Olgária Matos*
"Apática, sem maravilhamento,
a universidade pós-moderna se esqueceu
de sua dívida simbólica
com as gerações passadas"
O conceito de universidade moderna e a natureza do conhecimento que ela produziu até os anos 1960 tinham por objetivo formar o cientista. Este representava o "mestre da verdade" porque capaz de compreender seu ofício na complexidade dos saberes e da história. Sua autoridade procedia de sua palavra pública, pela qual se fazia responsável. O cientista era o intelectual, e para ele a pesquisa não correspondia a uma profissão, mas a uma vocação.
O conhecimento mantinha sua autonomia com respeito às determinações imediatamente materiais e do mercado. Sua temporalidade - a da reflexão - compreendia-se no longo prazo, garantidora da transmissão de tradições e de suas invenções.
A universidade pós-moderna, por sua vez, converte pesquisa em produção, constrangendo-se à pressa e à produtividade quantificada do conhecimento, adaptando-se à obsolescência permanente das revoluções técnicas, promovidas pelas inovações industriais segundo a lógica do lucro. A temporalidade do mercado confisca o tempo da reflexão, selando o fim do papel filosófico e existencial da cultura.
Para a universidade moderna não cabia a pergunta "para que serve a cultura", mas sim "de que ela pode liberar". A universidade moderna elevava a sociedade aos valores considerados universais no concerto das nações que procuravam uma linguagem comum ao patrimônio cultural de toda a humanidade, devolvendo-o à sociedade com seus maiores cientistas e seus melhores técnicos. Essa foi a tradição de Goethe que havia formulado a ideia da Weltliteratur, da literatura universal como cosmopolitismo do espírito.
A universidade pós-moderna é a da indiferenciação entre pesquisa e produção. O intelectual cultivado foi destituído - em todos os domínios do conhecimento - pelo especialista e seu conhecimento particularizado, cujo contato com a tradição cultural é episódico ou inexistente. Seu discurso não diz mais o "universal" e se limita a formulações técnicas, perdendo-se o sentido do conhecimento e seus fins últimos, com a passagem da questão teórica "o que posso saber" para a pragmática "como posso conhecer".
Para Gunther Anders, o emblema da conversão do intelectual em pesquisador, da razão crítica em desresponsablização ética e racionalidade técnica, foi Fermi na Itália e Oppenheimer nos EUA, cujas pesquisas sobre a bomba atômica foram tratadas por eles em termos estritamente técnicos.
A universidade pós-moderna não lida mais com as "grandes narrativas" nem busca a fundamentação do conhecimento e seus primeiros princípios. Como o mercado, se pauta pela mudança incessante de métodos e pesquisas. Nada aprofunda, produzindo uma cultura da incuriosidade, imune ao maravilhamento. Em sua pulsão antigenealógica, acredita que tudo o que nela se desenvolve deve a si mesma, não reconhecendo nenhuma dívida simbólica com as gerações passadas. Essa circunstância, por sua vez, pode ser compreendida no âmbito da massificação da cultura e da universidade.
Com a ditadura dos anos 1960 no Brasil, a universidade pública moderna - concebida de início para formar as elites governantes, a partir do ideário de universidade cultural, científica e com suas áreas técnicas - começa sua desmontagem, o que e resulta em sua massificação.
Sob a pressão de massas historicamente excluídas dos bens científicos e culturais, bem como do sucesso profissional aferido pelo enriquecimento nas profissões liberais, a universidade pós-moderna acolhe populações sem o repertório requerido anteriormente para a vida acadêmica.
Face ao ideário moderno baseado no mérito de cada um e não mais no sistema nobiliárquico do nascimento, e sua incompatibilidade com a desigualdade real de oportunidades para a ascensão social, a universidade pós-moderna questiona, contrapondo-os, mérito e igualdade, reconhecendo no primeiro a manutenção do regime de privilégios e distinções do passado.
