quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Mulher na direção

 Luis Fernando Veríssimo*


O preconceito masculino contra as mulheres tem uma longa história, que vai desde a atribuição da origem de todos os males do mundo ao mitológico vaso (leia-se o útero) de Pandora até a última anedota sobre algum incompreensível (para os homens) hábito feminino. O preconceito tem um lado obscuro e doentio - a misoginia é um traço comum a toda a tradição judaico-cristã, e não vamos nem falar nos extremos de ambiguidade que a mulher provoca na cultura islâmica - mas manifesta-se também nessa persistente perplexidade que a mulher causa no homem, e que já é mais folclórica do que qualquer outra coisa. De acordo com o folclore, homem jamais entenderá a organização de uma bolsa feminina. Homem jamais se acostumará com a peculiar noção de tempo e pontualidade da mulher, e menos ainda com a sua lógica. E homem, decididamente, jamais confiará em mulher na direção.

"Homem jamais se acostumará com a
peculiar noção de tempo e pontualidade da mulher,
e menos ainda com a sua lógica."

Se você é homem, pense na seguinte situação: você está num táxi e um carro na sua frente acaba de realizar uma manobra, digamos, não ortodoxa. O motorista do táxi buzina, reclama e, na ultrapassagem, vê que quem está dirigindo o carro infrator é uma mulher. Comenta:
- Só podia ser. Mulher na direção...
Você faz o que? Diz ao motorista que ele está sendo antiquado e injusto, que já há quase tantas mulheres quanto homens dirigindo carros, inclusive táxis, e que a maioria não faz loucuras, ou pelo menos mais loucuras do que homens, na direção? Ou sorri, sacode a cabeça e concorda com o motorista?
Confesse: você concorda com o motorista. Você é um cara esclarecido, livre de qualquer forma de intolerância, sem resquícios obscurantistas, mas concorda com o motorista. Ele e você pertencem à mesma irmandade, a do pomo de Adão e do xixi em pé, e nada, nem mesmo o bom senso, os fará abandonar suas convicções atávicas. Mulher na direção está invadindo um território que não é dela. É uma ameaça aos seus domínios.
É verdade que, depois de domingo, nosso hipotético motorista talvez mudasse seu comentário irado. Depois de dizer "Viu só? Mulher na direção...", acrescentaria: "Sem querer falar em política, claro."
Números. Por falar em mitos, tem um que está se criando sem justificativa. Não foi a votação da Dilma no Norte e no Nordeste que lhe deu a vitória. Mesmo sem a vantagem que teve na região ela venceria o Serra com os votos que recebeu nas outras regiões do País. Só seria mais apertado. A ideia de um Brasil atrasado derrotando o Brasil mais politizado e sofisticando não se sustenta nos números.
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* Cronista. Escritor. Colunista da ZH e Estadão
Fonte: Estadão online, 04/11/2010

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