segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Sou

 L. F. VERISSIMO*


Sou contra qualquer tipo de intolerância. Acho que os intolerantes deveriam ser presos, condenados sem julgamento e esquartejados.

Sou tão careta que ainda uso o termo “careta”.

Sou devoto de São Esdras, como o saudoso Ciro Monteiro, segundo o saudoso Borjalo. Ciro Monteiro rezava para São Esdras porque era um santo desconhecido e, ao contrário de santos muito requisitados como Antonio, Judas Tadeu, etc., todos sobrecarregados de pedidos e trabalho, tinha tempo ocioso para atendê-lo, ficava radiante por ser lembrado e se esforçava para mostrar serviço. Ciro Monteiro estava certo. Tenho apelado para São Esdras e até agora não posso me queixar. O grande teste vai ser este final de campeonato. Minha única preocupação é, se o Internacional ganhar, descobrirem que foi obra de São Esdras, ele ficar famoso como milagreiro e aí adeus atendimento personalizado.

Sou contra essas moças que andam em lugares públicos com saias pelos joelhos ou calças folgadas e blusas sem decote. Elas precisam pensar no exemplo que estão dando!

Sou a favor de nova tecnologia para ajudar os juízes no futebol. Como um dispositivo que, em caso de mão como a do Thierry Henry ou pênaltis o juiz leve à boca, assopre e... Mas espera aí, isso já existe.

Sou contra mudanças em geral. Se dependesse de mim, telefone ainda teria manivela. Seria um incômodo, certo, mas pense no lado positivo: não existiria o celular.

Sou a favor da reforma ortográfica, só fiquei com um certo remorso por nunca ter usado o trema. Não era implicância ou preconceito, era apenas um lapso, como o de nunca ter usado a palavra “outrossim” num texto. Outrossim (finalmente!) , gostei da eliminação do circunflexo, um ridículo chapeuzinho tão fora de moda quanto o turbante. Mas nunca ter usado o trema , aquela mordidinha de vampiro em cima de certos “us”, foi imperdoável. Agora é tarde.

Sou contra o aquecimento global , a favor do aleitamento materno, contra a hipocrisia e a prepotência, a favor da paz entre as nações e, não me perguntem por que, contra água na Lua.
*Escritor. Colunista da ZH.
FONTE: ZH, 30/11/2009

Quem deve cuidar do Planeta?

Leonardo Boff *


Um teólogo famoso, no seu melhor livro - Introdução ao Cristianismo - ampliou a conhecida metáfora do fim do mundo formulada pelo dinamarquês Sören Kierkegaard, já referida nesta coluna. Ele reconta assim a história: num circo ambulante, um pouco fora da vila, instalou-se grave incêndio. O diretor chamou o palhaço que estava pronto para entrar em cena que fosse até à vila para pedir socorro. Foi incontinenti. Gritava pela praça central e pelas ruas, conclamando o povo para que viesse ajudar a apagar o incêndio. Todos achavam graça pois pensavam que era um truque de propaganda para atrair o público. Quanto mais gritava, mais riam todos. O palhaço pôs-se a chorar e então todos riam mais ainda. Ocorre que o fogo se espalhou pelo campo, atingiu a vila e ela e o circo queimaram totalmente. Esse teólogo era Joseph Ratzinger. Ele hoje é Papa e não produz mais teologia mas doutrinas oficiais. Sua metáfora, no entanto, se aplica bem à atual situação da humanidade que tem os olhos voltados para o país de Kierkegaard e sua capital Copenhague. Os 192 representantes dos povos devem decidir as formas de controlar o fogo ameaçador. Mas a consciência do risco não está à altura da ameaça do incêndio generalizado. O calor crescente se faz sentir e a grande maioria continua indiferente, como nos tempos de Noé que é o "palhaço" bíblico alertando para o dilúvio iminente. Todos se divertiam, comiam e bebiam, como se nada pudesse acontecer. E então veio a catástrofe.

Mas há uma diferença entre Noé e nós. Ele construiu uma arca que salvou a muitos. Nós não estamos dispostos a construir arca nenhuma que salve a nós e a natureza. Isso só é possível se diminuirmos consideravelmente as substâncias que alimentam o aquecimento. Se este ultrapassar dois a três graus Celsius poderá devastar toda a natureza e, eventualmente, eliminar milhões de pessoas. O consenso é difícil e as metas de emissão, insuficientes. Preferimos nos enganar cobrindo o corpo da Mãe Terra com band-aids na ilusão de que estamos tratando de suas feridas.

Há um agravante: não há uma governança global para atuar de forma global. Predominam os Estados-Nações com seus projetos particulares sem pensarem no todo. Absurdamente dividimos esse todo de forma arbitrária, por continentes, regiões, culturas e etnias. Sabemos hoje que estas diferenciações não possuem base nenhuma. A pesquisa científica deixou claro que todos temos uma origem comum, pois que todos viemos da África.

Consequentemente, todos somos coproprietários da única Casa Comum e somos corresponsáveis pela sua saúde. A Terra pertence a todos. Nós a pedimos emprestado das gerações futuras e nos foi entregue em confiança para que cuidássemos dela.

Se olharmos o que estamos fazendo, devemos reconhecer que a estamos traindo. Amamos mais o lucro que a vida, estamos mais empenhados em salvar o sistema econômico-financeiro que a humanidade e a Terra.

Aos humanos como um todo se aplicam as palavras de Einstein: "somente há dois infinitos: o universo e a estupidez; e não estou seguro do primeiro". Sim, vivemos numa cultura da estupidez e da insensatez. Não é estúpido e insano que 500 milhões sejam responsáveis por 50% de todas as emissões de gases de efeito estufa e que 3,4 bilhões respondam apenas por 7% e sendo as principais vitimas inocentes? É importante dizer que o aquecimento mais que uma crise configura uma irreversibilidade. A Terra já se aqueceu. Apenas nos resta diminuir seus níveis, adaptarmo-nos à nova situação e mitigar seus efeitos perversos para que não sejam catastróficos. Temos que torcer para que em Copenhague entre 7 e 18 de dezembro não prevaleça a estupidez mas o cuidado pelo nosso destino comum.

* Teólogo, filósofo e escritor [Autor de Opção-Terra. A solução para a Terra não cai do céu, Record 2009].
FONTE: Adital, 30/11/2009

O apocalipse está chegando? Talvez, mas não em 2012

DENNIS OVERBYE


Não há por que temer o fim do calendário maia

A Nasa, agência espacial americana, garantiu recentemente que o mundo não vai acabar -ao menos não em breve. No ano passado, o Centro Europeu de Pesquisa Nuclear (Cern) disse a mesma coisa, o que suponho que seja uma boa notícia para pessoas habitualmente nervosas como nós.

Por outro lado, a notícia é ruim para quem estava ansioso para tirar férias da hipoteca a fim de financiar um último surto consumista. As declarações do Cern se destinavam a afastar os temores de que um buraco negro escaparia do seu Grande Colisor de Hádrons e sugaria a Terra.

Já os anúncios da Nasa, na forma de posts em sites e de um vídeo no YouTube, eram uma resposta às preocupações de que o mundo acabará em 21 de dezembro de 2012, quando supostamente termina um ciclo de 5.125 anos do calendário maia, a Longa Contagem.

O burburinho apocalíptico atingiu o auge com o lançamento do filme "2012", de Roland Emmerich. Nesse filme, um alinhamento entre o Sol e o centro da galáxia, em 21 de dezembro de 2012, causa violentas tempestades na superfície solar, liberando enormes quantidades de partículas subatômicas chamadas neutrinos.

De alguma forma os neutrinos se transformam em outras partículas e aquecem o núcleo da Terra, cuja crosta então se enfraquece e começa a deslizar sobre a superfície. Los Angeles cai no oceano; o vulcão Yellowstone explode, polvilhando o continente com cinza negra; maremotos varrem o Himalaia, onde os governos do planeta secretamente construíram uma frota de arcas em que seletas 400 mil pessoas podem escapar da tempestade.

Mas essa é apenas uma das versões do apocalipse que circulam. Em outras variações, um planeta chamado Nibiru colide conosco, ou o campo magnético da Terra é revirado. Tudo isso, segundo os astrônomos, é absurdo.

"A maioria do que se diz para 2012 se sustenta em pensamento desejoso, tolice pseudocientífica, ignorância da astronomia e um nível de paranoia digno de 'A Noite dos Mortos-Vivos'", escreveu Ed Krupp, diretor do Observatório Griffith, de Los Angeles, em artigo na edição de novembro do periódico "Sky & Telescope".

Assustar o público é parte do jogo desde que Orson Welles transmitiu "A Guerra dos Mundos", um falso noticiário de rádio sobre uma invasão marciana em Nova Jersey, em 1938.

Mas a tendência tem ido longe demais, sugeriu David Morrison, astrônomo da Nasa na Califórnia, que fez o vídeo do YouTube e é um dos funcionários da agência encarregados de falar sobre as profecias apocalípticas. "Fico irritado com o jeito como as pessoas estão sendo manipuladas e assustadas para que [outros] ganhem dinheiro", disse.

Os cientistas dizem que, se é para se preocupar, é melhor pensar na mudança climática, em asteroides à deriva ou numa guerra nuclear. Mas, se especulações sobre antigas profecias lhe entusiasmam, eis algumas coisas que Morrison e outros acham que você deve saber.

Para começar, concordam os astrônomos, não há nada de especial sobre o alinhamento do Sol com o centro galáctico. Acontece todo mês de dezembro, sem nenhuma consequência física.

Se houvesse um planeta vindo na nossa direção, todo o mundo já poderia vê-lo. Quanto às terríveis tempestades solares, o próximo pico de uma mancha solar só irá acontecer em 2013 e será brando, segundo os especialistas.

O apocalipse geológico é uma aposta melhor. Um grande terremoto na Califórnia pode destruir Los Angeles, como mostra o filme, e o Yellowstone cedo ou tarde pode entrar em erupção de novo com a força de um cataclismo. Mas "cedo ou tarde" significa centenas de milhões de anos, e haveria vários alertas.

