundo encantado (dos animistas) ou deificado (dos panteístas), revelou aos primeiros cientistas um mundo que eles poderiam pesquisar, o qual era distinto de seu Criador. Isaac Newton, por exemplo, estudava as leis do universo para entender seu funcionamento, sabendo que elas não oferecem ‘subsídios sobre a sua origem’.”
Segundo o pastor, a única justificativa para se entender a Bíblia como mera produção de mito surge da utilização do método histórico-crítico, que impõe ao texto bíblico concepções naturalistas contrárias à ideia de milagres e eventos sobrenaturais. Ele lembra que a teologia liberal teve seu surgimento no século 18. Johann Gottfried Eichhorn foi pioneiro ao afirmar que cada livro do Antigo Testamento não teria um único autor, mas conteria diversas contribuições históricas. Para Eichhorn, a Bíblia seria mera mitologia, da mesma forma que a grega. Super copiou e colou essa visão em suas páginas (e não é de hoje), sem dar espaço para visões divergentes. Prova disso? Leia mais esta citação da reportagem: “O Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia, foi finalizado por volta de 550 a.C. Mas há textos ali de 1000 a.C., ou de antes. E nada disso foi editado em ordem cronológica – em grande parte, a Bíblia é uma junção de textos independentes, cada um escrito em tempos e realidades diferentes.”
“Embora esse pensamento tenha inundado a Teologia em séculos passados”, explica Reis, “ele nunca deixou de ser uma tendência, uma opinião de alguns eruditos. Sempre houve respostas e contrapropostas a esse tipo de abordagem.” Mas a Superinteressante não foi atrás dessas fontes, ainda que fosse apenas para mostrar que há outros pontos de vista. Seria bom fazerem um cursinho com Talese...
A “biografia não autorizada de Deus” escorrega de novo ao dizer que foi somente depois da morte do rei Josias que o monoteísmo acabou finalmente consolidado entre os judeus: “E era esse Javé único que iria para a Bíblia. E se tornaria a imagem de Deus no mundo ocidental.” Mas, conforme salienta Reis, “o monoteísmo remonta ao Pentateuco, obra que, dentro da perspectiva histórica e literária, é atribuída à autoria mosaica, segundo os mais competentes estudiosos do texto bíblico”. Bastaria a quem preparou a reportagem ter estudado a respeito do conflito relatado em 1 Reis capítulo 18, para desfazer a confusão.
A Super diz também que certas características de Yahweh teriam se originado do culto ao deus Baal, embora não apresente sequer uma evidência arqueológica ou textual para essa afirmação descabida. Reis questiona: “Há especialistas no léxico bíblico, arqueologia bíblica e conceituados [especialistas em interpretação bíblica] espalhados pelo Brasil. Por que muitos são consultados pela revista IstoÉ, por exemplo, mas continuam olvidados pelas páginas da Super?”
Boa pergunta para a qual Reis sugere uma resposta: “Fica evidente o compromisso da revista em promover uma ideologia naturalista, sem ao menos ser capaz de ouvir quem pensa diferente. Isso leva os editores a abordar assuntos que tratam da Bíblia da perspectiva liberal, embora essa tendência esteja superada em vários círculos. Seria a polêmica simples estratégia de vendas, a expensas da qualidade da informação?”
O pastor Luiz Gustavo Assis, de Caxias do Sul, RS, lembra que a reportagem da Super poderia ter consultado e citado Hershel Shanks, editor da principal publicação popular (não populesca) de arqueologia bíblica, a Biblical Archaeology Review. A revista tem mais de 30 anos e publica bimestralmente artigos de diversos especialistas, liberais e conservadores. Mas não consultaram Shanks.
Também poderia ter ido atrás de Michael Hasel, que além de ser diretor do único programa de bacharelado em arqueologia bíblica nos Estados Unidos (na Southern Adventist University, no Tennessee), é egiptólogo formado pela Universidade do Arizona e teve como orientador William G. Dever, quem sabe o principal arqueólogo da atualidade. Por que Hasel seria importante para a matéria? Porque na década de 1990 (ele terminou o Ph.D em 1996) a Universidade do Arizona tinha o melhor programa doutoral em arqueologia dos Estados Unidos e Dever, orientador de Hasel, é agnóstico. (Dever doou toda a sua coleção de peças arqueológicas para essa universidade adventista em que Hasel trabalha e escreveu na Biblical Archaeology Review que o único caminho para a arqueologia bíblica sobreviver nos Estados Unidos é aprender com os adventistas. Cf. “The death of a discipline”, Biblical Archaeology Review 21/5 [1995], p. 50-55, 70.) Hasel é especialista no chamado período do bronze tardio (1300-1185 a.C.) de Canaã e na interação egípcia com o mundo mediterrâneo oriental. Mas a Super não consultou Hasel.
Luiz diz também que os autores da matéria poderiam ter ido atrás de outros três pesquisadores: James Hoffmeier, egiptólogo e professor de Antigo Oriente Médio na Trinity Evangelical Divinity School; Alan Millard e Kenneth Kitchen, ambos especialistas em estudos de epigrafia oriental na Universidade de Liverpool, na Inglaterra. Em lugar disso, “preferiram apenas a opinião de alguns indivíduos que não representam a completa opinião sobre o tópico do monoteísmo”. Mas a Super também não consultou esses três.
O pastor Luiz fez estudos em egiptologia na USP e explica que a palavra para “deus”, em egípcio é ntr (lê-se netjer), e está no singular. A forma plural seria algo como ntru (é só acrescentar o “u” que se tem o plural). “Textos egípcios antigos (bem mais antigos que o Antigo Testamento) aparentemente sugerem a crença em um único Deus antes do surgimento dos demais. Ano passado, troquei e-mails com um egiptólogo da USP que me disse ser esse um tópico controverso, mas que parece se referir a uma única divindade.” Seria bom a Super expandir o assunto e incluir essas discussões. Mas não o fez.
Nesse tipo de matéria, o que mais chama a atenção do pastor e editor Matheus Cardoso, de Tatuí, SP, é que, “quando os cristãos apresentam alguma declaração bíblica, pedem-se ‘documentos históricos’ e ‘provas’. Alega-se que tudo que não é muito bem documentado é falso. Mas todo o artigo [da Super] não passa de um belo romance, sem qualquer referência a textos antigos ou a estudiosos modernos. Como geralmente acontece com a revista, o artigo inteiro se baseia em apenas um livro; neste caso, Deus: Uma Biografia, de Jack Miles, que dá nome à matéria. Esse livro já foi base de um artigo de capa da mesma revista em 2005”. [Dezembro de 2005.]
Não há problemas com biografias não autorizadas, a menos que sejam consultadas apenas fontes não confiáveis ou parciais. Isso arranca suspiros de saudades do bom e velho jornalismo praticado por figuras como Talese e outros – infelizmente, quase em extinção.
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*Michelson Borges, jornalista e mestre em Teologia
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