sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O desencanto do mundo e o desafio de Ratzinger



O Papa aposta nas contradições da modernidade.
Se a busca e a esperança de um mundo mais justo fracassaram,
então permanece só a Salvação.

Publicamos aqui um trecho do livro de Paolo Flores D'Arcais*, intitulado "La sfida oscurantista di Joseph Ratzinger" [O desafio obscurantista de JR], publicado pela editora Ponte alle Grazie. O texto foi publicado no jornal La Repubblica, 05-11-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.

Ratzinger apostou no fracasso do pós-Iluminismo (liberal, socialista, democrático) em que nós esperávamos viver, que prometia, em nome da ciência e de uma humanidade livre, a satisfação no aquém, a segurança e o desenvolvimento para todos e para cada um.

O Papa da Reconquista vê a grande chance para a Verdade católica no impasse de uma finitude sem futuro, que concede a todo sapiens sapiens só o hic et nunc do consumo imediato e efêmero, mas subtrai qualquer densidade de sentido, qualquer radicamento de história, qualquer identidade coletiva de solidariedade. Prolongam-se as expectativas de vida, a medicina permite que se prolongue o bios dos corpos, órgão por órgão, mas se dilatam, ao invés de se contraírem, os medos ligados à nossa materialidade: não só a doença, o sofrimento e uma morte que até procrastinada parecerá prematura, mas também o pesadelo da inadequação, em uma hibris assintótica de cirurgia estética que jamais irá satisfazer.
Uma modernidade "cansada e desesperada", como disse o cardeal Biffi, se oferece ao olhar do Papa teólogo como terra de conquista para uma cruzada capaz de oferecer-lhe já hoje a jangada daquilo que lhe falta – esperança, identidade e comunhão – e amanhã até um acolhedor porto seguro, se se der o passo crucial da conversão, o "salto mortal" da liberdade à obediência. Essa é a convicção e a aposta. O mundo se debate, já é até "líquido". A Igreja, pelo contrário, é promessa de terra firme.
Ratzinger compreendeu todas as fraquezas do seu inimigo. Aparentemente, a secularização triunfou. Na realidade, se a esperança da justiça no aquém falha, fracassa o próprio futuro e retorna óbvio e prepotente o primado da Salvação (qualquer que seja). Enquanto houver luta, há esperança, de fato, mas o contrário também é verdade; e como só a luta-esperança oferece identidade e sentido, com a extinção de toda esperança-luta, abre-se a caixa de Pandora das identidades substitutivas à esperança perdida. Independentemente se sagradas ou profanas, mas as sagradas possuem o não insignificante valor acrescido da eternidade.
Acrescentemos alguns detalhes.
No plano estritamente político, pense-se na crise do welfare. Quem se aproxima da vida adulta pertence à primeira geração (há séculos!) que vive pior do que seus próprios pais. A Europa está em crise antes ainda de nascer verdadeiramente, visto que "integrou" por baixo, com relação aos direitos sociais, a Grã-Bretanha antes e os Estados do Leste depois. Ernst-Wolfgang Böckenförde tem do que se enfurecer com o seu "o Estado liberal e secularizado se alimenta talvez de propósitos normativos que eles não é capaz de garantir".
Acrescentemos o fracasso do comunismo, ótimo em si mesmo. Era também, porém, o álibi que permitiu que as democracias realmente existentes não tivessem que prestar contas – até a última geração – das "traições" com relação a seus próprios princípios. Agora, são chamadas ao redde rationem da prometida "busca da felicidade", adornado nas Constituições e ultrajado na escória da cotidianidade de governo.
Até mais importante é quanto Ratzinger é capaz de lucrar no lado cultural da modernidade em crise, sacudida pelas aporias que colocam em risco as suas duas arquitraves, a ciência e o universalismo.
A ciência, em primeiro lugar. Que, no seu uso prático, na sua "implementação" como técnica, não manteve e, ao invés, contradisse as esperanças suscitadas. Sob um duplo perfil: o controle sempre mais invasivo do homem sobre a natureza, propiciado por um progresso tecnológico exponencial, ao invés de difundir segurança, desencadeia uma série de temores, até o catastrofismo, justificados pelo excesso incontrolado, irracional, ecologicamente destrutivo do seu proceder. Isso, por outro lado, ao invés de difundir uma riqueza mais igualmente distribuída, aumenta de modo abissal o abismo da desigualdade (entre os países e dentro de cada um deles).
As duas "heterogêneses dos fins" possuem, pelo contrário, uma sinergia. Na realidade, a ciência é inculpável, se entendida como busca matematizada e empírica dos "segredos" da natureza. Pânico e raiva, mais do que fundados, nascem do uso associal, por lucro e por poder, que os grupos dominantes fazem dele.
O universalismo, em segundo lugar (mas certamente não por importância). Diante da incapacidade ou da não vontade dos governos de fornecer os pressupostos materiais e culturais da igualdade, e do declínio dos movimentos de luta que a mantêm na ordem do dia como valor para todos (incluindo os imigrantes), a sereia do multiculturalismo encanta a muitos, a bandeira da igual dignidade que, das existências irrepetíveis e singulares que todos nós somos, emigra (é preciso dizer) às comunidades etnico-culturais.
Metamorfoses, de fato, nada inócuas, porque uma comunidade pode ser livre e respeitada, sem que os indivíduos que lhe pertencem sejam livres e respeitados. O que acontece pontualmente em toda "cultura" iliberal e patriarcal (até às identidades de fé, sangue, solo), onde o slogan cativante do "igual reconhecimento" oculta renovadas servidões, mesmo que "voluntárias". Da mulher, em primeiro lugar.
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*  Paolo Flores d'Arcais (Cervignano del Friuli, província de Udine, Itália, 11 de julho de 1944) é um filósofo italiano, jornalista e editor. Fonte: IHU online, 05/11/2010
Responsável pela revista MicroMega, publica regularmente seus artigos em jornais de prestígio na Europa, como El Pais (Espanha) Frankfurter Allgemeine Zeitung (Alemanha), Gazeta Wyborcza (Polónia).
Seus ensaios muitas vezes são baseadas no pensamento de Albert Camus e Hannah Arendt. Ideologia é ateu e militante secular.
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