Os maias, que sabiam de astronomia e contagem do tempo o suficiente para prever a posição de Vênus até 500 anos depois, mereciam algo melhor.

O tempo maia era cíclico, e especialistas como Krupp e Anthony Aveni, respectivamente astrônomo e antropólogo da Universidade Colgate (EUA), dizem não haver evidência de que os maias pensassem que algo especial aconteceria ao final desta Longa Contagem, em 2012. Sendo assim, trate de continuar pagando a hipoteca.

FONTE: Folha de São Paulo The New York Times - 30/11/2009

Arsênico

LUIZ FELIPE PONDÉ*

Muitos escravos livres e com dinheiro se apressavam em comprar seus escravos

DEVO ESTAR atravessando um período masoquista. Depois da experiência "2012 retardados", que partilhei com você, caro leitor, na semana passada, no final do feriadão da Consciência Negra assisti na TV a cabo a outro lixo, "O Dia em que a Terra Parou", com Keanu Reeves no papel de um ET. Ele é, claro, melhor do que nós, humanos bárbaros.

Para salvar a Terra, ele deve matar 6 bilhões de pessoas. Mas por quê? Porque nós estamos destruindo o planeta, por isso, devemos morrer para salvar as baleias, as baratas e os sacis. O Keanu-ET é uma espécie de "fundamentalista verde intergaláctico" que, por "ser bonzinho", prefere os percevejos aos humanos.

O ET verde só desiste de nos matar "em nome do bem dos siris" quando provamos pra ele que "yes, we can change" (sim, nós podemos mudar) -mantra obamista. O incrível é que tem gente que acha isso legal: nós somos maus, mas os insetos são dignos de redenção cósmica. Está vendo, caro leitor? A cada minuto nasce um retardado entre nós.

Falando em Consciência Negra, sempre achei essa história do "santo Zumbi" mal contada. O fato é que as mesmas pessoas que criticam as vidas de santos católicos em nome da "verdade histórica" caem na mesma armadilha, produzindo hagiografias (vida de santos) ao sabor de suas próprias manias políticas, como no caso de Zumbi, Lamarca, Che Guevara. Quer saber? Prefiro os santos católicos.

Ouvi dizer que Zumbi tinha seus escravos em meio a sua "Nova Atlântida". Incrível! Já sabia, por fonte segura, que muitos escravos, quando ficavam livres e tinham dinheiro, apressavam-se em comprar também seus escravos. Danadinhos...

Não que eu seja contra o feriado da Consciência Negra, muito pelo contrário, "minha religião" é a favor do maior número possível de feriados, pouco importa em nome da consciência de quem for. Não sou esse tipo de pessoa que discursa contra feriados para fingir que é produtiva. Pelo contrário, quanto mais dias nacionais da preguiça, melhor.

Mas eu dizia que o feriadão não foi de todo perdido para minha pobre alma filosófica. Entre outras coisas boas, li o "LTI - A Linguagem do Terceiro Reich", de Victor Klemperer, (Contraponto). Magnífico, deveria ser lido por toda essa gente com pendores fascistas que anda à solta por aí. Termos como "construção de um novo homem", "nova consciência", "autoestima nacional", "nova cultura", "a força jovem" e "novo futuro" são de raiz fascista. Ouvi e li muitos deles por ocasião da Consciência Negra.

Entre tantas coisas importantes, uma que me chamou atenção foi o fato de que, segundo Klemperer, a linguagem do Terceiro Reich era pobre no que se refere a descrições da natureza humana.

Sei que tem gente que tem alergia a essa expressão, "natureza humana", mas tomem alguma medicação quando ouvi-la, como eu faço quando ouço coisas que me aborrecem por aí, como "construção social de novas subjetividades".

Dentro de sua mania de "redefinir" os significados das palavras, os nazistas descreviam a natureza humana apenas dentro do modelo que lhes era interessante: força, solidariedade coletiva, pureza, saúde, eficácia, fidelidade ao grupo. O efeito desse processo (comparado a doses homeopáticas de arsênico para o espírito do povo alemão da época) era o estreitamento da visão da natureza humana, visando a exclusão das contradições que nos caracterizam. São essas contradições que os retardados não suportam.

Incrivelmente, diz Klemperer, a Alemanha não parecia ter muitos recursos mentais para resistir à concordância em massa com esse empobrecimento da linguagem.

A pergunta é: teríamos nós hoje? A tendência da linguagem a se tornar pobre é sempre presente quando nos lançamos em campanhas que visam a construção social de comportamentos, pouco importa o sistema de governo, porque uma língua empobrecida é uma língua envenenada. O que nos enriquece são nossas contradições, nossos erros. Por isso, sempre serei contra qualquer tentativa de construir um "novo homem"; prefiro o "velho homem" e suas misérias.

Quer um exemplo de contradição? Se Zumbi, depois de sofrer o horror da escravidão e de ter conseguido fugir desse horror, tiver comprado escravos para seu uso, aí sim, ele é um nosso igual, com o mesmo rosto. O nosso rosto. Sombrio, às vezes corajoso, às vezes cruel, sempre imperfeito.

*Possui graduação em FIlosofia Pura pela Universidade de São Paulo (1990), mestrado em História da Filosofia Contemporânea pela Universidade de São Paulo (1993), DEA em Filosofia Contemporânea - Universite de Paris VIII (1995), doutorado em Filosofia Moderna pela Universidade de São Paulo (1997) e pós-doutorado (2000) em Epistemologia pela University of Tel Aviv. Atualmente é professor assistente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor titular da Fundação Armando Álvares Penteado. Outros vínculos significativos em pós-graduação: Escola Paulista de Medicina, Unifesp, professor e pesquisador convidado (2007) , University of Warsaw, professor convidado (2007), Universität Marburg, professor e pesquisador convidado (2002 e 2003) - University Of Tel Aviv, pesquisador (1999 a 2000) - Universite de Paris VIII, pesquisador (1994 a 1996) - Universidad de Sevilla, professor convidado (2005) - Universite Catholique de Louvain (2002 até o presente) e colunista exclusivo do Jornal Folha de S. Paulo. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Ciências da Religião e Filosofia da Religião, atuando principalmente nos seguintes temas: religião, mística, santidade, angústia, modernidade/Pós-modernidade e epistemologia. (Texto informado pelo autor)
ponde.folha@uol.com.br
FONTE: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq3011200917.htm

Butão: o reino que quis medir a felicidade



E se os indicadores econômicos não fosse suficientes para medir o bem-estar de uma sociedade? Há 35 anos, em um isolado reino do Himalaia, um carismático rei decidiu que era mais importante a felicidade interna bruta do que o produto interno bruto. Hoje, o Butão é a democracia mais jovem do mundo e o exótico campo de testes de um dos debates mais interessantes do pensamento econômico global.

A reportagem é de Pablo Guimón, publicado no jornal El País, 29-11-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.


Por trás das grandes histórias, costuma haver grandes personagens. E ninguém que tenha visitado seu pequeno reino do Himalaia poderá negar esse qualificativo a Jigme Singye Wangchuck (foto), quarto rei do Butão, cuja aura misteriosa e novelesca parece ser respirado em cada um dos lares deste país do tamanho da Suíça, com apenas 700 mil habitantes, ao qual o quarto rei converteu no ano passado na democracia mais jovem do mundo.

Em uma semana no país, não foi possível ouvir uma só palavra ruim sobre Jigme Singye Wangchuck, educado no Reino Unido, casado com quatro irmãs e pai de 10 filhos, um dos quais é o atual rei. Em troca, o relato de suas virtudes se repete até cansar. Que ele vive sozinho em uma cabana modesta. Que quando as pessoas se ofereceram para lhe construir um castelo, ele disse que não, que empregassem o dinheiro e o tempo na construção de escolas e de hospitais. Que é compassivo, sábio, que sacrificaria tudo por seu povo. Que foi o primeiro a se oferecer para defender o país com suas próprias mãos quando teve que lutar, em 2003, contra os rebeldes separatistas de Assan, que cruzavam a fronteira e se ocultavam nos densos bosques do Butão para lançar ataques contra a Índia.

"É um rei deus. O único rei da história da humanidade que merece esse apelido. Muitos povos, por muitos motivos, veneraram seus mandatários. Mas ele é especial. É uma mente iluminada. É como um buda". Talvez não seja preciso ir tão longe como Ashi Sonan Choden Dorji, de 41 anos, a irmã menor das quatro rainhas, que define seu cunhado assim, tomando chá no elegante salão de sua casa nos arredores da capital. Mas a palavra "visionário" poderia ser aceita se se levar em conta que o rei cunhou, há 35 anos, um termo que hoje, neste cenário de pós-comunismo e do pós-capitalismo selvagem, constitui o centro de um dos debates mais interessantes que estão se produzindo no pensamento econômico mundial. Um debate ao qual se voltaram prêmios Nobel como Joseph E. Stiglitz ou Amartya Sen e líderes ocidentais como Nicolas Sarkozy ou Gordon Brown.

No dia 02 de junho de 1974, em seu discurso de coroação, Jigme Singye Wangchuck disse: "A felicidade interna bruta é muito mais importante do que o produto interno bruto". Ele tinha 18 anos e se convertia, após a repentina morte de seu pai, no monarca mais jovem do mundo.

Não foi um mero slogan. A partir daquele dia, a filosofia da felicidade interna bruta (FIB) guiou a política do Butão e seu modelo de desenvolvimento. A ideia é que o modo de medir o progresso não deve se basear estritamente no fluxo de dinheiro. O verdadeiro desenvolvimento de uma sociedade, defendem, tem lugar quando os avanços no material e no espiritual se complementam e se reforçam um ao outro. Cada passo de uma sociedade deve ser avaliado em função não apenas de seu rendimento econômico, mas também se leva ou não à felicidade.

