sábado, 14 de novembro de 2009

Livro sobre DELEUZE mostra como a filosofia resiste á dominação




Há um momento em Deleuze (foto ao lado), a arte e a filosofia no qual Roberto Machado afirma: “E quando Deleuze diz que numa linha de fuga há sempre traição, isso significa trair as potências fixas, as significações dominantes, a ordem estabelecida – o que exige ser criador”. Talvez, neste trecho, o professor titular de filosofia do IFCS e da UFRJ tenha ressaltado de modo genial um dos pontos mais importantes na obra do pensador francês. Devido à complexidade dos temas abordados e às novas nomenclaturas usadas para captar e expressar o real, Gilles Deleuze tenha-se tornado um dos filósofos de mais difícil assimilação na contemporaneidade. A colocação de Machado, no entanto, não deixa de ser bastante esclarecedora.

Costuma-se dizer que Deleuze é o filósofo da diferença. Ele tentou durante toda a vida desvincular sua reflexão de qualquer tipo de filosofia de identidade ou de representação, chegou a utilizar parte de teorias de filósofos aos quais se opõe, como Platão, para elaborar um modo de reflexão sutil, que não se situa em função de signos cristalizados, imagens ou outros sistemas de significação. A filosofia teria linguagem própria, não estaria submetida a qualquer tipo de representação, seja ela imagística ou vocabular. Daí a dificuldade de penetrar no universo do pensador, já que sua linguagem necessita de novos signos, de nova instrumentalidade, isto é, de nova sintaxe – para Deleuze, filosofia é criação – e, quando se utiliza da existente, torna outros os seus sentidos e significados.

Roberto Machado apresenta uma arqueologia da formação do pensamento e dos conceitos deleuzianos, desde Platão, Aristóteles, Espinosa, Kant e Nietzsche. Parte da filosofia como representação, desenvolvendo o pensamento do filósofo francês, um pensar oposto à representação e à identidade, e vai mostrar “o ápice da diferença”, que é o objeto talvez fundamental da filosofia de Deleuze. Machado transita pela história da filosofia não só com o objetivo de discutir a contestação do pensador à tradição, mas, sobretudo, para dimensionar as questões que este traz à tona para tornar a filosofia um tipo de arte, a qual, independentemente de modelos e referências, desenvolve linguagem própria e escapa dos instrumentos de dominação.

Já na introdução, que tem como título “A geografia do pensamento”, Machado privilegia o espaço, ou topos, em que a filosofia de Deleuze transita, em detrimento da história. Esse espaço apresenta uma espécie de zona de iluminação em que estariam confluentes, concomitantemente, conceitos de alguns filósofos canônicos que, mesmo tendo pontos contestados e desprezados pelo autor francês, intercedem na mesma geografia, permitindo a gestação de novos conceitos. Na verdade, uma espécie de “roubo” ou “apropriação”, palavras do próprio Deleuze, do pensamento alheio descontextualizado de sua natureza original a produzir novas potencialidades. O mesmo acontece na leitura que o filósofo faz de escritores, como Proust e Kafka, e de pintores e cineastas.

O livro é desenvolvido em oito partes, que tratam inicialmente de pensadores da tradição filosófica e dos diálogos possíveis a partir de suas obras com o próprio Deleuze. Mesmo que essa interlocução se dê, em relação a alguns desses pensadores, de modo negativo. Como exemplo, podemos citar a negação do platonismo, já que esse é situado como uma filosofia de representação e de identidade, inversão feita por Gilles Deleuze para afirmar uma filosofia que nega essa mesma representação e opta pela produção de conceitos.

A primeira parte aborda o “nascimento da representação”, onde são situados Platão e Aristóteles. A segunda, nomeada “O ápice da diferença”, culmina com o pensamento de Nietzsche – segundo Machado, o único filósofo a quem Deleuze não apresenta restrições.

As partes 3, 4 apresentam, respectivamente, “Kant, diferença e representação” e “A doutrina das faculdades”, que contém os pressupostos da representação e a diferença do empirismo em relação à abordagem deleuziana. A parte 5 tem como foco a relação filosófica entre Deleuze e Foucault, ressaltando a proximidade entre os dois pensadores.

Daí em diante, talvez uma das seções mais interessantes do livro, é abordado o instrumental teórico de Deleuze em relação às artes. Machado mostra como o filósofo, num diálogo com a literatura, a pintura e o cinema, elabora não uma reflexão sobre essas artes, mas utiliza-se delas como um novo modo de filosofar, situando filosofia e criação artística na mesma interseção geográfica. Tal empreitada não se daria apenas a favor do pensamento, mas tendo em vista que, para Deleuze, a filosofia visa a tornar linguagem o inefável e, até mesmo, o impensável. A prática filosófica teria a sua disposição um arcabouço conceitual em que arte e filosofia transitariam pela mesma via, a partir do momento em que ambas trabalham com a criação, coexistindo na mesma zona de luz ou sombra.

Vejamos uma passagem do livro em que Machado discute o que Deleuze apresenta sobre literatura. Inicialmente, utiliza uma pergunta do próprio filósofo: “O que se torna quem escreve?”. A seguir, o professor esclarece: “Sua resposta é que, se escrever é tornar-se, trata-se de se tornar outra coisa que não escritor, tornar-se estrangeiro em relação a si mesmo e a sua própria língua. E uma das maneiras como ele aborda a questão é pensando o processo de minoração do escritor através da relação entre literatura que ele chama de menor e o que também chama de 'povo menor'. Esse tema está no âmago da filosofia de Deleuze, explicitamente desde Kafka, por uma literatura menor. Ele aparece com clareza num pequeno artigo de 1978, 'Filosofia e minoria'. Esse texto opõe maioria e minoria qualitativamente e não quantitativamente. Maioria implica uma constante, um modelo, uma medida pela qual a maioria é avaliada. O que é ser maioria hoje? Ser homem, branco, ocidental, americano do norte ou europeu, masculino, adulto, racional, heterossexual, morador de cidade... O que é ser minoria? Desviar-se do modelo, ao mesmo tempo teórico e político. O minoritário é um devir potencial que se desvia do modelo. E Deleuze salienta que devir jamais é devir majoritário, que ser majoritário nunca resulta de um devir”.

Na verdade, pensar a diferença é possível quando a filosofia, mesmo se apropriando do cânone, destorça-o de modo a contestar modelos e representações quase sempre hegemônicos, em favor de um pensar que se situe numa zona de sombreamento, onde se dá uma espécie de resistência, cujo objetivo é contrapor-se a qualquer tipo de cristalização que redunde na perda da singularidade.


Por isso, para Gilles Deleuze, a arte se torna tão cara. Essa mesma arte que expressa questões aparentemente menores, mas que funciona como uma “máquina de guerra”, contrapondo-se ao “aparelhamento do estado”, este sempre se fazendo passar por hegemônico e fazendo-se crer preocupado com o bem-estar da maioria. Fato que não deixa de ser uma ficção.
Matéria de Haron Gamal, Jornal do Brasil
Jornal do Brasil on line - 13:07 - 13/11/200

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