Assim, a universidade atual adapta-se à fragilidade do ensino fundamental e médio, passando a compensar as deficiências dessa formação. Para isso, a graduação retoma o ensino médio, a pós-graduação a graduação, o doutorado o mestrado, cuja continuidade é o pós-doutorado, tudo culminando na ideia da "formação continuada" e de avaliações permanentes. Ao mesmo tempo, a ideia de pesquisa moderna anterior transforma-se em fetiche pós-moderno, tanto que a iniciação científica se faz para estudantes em preparação para a vida universitária adulta, mas constrangidos a publicações precoces.
O paradoxo é grande, uma vez que, maiores as carências nos anos de formação do estudante - como a precariedade no acesso à bibliografia em idiomas estrangeiros e dificuldades de expressão oral e escrita na língua nacional -, mais estreitos são os prazos para a conclusão de mestrados e doutorados.
Prazos e métodos, por sua vez, migram das disciplinas científicas para todos os campos do conhecimento, sob o impacto do prestígio da formalização do pensamento, como é possível reconhecer, em particular no estruturalismo e, mais recentemente, no linguistic turn, sua legitimidade garantida pelo rigor científico de suas formulações. Acrescente-se o abandono da ideia de rigor na escrita e o fim do estilo, com o advento do gênero paper e a multiplicação de congressos no mundo globalizado.
Massificada a cultura, proliferaram, com a ditadura militar, a privatização do ensino e seu barateamento, as universidades particulares - salvo as exceções de praxe - prometendo ascensão social e acesso ao "ensino superior" e decepcionando suas promessas. A universidade moderna que a antecedeu garantia o exercício da formação especializada e se encontrava na base dos cursos técnicos com formação humanista para todos os que não se encaminhavam para a pesquisa, devendo atender à profissionalização, mas também à felicidade do conhecimento.
A emergência da universidade pós-moderna diz respeito ao abandono dos critérios consagrados até então a fim de democratizá-la. Mas a democratização pós-moderna é massificação. A sociedade democrática comportava diversas representações das coisas: os partidos representavam as diferentes opiniões, os sindicatos os trabalhadores, a Confederação das Indústrias os empresários.
Na sociedade pós-moderna, o consenso é produzido pela mídia e suas pesquisas de opinião, através da eficiência persuasiva da televisão, que primeiramente cria a opinião pública e depois pesquisa o que ela própria criou. Razão pela qual massificação significa perda da qualidade do conhecimento produzido e transmitido, adaptado às exigências de massas educadas pela televisão, com dificuldade de atenção e treinadas para a dispersão, mimadas por uma educação que se conforma a seu último ethos.
A cultura pós-moderna é a da "desvalorização de todos os valores". Sua noção de igualdade é abstrata, homóloga à do mercado onde tudo se equivale. Em meio à revolução liberal pós-moderna, a universidade presta serviços e se adapta à sociedade de mercado e ao estudante, convertido em cliente e consumidor, como o atesta a ideologia do controle dos docentes por seus alunos.
Em seu ensaio Filosofia e Mestres, Adorno diz, temendo incorrer em sentimentalismo, que o conhecimento exige amor. Sua universidade, a de Frankfurt, era moderna, humanista, como era humanista o professor de uma fita italiana dos anos 1970. No filme, estudantes impedem o franzino docente de literatura românica com seus compêndios eruditos de entrar na sala de aula onde discutem questões do curso.
Sentado em um banco, o mestre escuta o vozerio e ruídos de cadeiras sendo arrastadas. Por fim é chamado e, quando entra, os estudantes em suas carteiras estão em círculo, e o professor senta-se entre eles. Discutem então o que o professor deveria ensinar-lhes. Como não chegam a nenhum consenso e o dia se faz crepuscular, decidem finalmente deixar que o professor se manifeste. Ao que o professor, retomando seu lugar junto à lousa e diante de todos, anuncia: "Estou aqui para ensinar a vocês a beleza de um verso de Petrarca".
Metáfora rigorosa para a educação, da escola maternal à universidade, o conhecimento, como escreveu Freud, é uma das tarefas mais nobres da humanidade no longo processo de sua humanização.
- O Estado de SP, 15/11/2009 -*Olgária Matos é professora de filosofia da USP. Artigo publicado em "O Estado de SP":
Nenhum comentário:
Postar um comentário