Dois fatores podem explicar que essa espécie de terceira via de desenvolvimento tenha sido levada à prática precisamente aqui, neste isolado reino do Himalaia. Por um lado, estão as suas profundas raízes na filosofia budista. E por outro, o proverbial atraso do Butão em sua abertura ao mundo. O lama reencarnado Mynak Trulku explica o primeiro fator: "A felicidade interna bruta se baseia em dois princípios budistas. Um deles é que todas as criaturas vivas buscam a felicidade. O budismo fala de uma felicidade individual. Em um plano nacional, cabe ao governo criar um entorne que facilite aos cidadãos individuais encontrar essa felicidade. O outro é o princípio budista do caminho do meio".


E isso se entrelaça com o segundo fator, que é explicado por Lyonpo Thinley Gyamtso (foto), ex-ministro do Interior e da Educação: "Existem os países modernos, e depois existe o que era o Butão até os anos 70. Medieval, sem estradas, sem escolas, com a religião como único guia. São dois extremos, e a FIB busca o caminho do meio".

A televisão chegou ao Butão em 1999, ao mesmo tempo em que a Internet. Thimpu é hoje a única capital do mundo sem semáforos, e o aeroporto internacional conta com uma única pista. Esse atraso na modernização permitiu que o Butão, um pequeno país encaixado entre os dois Estados mais povoados da Terra, a Índia e a China, aprendesse com os erros dos outros países vizinhos em desenvolvimento que se centraram exclusivamente no progresso econômico.

A medida da felicidade

O conceito butanês da felicidade interna bruta se sustenta sobre quatro pilares, que devem inspirar cada política do governo. Os pilares são:

1.Um desenvolvimento sócio-econômico sustentável e equitativo
2.A preservação e promoção da cultura
3.A conservação do meio ambiente
4.O bom governo

Para levar isso à prática, o quarto rei criou em 2008 uma nova estrutura internacional ao serviço dessa filosofia, com uma comissão nacional da FIB e uma série de comitês em nível local.

O que medimos afeta o que fazemos. Se os nossos indicadores medem só quanto produzimos, nossas ações tenderão só a produzir mais. Por isso, era preciso converter a FIB de uma filosofia a um sistema métrico. E isso é o que o quarto rei encomendou ao Centro de Estudos Butaneses, que anos depois apresentou um índice para medir a felicidade.

A matéria-prima é um questionário que os cidadãos butaneses irão responder a cada dois anos. A primeira pesquisa foi realizada entre dezembro de 2007 e março de 2008. Um total de 950 cidadãos de todo o país responderam a um questionário com 180 perguntas agrupadas em nove dimensões:

•Bem-estar psicológico
•Uso do tempo
•Vitalidade da comunidade
•Cultura
•Saúde
•Educação
•Diversidade ambiental
•Nível de vida
•Governo

Essas são algumas perguntas do questionário: "Você definiria sua vida como: a) Muito estressante; b) Um pouco estressante; c) Nada estressante; d) Não sei". "Você perdeu muito o sono por causa de suas preocupações?". "Percebeu mudanças no último ano no desenho arquitetônico das casas do Butão?". "Em sua opinião, quão independentes são os nossos tribunais?". "No último mês, com que frequência você socializou com seus vizinhos?". "Você conta contos tradicionais a seus filhos?".


Uma vez processada a informação das pesquisas, determina-se em que medida cada lar alcançou a suficiência em cada uma das nova dimensões, estabelecendo valores de corte. A cada indicador em que um lar alcançou ou superou o valor de corte, atribui-se um zero. Quando o pesquisado não chegou ao valor de corte de um indicador, diminui-se o resultado do valor de corte e se divide o resto pelo próprio valor de corte. Por exemplo, se o limite da pobreza é 8, e o pesquisado alcançou 6, o resultado é (8-6) / 8 = 0,25.

Então, como se determina quem é feliz? É feliz aquela pessoa que alcançou o nível de suficiência em cada uma das nove dimensões (0). E como se determina a felicidade interna bruta? FIB = 1 - (a média do quadrado das distâncias com relação aos valores de corte).

Já temos, pois, o valor da felicidade. Mas é só isso, um número. O passo seguinte é comparar a FIB dos diversos distritos. Compará-la ao longo do tempo. Decompor o índice por dimensões, por gêneros, por ocupações, grupos de idades etc. E assim, a FIB pode ser usada como instrumento para orientar políticas.

Modelo não exportável?

A determinação para medir a felicidade nascida daquele discurso de coroação do quarto rei do Butão pode ser vista como um caso pitoresco ou enternecedoramente naïf a partir das poderosas economias ocidentais. Mas a mesma inquietação começa a ocupar as agendas de influentes presidentes e eminências da economia em nível mundial. Em fevereiro de 2008, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, criou a Comissão Internacional para a Medição do Desempenho Econômico e o Progresso Social, devido, nas palavras de seu diretor, o professor da Universidade de Columbia e prêmio Nobel de Economia, Joseph E. Stiglitz, "à sua insatisfação, e a de muitos outros, com o estado atual da informação estatística sobre a economia e a sociedade".

"A grande interrogação", continuava Stiglitz, "implica em saber se o PIB oferece uma boa medição dos níveis de vida". E os resultados da comissão, apresentados no último mês de setembro, confirmaram as suspeitas de Sarkozy: o PIB é utilizado de forma errônea quando aparece como medida de bem-estar. Mas também há quem advirta sobre os riscos de ampliar a variedade de estatísticas econômicas, que poderia permitir que os governos se agarrem a umas ou outras como quiserem, em detrimento da objetividade.


O Butão não deve ser (nem pretende ser) um exemplo para outros Estados. As peculiaridades do país tornam sua experiência não exportável. O Butão é uma das menores economias do mundo, baseada na agricultura (à qual 80% da população se dedica), na venda de energia hidráulica para a Índia e no turismo. E é um país altamente dependente da ajuda externa. A taxa de alfabetização é de 59,5%, e a expectativa de vida, 62,6 anos.

Provavelmente, o conceito da FIB soe como chinês às remotas tribos de pastores nômades do leste, que se vestem com peles de yak, praticam uma religião animista e oferecem animais sacrificados a seus deuses nas montanhas. E ainda mais aos 100 mil cidadãos da minoria étnica nepali que vivem em campos de refugiados no Nepal desde o começo dos anos 90, depois de terem sido expulsos do Butão pelo governo.

Mas em 2007 o Butão foi a segunda economia que mais rápido cresceu no mundo. A educação, gratuita e em inglês, chega hoje a quase todos os cantos do país. Em um estudo realizado em 2005, 45% dos butaneses declarou se sentir "muito feliz", 52% reportou sentir-se "feliz", e só 3% disse não ser feliz. No "Mapa-Múndi da Felicidade", uma investigação dirigida pelo professor Adrian White, da Universidade de Leicester (Reino Unido) em 2006, o Butão foi o oitavo país mais feliz dos 178 países estudados (atrás da Dinamarca, Suíça, Áustria, Islândia, Bahamas, Finlândia e Suécia). E era o único entre os 10 primeiros com um PIB per capita muito baixo (5.312 dólares em 2008, seis vezes menor do que el espanhol).

O sol ilumina intensamente a cidade de Thimpu neste sábado pela manhã. A vida transcorre sem pressa. As tendas do mercado de verduras oferecem os ricos produtos autóctones. Há deliciosas pimentas vermelhas e verdes, lustrosas berinjelas, tomates de árvore, dezenas de tipos de maças e arroz vermelho do Himalaia. Há orquídeas, cuja uma das variedades é comestível, contribuindo com uma textura fibrosa e um sabor amargo aos molhos de pimenta ou de carne. E há noz de areca que, untada com lima e envolvida em folha de betel, tinge de vermelho os dentes e os escarradores dos butaneses que a mastigam, envolvidos em seu leve efeito narcótico. Um substituto do tabaco, cuja venda é proibida no país.

Alguns jovens celebram um campeonato de tiro com arco, o esporte nacional, e dançam e entoam canções tradicionais quando sua equipe acerta o alvo colocado a 145 metros de distância. Outros dormem depois de se divertir até altas horas da noite em karaokês e clubes não muito diferentes do que se pode encontrar em qualquer pequena cidade ocidental. Thimpu tem um certo ambiente urbano, mitigado pelo fato de que, por lei, os edifícios devem ser construídos seguindo determinadas regras da arquitetura tradicional.

A maioria das pessoas, inclusive aqui na cidade, veste a veste tradicional butanesa, que a lei impõe em determinadas áreas públicas, para reforçar a identidade cultural butanesa (um dos pilares da FIB). O dos homens é um vestido de uma só peça de tecido que chega até os joelhos e é atada com um cinturão. As mulheres usam um vestido até os tornozelos. Nos atos oficiais, os homens usam um grande cachecol, chamado de kabney, cuja cor indica o cargo da pessoa: amarelo para o rei, laranja para os ministros e outras autoridades seletas, azul para os parlamentares, branco para o povo comum.

Lyonpo Sonam Tobgye, presidente do Poder Judicial, é um dos poucos butaneses que pode usar a kabney laranja. E seu uniforme particular se completa com uma imponente espada que leva amarrada na cintura. "A espada é o poder, e a kabney é a honra. Quando me aposentar, a espada vai embora, mas a kabney fica", diz, e solta uma sonora gargalhada, sentado em seu escritório, presidido (adivinhem) por uma fotografia do quarto rei do Butão. Foi ele quem o rei encomendou, há exatamente oito anos, para dirigir a comissão que se encarregaria de redigir um rascunho de Constituição para o Butão. Talvez o primeiro grande passo para converter o Butão em uma democracia.

A construção de uma democracia

O que é habitual na história é que a democracia seja uma conquista do povo, produto muitas vezes de sangrentas lutas e revoluções. Mas no caso do Butão a democracia chegou pelo empenho do quarto rei, contra a vontade da maioria de seus súditos.

Em dezembro de 2005, Jigme Singye Wangchuck anunciou que abdicaria em favor de seu primogênito e que seriam realizadas eleições. "A democracia não entrou da noite para o dia", explica Lyonpo Sonam Tobgye, com a espada assomando por baixo de seu kabney laranja. "Foi um longo processo. Quando sua majestade disse que era preciso fazer uma Constituição, a ideia não foi aceita pelo povo. Não queríamos uma Constituição. Estávamos muito bem com o nosso passado. Tínhamos desenvolvimento, segurança, tínhamos progredido. Mesmo assim, sua majestade insistiu que era importante que tivéssemos uma Constituição. E o povo aceitou suas palavras, porque confiamos nele".


