quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Por que a tolerância não é mais suficiente.

Zygmunt Bauman*



Publicamos aqui uma parte da videoconferência do sociólogo polonês Zygmunt Bauman apresentada no encontro "Sobre a qualidade da integração escolar", que ocorreu nesta semana em Rimini, na Itália.

Em sua fala, Bauman destaca que, nas sociedades globalizadas, a convivência entre culturas diferentes tornou-se uma característica que não se pode eliminar. No passado, afirma, a presença do "estrangeiro" era sempre um dado inoportuno. Agora, é necessário compreender que as diferenças são uma riqueza inestimável.

A conferência foi publicada no jornal La Repubblica, 16-11-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Viver com os estrangeiros, que é o fundamento demográfico e social da exposição às diferenças, a uma espécie qualquer de alteridade, não é de fato algo novo na história moderna. Mas a ideia era, grosso modo, que qualquer um que seja alheio, estrangeiro, diferente de ti, irá perder, antes ou depois, o seu caráter de estrangeiro. A política dominante para os estrangeiros, na maior parte da história moderna, foi uma política de assimilação: "Vocês estão aqui, estão fisicamente próximos. Tornemo-nos, portanto, próximos também espiritualmente, mentalmente, eticamente", o que quer dizer aceitar os próprios valores universais onde, porém, por "universais", sempre entendemos os "nossos" valores. Então, com essa perspectiva, onde o ser estrangeiro era apenas uma desprezível inconveniência temporânea, não existia a ideia de ter que aprender a viver com o diferente.

Agora, pela primeira vez na história moderna, chegamos a nos dar conta de que as coisas não são assim. A modernidade sempre foi um período de migrações massivas de pessoas de um continente ao outro, de um lado do mundo ao outro, de um cultura à outra, e a migração ocorreu por necessidade nas circunstâncias modernas em que as pessoas, consideradas em excesso, pessoas para as quais não se podia encontrar uma sistematização na sua sociedade de origem – não havia espaço para elas na nova ordem, no novo estado avançado do progresso econômico – eram obrigadas a viajar.

Porém, há uma diferença: as migrações contemporâneas têm uma característica diaspórica, não assimilatória. As pessoas que vão a outro país não vão para lá com a intenção de se tornar como a população hóspede. A população hóspede, nativa, não está particularmente interessada em assimilá-las.

Há cerca de 180 diásporas que convivem em Londres, 180 línguas, culturas, tradições, memórias coletivas diversas. E o problema é que, se a política de assimilação não é facilmente viável, como podemos viver dia a dia com os estrangeiros? Como podemos comunicar, cooperar, viver em paz sem que percamos nossa identidade e sem que eles percam a sua, portanto em uma coabitação que não leve à uniformidade? Em outras palavras, a questão não é mais a de sermos tolerantes às pessoas diferentes. A tolerância, na realidade, é muito frequentemente um outro rosto da discriminação. "Sou tolerante aos teus hábitos e aos teus usos bizarros. Sou uma pessoa muito aberta, sou superior a ti. Entendo que o meu estilo de vida não pode ser recebido por ti. Tu não podes alcançar o mesmo nível. Então, permito que tu sigas o teu estilo de vida, mas eu nunca faria isso se fosse tu".

O desafio com o qual devemos enfrentar hoje consiste em passar dessa atitude de tolerância a um nível mais alto, isto é, a uma atitude de solidariedade. Devemos nos render ao fato de que existem estrangeiros, mas também aprender a tirar vantagens disso. A maior parte de nós vive em grandes cidades. As cidades são sempre cheias de estrangeiros, e a sua presença é inquietante, porque você não sabe como se comportariam se não os mantivessem à distância, levantam suspeitas, causam horror simplesmente porque são entidades estranhas. Os estrangeiros dão medo. Chamei esse medo típico das cidades contemporâneas de "mixofobia", a fobia de se misturar com outras pessoas, porque lá onde nos misturamos com outras pessoas em um ambiente pouco familiar tudo pode acontecer.

Mas a mesma condição de mistura com os estrangeiros provoca também uma outra atitude. Há duas reações contraditórias ao fenômeno, ambas observáveis nas cidades contemporâneas. A segunda é a mixofilia, a alegria de estar em um ambiente diferente e estimulante. Hannah Arendt provavelmente foi a primeira pensadora moderna que, repensando Gotthold Ephraim Lessing, um dos pioneiros do Iluminismo alemão, viu nele uma das figuras mais perspicazes entre os filósofos da primeira modernidade.

Segundo Lessing, não é preciso se limitar a aceitar o fato de que a diferença é destinada a perdurar, mas é preciso efetivamente apreciá-la, reconhecer que nela há um potencial criativo sem precedentes. O fato de reunir experiências, recordações, visões do mundo muito diversas pode levar a uma prosperidade de desenvolvimento cultural. É muito cedo para dizer quais podem ser os desenvolvimentos, porque as duas tendências contrapostas, a mixofobia e a mixofilia, têm mais ou menos força igual. Às vezes, prevalece uma, às vezes, a outra. A questão é incerta, ainda estamos no meio de um processo que não sabemos bem como irá acabar.

Aquilo que estamos fazendo nas ruas das cidades, nas escolas primárias e secundárias, nos lugares públicos onde estamos ao lado de outras pessoas é de extrema importância, não apenas para o futuro das cidades em que queremos passar o resto da nossa vida, ou pelo menos em que vivemos neste momento, mas também é de suma importância para o futuro da humanidade. Vivemos em um mundo globalizado. A globalização alcançou um ponto de não retorno, não podemos voltar atrás, estamos todos interconectados e interdependentes. Aquilo que ocorre em lugares remotos tem um impacto formidável nas perspectivas de vida e no futuro de cada um de nós.

Por isso, chegou o momento de fazer o que Lessing previu que teríamos que fazer, isto é, aprender a apreciar as oportunidades criadas pelas nossas diferenças, em vez de termer as consequências mórbidas da convivência com as diferenças. Confrontamo-nos com as consequências da globalização em cada rua das cidades em que vivemos, em cada escola em que ensinamos, mas do outro lado, pela mesma razão, as cidades, as escolas são o laboratório em que desenvolvemos os modos para aprender, tirar benefício, enriquecer e alegrar-nos com a natureza diaspórica da realidade contemporânea. Não estou dizendo que se trata de uma tarefa fácil. Confrontar-se com um desafio que os nossos antepassados nunca passaram nos põe diante de uma tarefa que coloca à dura prova a nossa mente e as nossas emoções e que devemos ser capazes de enfrentar no seu desdobramento, no seu curso, sem dispôr de soluções pré-constituídas.

*Sociólogo polonês. Atualmente é professor emérito das universidades de Leeds e de Varsóvia. Tem mais de dez obras publicadas no Brasil.

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