O comitê estudou "umas cem" constituições estrangeiras. Depois, ficaram com cerca de 20. Entre elas, uma lhes inspirou especialmente: a espanhola. "Lemos uma e outra vez", lembra. "É uma boa constituição. É muito progressistas. E você têm, como nós, uma monarquia constitucional. Vou lhe confessar uma coisa: lemos um pouco tarde. Se a tivéssemos visto antes, talvez não teríamos estudado tantas outras".

Entregaram um rascunho depois de 10 meses, que foi colocado na Internet para que os cidadãos e o mundo exterior o vissem. "Recebemos cerca de 400 comentários de todo o mundo: intelectuais, universidades, organizações de direitos humanos. Estudamos tudo isso, fizemos outro rascunho, e este foi distribuído ao povo".

Os reis, pai e filho, percorreram então todo o país, até as aldeias mais remotas, e celebraram reuniões nos povos para explicar e discutir o rascunho da Constituição. No dia 18 de julho de 2008, foi aprovada uma carta magna sem pena de morte para um país cujo delito mais comum é o espólio do patrimônio artístico e cujo artigo 9.2 estabelece: "O Estado se esforçará para promover as condições que permitam a obtenção da felicidade interna bruta".

No dia 24 de março de 2008, foram celebradas as eleições parlamentares. Apresentaram-se dois partidos, e quem ganhou (45 das 47 cadeiras) foi o Partido da Paz e da Prosperidade, do atual primeiro-ministro, Jigmi Thinley. E há um ano, em novembro de 2008, Jigme Khesar Namgyel Wangchuck, de 28 anos, filho de Jigme Singye Wangchuck, converteu-se no quinto rei do Butão, o primeiro monarca constitucional do país.

O sangue do novo rei reúne duas legitimidades. A de seu pai, dinastia que reina o Butão desde 1907, e a de sua mãe, que descende de Ngawang Mamgyal, líder de uma escola de budismo tibetano que, em 1616, exilou-se no que hoje é o Butão, aos 23 anos, e se converteu no primeiro governante do Butão unificado. O território se chamava então (ainda hoje é chamado assim por muitos butaneses) Druk Yul, ou a Terra do Dragão do Trovão. E foi outorgado ao líder o título de Zhabdrung, ou "aquele a cujos pés deve-se submeter".

Seu corpo embalsamado é guardado na torre central do Punakha Dzong, também conhecido como Templo da Felicidade, sede do poder medieval, onde foram coroados os cinco reis modernos. Uma joia da arquitetura butanesa, que o próprio Zhabdrung mandou construir na interseção de dois velozes rios, um macho e outro fêmea (isso dizem), em um promontório com uma trompa que cai até a água. O Guru Rinpoche, santo padroeiro do Butão, que trouxe o budismo tântrico para estas montanhas, já havia advertido no século VIII antes de Cristo: algum dia, disse, em um lugar que parece um elefante morto, alguém chamado Ngawang erguerá um templo. E se tiver êxito, unificará um país.

Potência em natureza

O carro avança pela serpenteante rodovia, e seria possível passar horas olhando as formas que as nuvens que parecem de algodão desenham contra o azul brilhante do céu e o manto verde intenso com que os frondosos bosques cobrem as importantes montanhas que rodeiam o valor de Punakha. Restam poucos dias para a colheita dos campos de arroz, que são semeados em junho, antes da monção, e que conferem ao vale uma cor queimada neste início de outono.

A maconha cresce livre nas valetas, mas só recentemente houve algum problema com o seu tráfico e cultivo. Tradicionalmente, ela tinha usos mais exóticos. Como lembra um ancião do lugar, nos internatos, os jovens untavam com maconha o solo para que os percevejos a comessem, andassem mais lentamentos e despistadas, e assim fosse mais fácil caçá-los.


O Butão é uma potência em plantas medicinais. "Os botânicos estrangeiros que vêm não dão crédito", explica Karma Phuntsho, do Escritório para a Pesquisa de Plantas Medicinais e Aromáticas. Entre as espécies mais estranhas está a yagtsa guen bub, ou "erva de verão e larva de inverno". Cresce a partir de 4.000 metros de altitude e é, ao mesmo tempo, animal e vegetal. Uma larva que afunda sob a terra e que, de sua cabeça, brota uma espécie de planta ou fungo, cujo corpo se converte em raiz. Tem propriedades rejuvenescedoras e afrodisíacas, e em Bangkok paga-se 10 mil dólares pelo quilo.

No sistema de saúde butanês, para doenças leves, os cidadãos podem escolher entre a medicina tradicional e a ocidental. E a exportação de plantas medicinais, explica Phuntsho, "tem um grande potencial para o país". "Contanto", adverte, "que sempre seja realizada de maneira sustentável".

Neste momento, a economia do Butão confia na bravura de seus rios para gerar energia hidráulica (esperam multiplicar por cinco sua produção nos próximos anos) e no turismo, uma indústria que nasceu nos anos 70. Nesse campo, segue-se uma política, entroncada com a filosofia da FIB, de "poucos visitantes, mas muito valor". O turista deve pagar uma tarifa de 220 dólares por dia, que inclui alojamento, refeições, entradas em museus, deslocamentos interiores e guia. Trata-se de manter um volume rentável, mas moderado, e evitar catástrofes ecológicas, estéticas e sociais como a que o turismo massivo provocou no vizinho Nepal.

E assim até que o país seja autossuficiente e deixe de depender da ajuda externa. "Fazemos um bom uso das ajudas. Há pouca corrupção, e os doadores gostam de se associar à ideia da FIB. Mas haverá um momento em que a ONU irá considerar que podemos nos valer por nós mesmos", explica o ministro Lyonpo Thinley Gyamtso. "Somos um país pequeno e queremos fazer as coisas assim. Não queremos ensinar nada ao mundo. Fazemos aquilo que acreditamos que é melhor para nós. E se o mundo acreditar que há algo para aprender, são mais do que bem-vindos".

FONTE: IHU/Unisinos, 30/11/2009

Crises globais, soluções locais

*Ladislau Dowbor

Com a passagem do milênio, a humanidade tornou-se dominantemente urbana. Isso implica outra racionalidade nos processos decisórios e nas instituições que nos regem, pois hoje cada região ou localidade tem núcleo urbano que pode administrar o seu desenvolvimento, e esse núcleo torna-se por sua vez um articulador natural do seu entorno rural. O desenvolvimento local permite a apropriação efetiva do desenvolvimento pelas comunidades, e a mobilização dessas capacidades é vital para um desenvolvimento participativo.

Tal discussão, que vem acontecendo há oito anos no âmbito da Expo Brasil Desenvolvimento Local, evento que, em 2009, acontece em São Paulo, se insere em um debate hoje planetário. Inúmeras experiências no mundo têm mostrado que o interesse individual das pessoas pelo progresso funciona efetivamente quando ancorado no collective self-interest de desenvolvimento integrado do território. Com sistemas simples de seguimento de qualidade de vida local, e a vinculação do acesso aos recursos à estruturação de entidades locais de promoção do desenvolvimento, gera-se a base organizacional de um desenvolvimento mais equilibrado. Já se foi o tempo em que se acreditava em projetos paraquedas: o desenvolvimento funciona quando é participativo.

No plano internacional, globalizamos a economia, mas não geramos os instrumentos correspondentes de gestão global. O resultado é um vale-tudo internacional que esgota recursos naturais, destrói o clima, gera instabilidade de preços de produtos agrícolas, exclui quase dois terços da humanidade da contribuição produtiva, tanto para as suas famílias quanto para a sociedade em geral. O desenvolvimento local não vai resolver todos esses problemas, mas sem uma apropriação muito mais competente, por parte de cada comunidade, dos seus direitos econômicos e sociais, o conjunto do sistema se desequilibra, ao servir megaestruturas descontroladas.

As finanças globais simplesmente não têm como saber qual a produtividade final dos recursos aplicados porque estão muitos andares acima da chamada pirâmide de decisão. A racionalidade da alocação dos recursos exige em última instância avaliação eficiente do uso final dos recursos, coisa bastante mais trabalhosa do que emitir derivativos e semelhantes. O agente de crédito no nível local, que conhece o bairro e a sua comunidade, as necessidades e os potenciais da região, torna-se de certa maneira um credenciador da solidez do uso final dos recursos. É trabalhoso, exige conhecer a realidade e as pessoas, fazer o seguimento, mas é a única maneira de transformar as poupanças de uns em aumento de produtividade de todos, a chamada produtividade sistêmica do território. Não basta ter bancos sólidos: os bancos devem servir à construção de uma economia sólida.

É ampla a experiência nessa área, desde o Grameen Bank, em Bangladesh, até as ONGs de intermediação financeira da França, a constituição de bancos comunitários de desenvolvimento e de Oscips de crédito em numerosos municípios no Brasil, as caixas de poupança locais na Alemanha e outros países. A exigência da aplicação local da poupança da população, com regras mais amplas de compensação entre regiões ricas e pobres por meio da rede pública, deverá permitir o financiamento tanto da micro e pequena empresas quanto de organizações da sociedade civil empenhadas em projetos sociais e ambientais, racionalizando ainda os investimentos públicos em saneamento, manutenção urbana e semelhantes.

O desenvolvimento local tem aqui uma grande oportunidade. Os diversos tipos de processos da distribuição de renda e de incorporação social promovidos pelo governo fazem com que haja efetivamente recursos no andar de baixo da economia. Melhorar a capacidade local de geri-los, buscando um processo mais equilibrado de desenvolvimento, tornou-se essencial. Dessa capacidade dependerá a apropriação dos diversos programas — Bolsa Família, Territórios da Cidadania, Benefícios Continuados da Previdência, Luz para Todos, Prouni, Crediamigo do BNB, Desenvolvimento Regional Sustentável do Banco do Brasil, as diversas dimensões do PAC social, a capilarização das infraestruturas, o Pronaf e outros — para que cada cidade, com o seu entorno rural, se transforme em espaço de autoconstrução capaz de assegurar qualidade de vida, equilíbrio social e sustentabilidade ambiental.

*Professor de economia e administração da PUC (SP) e autor de O que é poder local, Editora Brasiliense (http://dowbor.org)
FONTE: Correio Braziliense, online - 30/11/2009

Pai ou amiguinho?

Fábio Toledo*


Recentemente, uma reportagem divulgou o hábito de pais e filhos fumarem maconha juntos. Afora a aberração que é o uso de entorpecente em si, isso revela uma tendência dos pais e das mães de nosso tempo de se colocarem no nível dos filhos, portando-se como verdadeiros adolescentes, pensando que com isso conquistarão a confiança e a amizade deles. Mas será que os filhos esperam isso dos pais?

Talvez nos ajude a responder a essa indagação se considerarmos como são nossas expectativas em relação a um profissional que nos presta um serviço. Quando procuramos um médico, por exemplo, almejamos dele algo que não temos, que é o conhecimento técnico necessário para a cura de uma doença. E a relação que se estabelece entre médico e paciente não é de absoluta igualdade. Ao contrário, o médico possui autoridade para propor o tratamento adequado a que o paciente deve se submeter, ou procurar outro profissional, acaso não atinja um grau suficiente de confiança.

E algo de semelhante ocorre em outras profissões: advogado, engenheiro etc. Espera-se que tenha um conhecimento de seu ofício capaz de desempenhá-lo com eficiência e competência. E imagino que um cliente não teria suficiente confiança num advogado que o atendesse em seu escritório com uma camiseta surrada, jeans rasgado, tênis sujo, mascando chiclete e se expressando por meio de gírias vulgares.

Ser pai e ser mãe é muito mais que uma profissão, mas os filhos têm direito a que essa missão seja exercida com muito mais profissionalismo, eficiência e competência que qualquer ofício.

Nossos filhos têm direito a ter um pai e uma mãe de verdade, que se ocupem da educação deles. Não precisam de mais um amiguinho ou uma amiguinha. Pais que saibam exercer a autoridade no momento e na medida certa. Que respeitem a liberdade e a intimidade dos filhos. Que não sejam autoritários nem que vivam impondo restrições aos filhos apenas na medida em que violem a comodidade e o sossego dos pais. Mas que, sobretudo, sejam fortes o suficiente para dizer não, quando o bem deles o exigir e, mais ainda, que sejam valentes para sustentar suas decisões bem pensadas até o final.

Isso não quer dizer que os pais não possam ser amigos dos filhos, no sentido de que eles se sintam à vontade para lhes abrir a intimidade, revelando seus sonhos e frustrações. Seria muito bom que o pai e a mãe conseguissem contar com a total confiança dos filhos. No entanto, essa amizade há de se estabelecer sem que o pai deixe de ser pai, nem o filho de ser genuinamente filho.

Não se trata, também, de restabelecer uma relação autoritária entre pais e filhos. O pai e a mãe sábios percebem que a melhor ordem é um simples “por favor”, dito com tal delicadeza e com elegante firmeza que se fazem obedecer. E conseguem esse resultado porque o fazem por amor, não por vaidade, comodismo ou qualquer outro motivo que não o verdadeiro bem dos filhos.

Penso que o melhor exemplo de como deve ser a relação entre pais e filhos seja a de um guia que nos conduz numa escalada por caminhos tortuosos e desconhecidos. O guia será aquele que já percorreu o caminho muitas vezes. Portanto, sabe quais são os perigos, o momento de avançar e de retroceder, o de ousar e o de se precaver. E se for um bom guia, estará sempre atento aos passos de quem conduz. Essa é a missão dos pais. Sabem respeitar a liberdade dos filhos e, por conseqüência, deixar que caminhem com os próprios pés. Porém, sabem também que têm a missão de os guiar nos caminhos dessa vida até que sejam suficientemente maduros e, portanto, que saibam guiar a si próprios. Mais ainda, que um dia sejam eles também pais e mães a guiarem eficazmente seus filhos, nesse ininterrupto e maravilhoso ciclo da vida.

*Fábio Henrique Prado de Toledo é juiz de Direito em Campinas
FONTE: Correio Popular, online - 30/11/2009

Produzir carne sem animal

Cientistas avançam em pesquisas para produzir carne sem animal




Desde que Winston Churchill, primeiro-ministro britânico durante a Segunda Guerra Mundial, previu que seria possível criar peitos e asas de frango sem ter que utilizar a própria galinha, a ciência obteve alguns avanços interessantes sobre o tema. Depois de descobrir como desenvolver nuggets em laboratório, os cientistas chegaram à conclusão de que em breve será possível produzir carne sem a necessidade da criação de aves, gado ou suínos.

Costeletas de porco ou hambúrgueres cultivados na mesa de pesquisa poderiam eliminar problemas de saúde por contaminação - que ocorrem com frequência nos dias de hoje -, além de contribuir para a preservação ambiental, degradada pela exploração pecuária industrial. No entanto, de acordo com o site científico Live Science, a pesquisa também poderia abrir possibilidades que preocupam o planeta do ponto de vista da ficção científica: qual o limite da curiosidade humana e até que ponto ela avançaria para desenvolver um tipo de carne?

Cada vez mais, bioengenheiros estão criando nervos, coração e outros tecidos em laboratório. Recentemente, cientistas anunciaram o desenvolvimento do tecido de um pênis artificial em coelhos. Embora essa pesquisa seja destinada para tratamentos com pacientes, o biomédico Marcos Post, da Universidade de Maastricht, na Holanda, e seus colegas, sugerem que a mesma também poderia ajudar a alimentar a crescente demanda mundial por carne.
Benefícios significativos

Os pesquisadores apontaram que o crescimento do músculo esquelético em laboratórios poderia ajudar a combater uma série de problemas:

- Evitar o sofrimento dos animais, reduzindo a produção e o abate de gado;

- Reduzir drasticamente as doenças de origem alimentar - tais como a doença da vaca louca, as salmonelas ou germes, como a gripe suína -, acompanhando o crescimento de carne em laboratórios;

- A pecuária ocupa atualmente 70% de todas as terras agrícolas, correspondendo a 30% da superfície terrestre do mundo, segundo a Organização para a Agricultura e a Alimentação (FAO, sigla em inglês Food and Agriculture Organization) das Nações Unidas. Centros de pesquisa obviamente exigiriam menores espaços físicos;

- A pecuária é responsável por 18% das emissões de gases causadores do efeito estufa, mais do que todos os veículos em terra, acrescentou a FAO. Lembrando que os próprios animais também fazem parte dos poluidores, reduzir suas populações ajudaria ainda a aliviar o aquecimento global.
Necessidade de intensificação

As células-tronco são consideradas a fonte mais promissora para o desenvolvimento de carne, conforme os cientistas. Eles explicaram que as células satélite - células-tronco musculares naturais responsáveis pela regeneração em adultos - seriam uma saída. Já as células-tronco embrionárias também poderiam ser utilizadas, dependendo de como caminharem as preocupações éticas que envolvem o tema.

Para crescer carne em laboratório a partir de células satélite, os pesquisadores falam em aprofundar as técnicas atuais de engenharia de tecidos, onde as células-tronco são muitas vezes incorporadas em três matrizes sintéticas tridimensionais biodegradáveis, que apresentam os ambientes físicos e químicos que as células precisam para se desenvolver adequadamente. Outros fatores-chave envolvem estimular eletricamente e mecanicamente os músculos, ajudando-os a amadurecer em busca de pistas moleculares.

Até agora, os cientistas conseguiram fazer crescer apenas pequenos pedaços de músculo esquelético - cerca de metade do tamanho da unha do dedo maior do pé. No entanto, de acordo com o que os pesquisadores afirmaram na última edição da revista científica Trends in Food Science & Technology, a criação de um bife exigiria produção em maior escala.
Pensamentos obscuros

Mesmo que a intenção dos cientistas seja a de optar pela produção de carne de vaca, porco, frango ou peixe, há muito tempo a ficção científica brinca com possibilidades obscuras de comercializar carne clonada. Na antiga série de histórias em quadrinhos Transmetropolitan, de Warren Ellis e Darick Robertson, supermercados e redes de fast food vendem carnes de golfinho, peixe-boi, baleia, filhotes de foca, macaco, rena e até humana. "Em princípio, poderíamos colher células progenitoras do cadáver de seres humanos e estimular seu crescimento", disse Post. "Se não analisarmos o contexto de canibalismo, não existe nenhuma razão para não comer este tipo de carne. Você não está matando o próximo, ele já estaria morto", afirmou.

Evidentemente, produzir carne de ser humano é algo difícil de não gerar polêmicas e grandes perturbações no mundo, mas ainda assim, Post sugere que o marketing poderia superar tais obstáculos. "Se cada pacote de carne cultivado atualmente tivesse o comunicado 'Cuidado, animais foram mortos por esse produto', eu posso imaginar uma mudança cultural gradual", afirmou o especialista. "Claro que ainda temos um longo caminho a percorrer para fazer um produto se tornar competitivo, mesmo que remotamente, com os alimentos de hoje em dia", disse.

FONTE: Jornal do Brasil online - Reportagem do Portal Terra -  29/11/2009

Pesquisa mostra diferença entre autodefinição de cor e genética



Muito se fala que todo brasileiro tem um pé na África. Mas uma pesquisa brasileira recém-concluída aponta para outra direção: muitas pessoas que se consideram ou se definem como negras ou pardas tem um pé, ou até mesmo uma perna inteira, na Europa, só que não sabem disso. A constatação é resultado de um estudo feito por pesquisadores brasileiros, entre antropólogos e geneticistas, junto a estudantes de ensino médio da cidade de Nilópolis, na Baixada Fluminense.

Por se debruçar sobre universo fechado, um grupo escolar, a pesquisa não retrata a realidade de um país tão diversificado regionalmente. Mas a intenção dos pesquisadores foi checar a reação dos alunos sobre a diferença entre como eles se autodefinem em relação à cor e sua ancestralidade genética.

A pesquisa procurou saber como os estudantes se percebiam em relação à sua cor, segundo classificações do IBGE (branca, negra e parda). Depois, foram feitos testes de DNA para checar a origem geográfica: europeia, africana ou indígena.
Ascendência

Os estudantes que se classificaram como “negros”, por exemplo, relataram, em média, ascendência africana de 63%; indígena de 20% e 17% europeia. Os testes de DNA mostraram resultados bem diferentes: a ascendência européia domina. A média é de 52% de ancestralidade européia; 41% africana, e 7% a indígena.

Os alunos que se autodefiniram como “pardos” referiram que teriam aproximadamente os mesmos índices de ancestralidade europeia (37,9%), africana (33,5%), e ameríndia (28,6). O teste de DNA, de novo, trouxe resultados com índices mais “europeizantes”: mais de 80% em média, contra a ascendência indígena (4,1%) e africana (5,6%).

Os estudantes “brancos”, que se percebiam como portadores de substancial ascendência africana (17,1%) e ameríndia (21,1%), se defrontaram com resultados de testes genéticos que, na realidade, evidenciaram muito pouca ancestralidade tanto africana (5,6%) como ameríndia (4,1%), contra 90,3% de ascendência europeia.

– A percepção das pessoas quanto à sua cor ou raça é muito diferente da realidade biológica – diz o antropólogo Ricardo Ventura Santos, na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp), da Fiocruz, um dos coordenadores da pesquisa.

A pesquisa de campo foi feita com adolescentes do CEFET-Química, em Nilópolis,

há três anos, segundo Ventura.

– O conceito de raça, biologicamente, é superado, mas ainda tem impacto relevante sobre a dinâmica social. Tanto é que existem as políticas afirmativas, como as que reservam vagas para estudantes que se declaram negros nas universidades brasileiras – diz o antropólogo.
Estudantes pesquisados se surpreendem com resultados

No artigo que deu origem à esta reportagem, que está sendo publicado na edição de dezembro da revista americana Current Anthropology, o jornalista Kevin Stacey compila a íntegra da pesquisa brasileira. Ele selecionou trechos sobre a reação dos estudantes aos resultados. Ainda fez reflexões sobre conceitos de raça e sobre estas implicações na sociedade brasileira. O material do jornalista americano, traduzido por Ruth B. Martins, segue abaixo.

“Os alunos que se classificaram como 'brancos' em geral declararam-se decepcionados com os baixos percentuais para as categorias africano e ameríndio a partir dos testes de ancestralidade genômica", dizem os pesquisadores brasileiros. Outros ficaram "desconcertados" quando verificaram que os resultados dos testes genéticos mostraram alta ascendência européia.

Alguns inclusive colocaram em um segundo plano a importância da evidência biológica.

– Apesar da elevada percentagem de ancestralidade genômica européia, não deixarei de ser negra nunca! – disse uma estudante.

Alguns estudantes levantaram temas relacionados com políticas públicas de cotas raciais para o ensino universitário.

– A minha ancestralidade genômica é 96% europeia, 1% ameríndia e 3% africana – disse um aluno. – Acho que a única coisa que muda é que eu não tenho mais a chance de conseguir a cota – ironizou.

A pesquisa brasileira traz reflexões sobre o controverso conceito de raça: “nas últimas décadas, biólogos, especialmente os geneticistas, têm afirmado repetidamente que a noção de raça não se aplica à espécie humana". "Por outro lado”, sustentam os autores, “cientistas sociais afirmam que o conceito de 'raça' é altamente significativo em termos culturais, históricos e sócio-econômicos”.
Debates

Atualmente, as questões relacionadas com a temática da raça, suas concepções científicas e culturais, despertam muitos debates em todo o mundo, inclusive no Brasil. Os brasileiros se orgulham de sua ascendência miscigenada, fruto da relação histórica entre europeus, africanos e ameríndios. No entanto, nos últimos anos, as desigualdades raciais têm estimulado o surgimento de propostas de políticas que despertam controvérsias, como as cotas raciais para empregos em órgãos do governo e vagas para estudantes nas universidades públicas.

”Ao mesmo tempo“, destacam os autores, "os resultados dos estudos no campo da genética, que enfatizam a ampla miscigenação da população brasileira, têm sido divulgados nos meios de comunicação e tem desempenhado um papel importante nos debates sobre a implementação de políticas públicas baseadas em raça".

Os alunos material colhido em raspagem das mucosas bucais, a partir da qual foram realizados testes de ancestralidade genômica, com base na análise do DNA nuclear, na UFMG. Na etapa final da pesquisa, os dados de percepção de ancestralidade e dos testes genômicos foram debatidos pelos estudantes.

”Os resultados dos testes de ancestralidade genômica são bastante diferentes das estimativas de ascendência percebidas“, relatam os investigadores. Em geral, os resultados dos testes genéticos mostraram que os alunos têm ascendência européia bem maior do que pensavam.

“Neste estudo”, escrevem os autores, "ressaltamos a importância de se melhor compreender as complexas formas de como as informações genéticas são interpretadas pelo público leigo”.

Os autores também discutem seus achados à luz das políticas públicas relacionadas às questões raciais, visando promover a inclusão social. Outro aspecto destacado pela equipe interdisciplinar de pesquisadores é quanto a necessidade de um maior diálogo entre as ciências biológicas (genética, em especial) e as ciências humanas, em torno de complexos temas como cor, raça e ancestralidade.
Autores

O estudo foi feito por sete pesquisadores, três deles da Fundação Oswaldo Cruz: o sociólogo Marcos Chor Maio, da Casa de Oswaldo Cruz, os antropólogos Ricardo Ventura Santos, da Escola Nacional de Saúde Pública, e Simone Monteiro, do Instituto Oswaldo Cruz; os antropólogos Peter Fry, da UFRJ, e José Carlos Rodrigues, da PUC-Rio; além dos geneticistas Luciana Bastos-Rodrigues e Sergio Pena, da UFMG.

A revista Current Anthropology é publicada pela Editora da Universidade de Chicago. O artigo de Ricardo Ventura Santos e colaboradores tem o título “Color, race and genomic ancestry in Brazil: Dialogues between anthropology and genetics” (“Cor, raça e ancestralidade no Brasil: Diálogos entre antropologia e genética”).

FONTE: Jornal do Brasil, online  - REPORTAGEM  de Marcelo Gigliotti,- 25/11/2009

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Carlos Eduardo Novaes*

Se eu fosse um adolescente imberbe – como os milhares que povoam a Internet – iria me sentir o cara mais amado do mundo ao abrir minha caixa postal. Não tem um dia que não encontre duas, três mensagens do tipo: “Ola! Estou morrendo de saudades de você. Clique aqui! De alguém que te curte de montão. Clique aqui! Quero muito estar pertinho de você. Clique aqui! Por que você não responde, meu amor? Clique aqui! Minha paixão não pode ser medida por palavras. Clique aqui!”.

Mesmo sendo um coroa rodado confesso que meus dedos ficam em cócegas para apertar o mouse, mas sou contido pela convicção de que o correio eletrônico é um campo minado onde qualquer bobeira pode me fazer explodir. A mesma sensação daquele japonês de Hiroshima que puxou a descarga e a bomba atômica explodiu. Tenho um amigo que não resistiu à declaração: “O dia passou, mas não esqueci de você. Clique aqui!”. Ele clicou e constatou, decepcionado, tratar-se de um remédio para a memória – dele, não do computador. Ainda por cima incorporou uma quantidade de vírus que daria para formar uma escola de samba. Quase perdeu a máquina.

Deu nas folhas que os prejuízos com golpes na internet chegam a R$ 800 milhões. Não sei como foi feita essa conta, mas estou certo de que boa parte desses golpes entrou através de mensagens sedutoras. Quem resiste à ideia de emagrecer dormindo? Ou de aumentar o tamanho do pênis? Ou de parar de fumar em meia hora? A mão empurra o cursor direto no “clique aqui!” e depois só Deus sabe onde termina esse buraco negro. Muitas vezes a mercadoria não chega e se chegar não vai mudar em nada sua vida. Você continua um fumante gordo e de... pequeno.

As grandes minas escondem-se debaixo de mensagens de órgãos públicos informando sobre pendências de débitos. Canso de receber falsos e-mails do SPC (Serviço de Proteção ao Crédito), Serasa, Receita Federal com notificações oficiais e confidenciais. A sensação é a de que se não clicar onde eles pedem vou acabar preso, talvez deportado. Ano passado recebi durante meses uma mensagem ameaçadora do Tribunal Regional Eleitoral informando que meu título fora cancelado. Quer saber das razões? Clique aqui! Você clicou? Nem eu, mas fiquei com aquele pulgão atrás da orelha. No dia das eleições fui votar sem saber se voltaria para casa. Os mesários não entenderam minha gargalhada ao deixar a seção.

O pessoal está alcançando um nível de sofisticação nas mensagens dessas armadilhas que fica cada vez mais difícil resistir. Não faz muito tempo recebi um e-mail de “uma colega de colégio” que – dizia ela – tinha me visto na fila do cinema e havia encontrado uma foto dos velhos tempos em que aparecíamos juntos. Clique aqui para ver. A mensagem era muito bem escrita e senti um forte impulso para abrir a foto. Fui salvo por um pequeno detalhe: na ultima linha do texto ela dizia que eu continuava com uma aparência jovem e não havia mudado nada. Como não mudei? Fiquei quase completamente careca.

Quer ver como fiquei? Clique aqui!

*Carlos Eduardo Novaes é escritor.
FONTE: Jornal do Brasil, online - 30/11/2009

A nova prioridade da educação

Editorial, Jornal do Brasil

Ainda que não tenha dito como isto se transformará em política pública, deve ser elogiada a prioridade ao ensino pré-escolar que o ministro da Educação, Fernando Haddad, revelou na entrevista concedida com exclusividade ao Jornal do Brasil, na edição de ontem. Isso mostra que o ocupante da pasta está atento a uma das maiores lacunas da educação no país. Estudos internacionais indicam que investimentos nesta fase da formação da vida do ser humano são fundamentais e que grande parte das desigualdades que surgirão mais tarde entre os indivíduos pode ser evitada no nascedouro.

No recém-publicado livro Educação básica no Brasil (Campus/Elsevier), um interessante artigo escrito pelos brasileiros Aloisio Pessoa de Araújo, Flávio Cunha e Rodrigo Moura e pelo americano James Heckman, Nobel de economia de 2000, mostra a importância da criação de programas educacionais voltados para crianças em idade pré-escolar que vivem em condições desfavoráveis. É comprovado que crianças nascidas num ambiente marcado por famílias desestruturadas, por pais que não têm boa escolaridade ou não dão incentivo aos estudos têm suas oportunidades comprometidas para o resto da vida. Os primeiros anos são determinantes no desenvolvimento da cognição – que está praticamente formada antes da entrada na escola.

A consequência deste achado é simples. A sociedade teria muito a ganhar com investimentos de educação na primeira infância. A atuação precoce seria uma forma de reduzir a repetência, combater preventivamente a violência e diminuir as desigualdades sociais. Programas educacionais voltados para a pré-escola chegam a diminuir as taxas de criminalidade no futuro em até 30%.

Dados como esses foram obtidos por meio da observação da vida de alunos que passaram por programas experimentais iniciados, nos Estados Unidos, nas décadas de 1960 e 70. Em alguns casos, as trajetórias das crianças (divididas em dois grupos, as que participaram e as que ficaram de fora, formando um grupo de controle com alunos de nível socioeconômico semelhante) foram acompanhadas até que elas chegassem aos 40 anos de idade.

Em um dos programas, constatou-se que, enquanto 45% das crianças que não tiveram a educação pré-escolar concluíram o ensino médio, esse percentual subiu para 66% entre aquelas que receberam o ensino adequado na primeira infância. Em outro programa, o número de crianças nascidas em ambientes desfavoráveis que concluíram o ensino superior foi três vezes maior que o daquelas que ficaram de fora.

São números mais do que contundentes e que mostram valer a pena o investimento. Há uma ligação inequívoca entre o pleno desenvolvimento da cognição da criança nos primeiros anos de vida e o aumento na probabilidade de conclusão do ensino médio, de chegada à universidade, algo que os gestores estão buscando por outras políticas, mas que é incompleto sem o trabalho de base. Não só por uma questão quantitativa, de universalização, mas qualitativa, de oferecer aos filhos das camadas mais pobres oportunidades mais equânimes de competição, contribuindo para a riqueza do país. O objetivo, segundo Haddad, é universalizar o atendimento a partir dos 4 anos. Os recursos serão facilitados pelo fim da Desvinculação de Receitas da União (DRU), que incidia sobre o orçamento da educação.

FONTE: Jornal do Brasil - online - EDITORIAL - 30/11/2009

Liçôes de Olavo Bilac

Deonísio da Slva*

Olavo Bilac ainda não é bem compreendido. O modernismo revelou grandes autores, mas apagou outros.

Ele foi o grande nome literário de nossa belle époque, que durou quase meio século. O naufrágio do Titanic e a eclosão da Primeira Guerra Mundial anunciam o fim daqueles bons tempos.

Era um mundo gentil sob muitos aspectos. A orquestra tocando, homens cedendo os salva-vidas para mulheres e crianças, demonstram que havia educação, predominando as boas maneiras. Hoje, músicos, mulheres e crianças seriam abandonados enquanto os marmanjos disputariam a socos e pontapés, ou a facadas e tiros, os botes.

A vida tinha ficado mais leve, mais gostosa de ser vivida. No período foram inventados o telefone, o telégrafo sem fio, o cinema, a bicicleta, o automóvel, o avião etc. Esses inventos levaram a novas percepções da realidade.

Hoje, famílias abastadas ou apenas remediadas fazem dos EUA, especialmente de Nova York ou da Flórida, as suas cidades referenciais da vida chique, mas na belle époque predominava a França, especialmente Paris. Ir a Paris ao menos uma vez por ano era quase uma obrigação para nossas elites, que assim mostravam estar em dia com a cultura do mundo. Não nos esqueçamos de que Santos Dumont inventou o avião em Paris, financiado pelo pai, que lhe deu meios de lá morar, estudar, pesquisar, inventar. E a glória vem quando voa ao redor da Torre Eiffel.

No período, Olavo Bilac não era cultuado apenas como escritor, mas também como personalidade que tinha um projeto nacional e não perdia oportunidade de manifestar-se para defendê-lo. Foi dele a ideia de instituir o serviço militar obrigatório e o livro didático, meios que tornaram a escola e o exército mais eficientes na ascensão social dos pobres.

No Hino à Bandeira, ele exalta o compromisso cívico e a grande esperança de um futuro melhor: “Contemplando o teu vulto sagrado,/ Compreendemos o nosso dever,/ E o Brasil por seus filhos amado,/ Poderoso e feliz há de ser”.

Em Benedicite!, soneto cujo título em latim quer dizer bendizei, eis suas bênçãos: “Bendito o que na terra o fogo fez, e o teto/ E o que uniu à charrua o boi paciente e amigo;/E o que encontrou a enxada; e o que do chão abjeto,/ Fez aos beijos do sol, o ouro brotar, do trigo”. Ele bendiz, portanto, o trabalho do agricultor, o avanço cultural que o levou a tirar do chão o sustento, usando nova tecnologia. Não mais apenas a enxada, para “aos beijos do sol” fazer “o ouro brotar do trigo”, mas a charrua, instrumento puxado pelo “boi paciente e amigo”, que ajudava o homem a lavrar a terra.

E como “nem só de pão vive o homem”, como dizem os Evangelhos, o poeta bendisse também o ferreiro, o arquiteto, o tecelão, isto é, aqueles profissionais que ferravam os cavalos, produziam ferramentas e armas; faziam casas; produziam os tecidos para as roupas; os carpinteiros, os marceneiros, os pedreiros, os navegadores, o inventor do avião, o professor e o escritor, o assistente social.

Essas louvações vão sendo feitas com várias figuras da linguagem, uma das quais é a elipse, pois ele não nomeia explicitamente esses profissionais: “E o que o ferro forjou; e o piedoso arquiteto/ Que ideou, depois do berço e do lar, o jazigo;/ E o que os fios urdiu e o que achou o alfabeto;/ E o que deu uma esmola ao primeiro mendigo”.

Na última estrofe do soneto, ele exalta quem “descobriu a Esperança, a divina mentira,/ Dando ao homem o dom de suportar o mundo”.

Às vezes exagerava no otimismo, como em A pátria, em que diz: “Boa terra! Jamais negou a quem trabalha/ O pão que mata a fome, o teto que agasalha”. Como ler estes versos hoje aos meninos de rua? E continuou: “Quem com o seu suor a fecunda e umedece,/ Vê pago o seu esforço, e é feliz e enriquece!”.

Nossas letras têm muitos autores que apresentam verdadeiros projetos nacionais de esperança, mas a mídia os esconde e prefere louvar os pessimistas, os minimalistas, os que fazem sucessivas viagens ao redor do próprio umbigo a cada novo livro, exaltando o pessimismo e um mundo sem esperança.
*Deonísio da Silva é escritor e professor da Universidade Estácio de Sá. Seus livros mais recentes são De onde vêm as palavras e o romance Goethe e Barrabás, ambos pela editora Novo Século.
FONTE:  Jornal do Brasil online -  30/11/2009

domingo, 29 de novembro de 2009

Vítimas e algozes: a psicanálise diante da culpa


Segue aqui uma entrevista com Veronika Grueneisen, uma das idealizadoras das Conferências do Chipre, organizadas desde os anos 80 para reunir e permitir a colaboração entre psicanalistas alemães e israelenses. Como é possível renunciar à identificação inconsciente com a geração dos próprios pais para desenvolver novas possibilidades de relação profissional? Essa é a questão que guiou os trabalhos.

A reportagem é de Isabella Mattazzi, publicada no jornal Il Manifesto, 25-11-2009.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Já nos anos 80, Jacques Derrida havia declarado a possibilidade de uma nova ética da psicanálise que levasse em conta não apenas modelos teóricos de referência, mas as diversidades culturais dos psicanalistas enquanto sujeitos com uma identidade geográfica, política, social bem precisa. Quem faz psicanálise hoje, de fato, não pode não reconhecer o porte muito amplo, dentro da prática terapêutica, da própria vivência histórica e do profundo entrelaçamento que essa vivência parece ter com os núcleos mais problemáticos da própria formação psicanalítica. Mas o que quer dizer, para um psicanalista, confrontar-se com a História? O que significa apresentar-se não apenas como figura profissional, mas como sujeito "político-cultural"?

Falamos sobre isso, por ocasião do recente encontro "Estrangeiro familiar" - organizado em Milão pelo Centro Milanês de Psicanálise Cesare Musatti -, con Veronika Grueneisen, psicanalista alemã, presidente da organização Partners in Confronting Collective Atrocities e organizadora de uma das experiências mais interessantes e complexas destes últimos anos no âmbito dos estudos sobre as dinâmicas psicosociais, as Conferências do Chipre.

Eis a entrevista.

Depois da Segunda Guerra Mundial, os psicanalistas alemães que haviam deixado a Alemanha não aceitaram, no seu retorno, fazer parte de uma sociedade psicanalítica que fosse comum com aqueles que, pelo contrário, ficaram no país. De que modo a História desempenhou um papel simbólico importante na prática psicanalítica alemã?
Como para todo o resto da sociedade, os acontecimentos deste último século, e de modo particular o Holocausto em toda a sua dramaticidade, tiveram repercussões muito graves em nível consciente e inconsciente para os psicanalistas alemães. E como para todo o resto da sociedade, foi necessário para eles um tempo consideravelmente longo para enfrentar a coisa. Depois da ruptura do mundo psicanalítico no pós-guerra em duas sociedades distintas, criou-se a ideia de que havia uma maneira "limpa" de fazer psicanálise e uma "culpada", assim como no percurso terapêutico individual podíamos ser consideradas "afortunados" e "infortunados", de acordo com quem era o seu analista. Apenas hoje, depois de 40 anos, estamos nos dando conta do porte ideológico de tudo isso. Agora, os membros da Deutsche Psychoanalytische Gesellschaft e da Deutsche Psychoanalytische Vereinigung falam entre si e colaboram, o que seria absolutamente impensável até poucos anos atrás. Um discurso semelhante poderia ser feito sobre o que se refere às relações entre psicanalistas alemães e psicanalistas israelenses: o Holocausto jogou uma sombra que prejudicou durante anos o intercâmbio profissional entre os colegas das duas nações, com resistências radicadas na parte mais profunda e escondida da sua própria identidade. Como era possível que os filhos alemães dos culpados e os filhos israelenses das vítimas pudessem refletir juntos? Como era possível renunciar à identificação inconsciente com a geração dos próprios pais para desenvolver novas possibilidades de relação e de colaboração profissional? Exatamente para responder a esse tipo de perguntas é que nasceram, nos anos 80, as Conferências do Chipre.

Pode nos contar em que consistem e como se desenvolvem essas Conferências?
Trata-se de uma série de seminários residenciais de seis dias de duração, uma espécie de espaço protegido em que os psicanalistas alemães e judeus podem enfrentar o significado do Holocausto no mundo da nossa contemporaneidade, refletindo sobre o porte emotivo dentro da construção identitária das segundas e das terceiras gerações depois da guerra. Os seminários são organizados seguindo o método das "group relations" desenvolvido pelo Instituto Tavistock de Londres, que prevê um trabalho sobre as emoções individuais dentro de reuniões de grupo estruturadas de vários modos. Há reuniões de grupo restritas, com participantes de uma única nacionalidade ou de nacionalidades mistas, e reuniões plenárias com todos os grupos reunidos. A dimensão e a composição do grupo influencia notavelmente na atmosfera do debate, e as relações que de vez em quando se criam entre os participantes têm consequências importantes sobre tudo aquilo que é experimentado e discutido.

Os primeiros dois encontros ocorreram em Nazaré, o terceiro em Bad Segeberg, na Alemanha. Hoje, as Conferências têm como lugar de eleição o Chipre. Qual importância a escolha "geopolítica" dos lugares teve a partir de um ponto de vista simbólico e quanto ela influenciou concretamente o desenvolvimento das reuniões?
Conseguir organizar as primeiras duas Conferências em Israel foi de uma importância crucial para um bom início dos trabalhos. Os alemães estavam de fato bem intencionados a se expôr, indo para um país onde os judeus são a maioria. O que nunca esperávamos, pelo contrário, é que os israelenses fossem notavelmente atraídos pela ideia de ir para a Alemanha. Esses seminários, de fato, permitiram que numerosos colegas israelenses de origens alemãs colocassem o pé na Alemanha pela primeira vez, sentindo-se totalmente protegidos. A recente escolha do Chipre deriva, ao invés, da consciência por parte da equipe de uma necessidade sempre mais evidente de ampliar o debate também a outros grupos nacionais atingidos pelas consequências do Holocausto. Hoje, um número sempre maior de pessoas de identidade mista (alemão-judaica, judaico-inglesa, judaico-americana) participa das nossas Conferências, e o Chipre, pela sua história tão complexa e dolorosa e pela sua substancial alteridade com relação à dicotomia Alemanha-Israel, nos pareceu ser um ótimo cenário para realizar os nossos encontros.

As Conferências do Chipre, portanto, são organizadas segundo um método não especificamente racional e cognitivo, mas sim experimental, ou seja, baseado na experimentação direta de processos dinâmicos vividos no "aqui-agora" do ambiente. Além disso, não é tanto o indivíduo que se coloca como sujeito-objeto de análise, mas sim o grupo, ou melhor, "os grupos" alemães e israelenses juntos. O que significa discutir o próprio sentido de culpa ou o próprio terror à prepotência, não mais diante dos fantasmas do próprio inconsciente (como ocorre em um âmbito psicanalítico "clássico"), mas diante da real presença do outro?
Diria que essa situação traz consigo um efeito duplo. De um lado, a realidade é mais aterrorizante do que o fantasma, porque, em relação ao outro, tu estás mais exposto à tua vergonha, à tua culpa, à tua angústia. Por outro lado, porém, lidar com a realidade nos coloca surpreendentemente diante de um alívio improvisado. Quando tu consegues dizer todo o teu ódio ou o teu medo olhando no rosto não de um fantasma, mas de uma pessoa real, e quando tu vês que dizendo tudo isso não acontece nada de terrível, mas pelo contrário consegues dizer o teu ódio ou o teu medo mais uma vez e ninguém te mata ou foge horrorizado, imediatamente desencadeia-se uma espécie de processo pacificador ou até reparativo: em que o "reparativo" não tem um sentido de uma reconciliação ou de um perdão, mas de uma aceitação real e articulada daquilo que aconteceu. Além disso, a escolha de nos darmos o estatuto de uma organização internacional foi resolutiva porque ofereceu a possibilidade de criar um espaço simbólico e real que fosse "protegido", tanto para os alemães quando para os judeus, defendendo uns e outros de qualquer forma de vingança ou de violência.

Os problemas tratados ao longo das Conferências se referem diretamente aos pontos nevrálgicos da construção da nossa identidade contemporânea. Além, naturalmente, de temas como o ódio, o medo ou as várias fantasias destrutivas, surgiu dos encontros, da parte alemã, um desconforto extremamente marcado com relação às figuras paternas, principalmente com relação à divisão simbólica entre as suas imagens familiares e o seu papel histórico.
A experiência desses seminário é extremamente forte de um ponto de vista emotivo e requer um trabalho enorme de colocar em discussão e reelaborar a nossa própria identidade. Tirar a imagem dos pais do curso de uma cotidianidade familiar tranquilizante para inseri-la em um quadro histórico de forte destrutividade nos coloca diante de um pensamento aterrorizante: encontrando-nos dentro de um contexto político-social semelhante, provavelmente nós também, assim como os nossos pais tão "normais", podemos ser envolvidos do mesmo modo. Quanto a isso, diria apenas que a primeira Conferência deveria ter sido realizada em 1992 e não foi realizada porque não se havia alcançado um número suficiente de participantes. Nem todos conseguem trabalhar sobre temas tão difíceis. Quem não é capaz de sustentar seu peso geralmente prefere ficar em casa.

A senhora acha que o modelo dessas conferências é exportável também para a gestão de outras formas de conflito, por exemplo a questão árabe-israelense ou a irlandesa? E se sim, com quais diferenças? Existe um "núcleo problemático" próprio da questão judaica ou todo conflito responde a dinâmicas comuns?
Estou absolutamente convencida de que esse modelo pode ser exportado também para outras formas de conflito. Em 2007, criamos a Partners in Confronting Collective Atrocities, uma organização que absorveu a direção e a organização das Conferências, estendendo seu debate também para o conflito israelense-palestino. Em 2008, pela primeira vez, uma delegação palestina, cuja contribuição foi extremamente importante, participou no Chipre.
No Holocausto, a divisão radical entre "vítimas" e "algoz" foi um elemento dramaticamente essencial na definição simbólica dos papéis e, talvez também por isso, forneceu um forte modelo de identificação identitária nacional. No mundo contemporâneo, pelo contrário, as novas formas de conflito nos mostram um limite fugaz entre as duas figuras, basta pensar na figura do terrorista que se "imola" no momento mesmo em que realiza um ato de extrema violência ao outro.
Essa reflexão corresponde exatamente ao trabalho de análise que a nossa equipe está fazendo nestes últimos anos com relação ao futuro das Conferências. Por meio da experiência dos seminários, compreendemos que os papéis vítima-algoz podem mudar constantemente, e a configuração ambígua do conflito contemporâneo é um exemplo lampante disso. Mas eu diria também que não formulamos uma resposta precisa a esse tipo de problema. O nosso lema, em certo sentido, é "não sabemos o que fazer e seguimos em frente", no sentido do contínuo trabalho de aprofundamento e a constante evolução das nossas posições teóricas.

As Conferências do Chipre parecem lembrar em parte os trabalhos da Truth and Reconciliation Commission, instituída na África do Sul em 1995. O mandato da Comissão era o de recolher e registrar os testemunhos daqueles que haviam sido culpados por violações dos direitos humanos durante o regime do apartheid e daqueles que haviam sido suas vítimas.
Recentemente, alguns membros da nossa organização publicaram um livro sobre as nossas três primeiras experiências de encontro, "Fed With Tears-Poisoned With Milk", do qual Desmond Tutu escreveu o prefácio compreendendo perfeitamente o nosso espírito e revelando toda a sintonia da sua mensagem com o da Comissão sul-africana, da qual nós, porém, nos distanciamos evitando usar a palavra "reconciliação", que, dentro da nossa cultura centro-europeia, poderia dar a ideia totalmente errônea da vontade de um perdão qualquer ou também da busca por um "ponto de chegada" para o nosso trabalho. Para nós, ao invés, é fundamental que o confronto sobre esses temas seja elaborado de maneira contínua, para enfrentar o passado em favor do futuro.

Um trabalho exportável para outras geografias conflituosas
Veronika Grueneisen, psicanalista, vive em Nuremberg, é presidente da Partners in Confronting Collective Atrocities, supervisora da Deutsche Psychoanalytische Gesellschaft, da International Psychoanalytical Association (Ipa) e é membro do Tavistock Institute's Advanced Organisational Consultation (Aoc). O "Modelo Tavistock", utilizado dentro das Conferências do Chipre, nasce no impulso dos primeiros trabalhos de terapia de grupo realizados por Harold Bridger e Wilfred Bion sobre os oficiais do corpo de aviação inglês durante a Segunda Guerra Mundial. Desenvolvido pelo Instituto Tavistock de Londres, fundado em 1946, baseado em uma teoria "clínica" da organização, explora em particular os aspectos emotivos e irracionais do comportamento dos indivíduos e dos grupos dentro de uma instituição, o modo em que influenciam o funcionamento da própria instituição, a qualidade das relações entre os seus membros, assim como entre a organização e o ambiente externo.

FONTE: IHU/Unisinos, 28/11/2009