sábado, 21 de novembro de 2009

A queda de todos os muros

Duas décadas depois da destruição dos limites entre as Alemanhas, outras barreiras sem a mesma visibilidade e simbolismo político continuam erguidas pelo mundo
Gustavo Lins Ribeiro*

Sempre existiram separações de territórios, acompanhadas ou não de uma noção de propriedade, de uma linha, cerca ou muro que demarcasse uma determinada área. Afinal, homo sapiens é sabidamente um animal territorial. Claro que as formas de delimitar áreas de acordo com preceitos econômicos ou políticos variaram com o tempo. Dos vários tipos de separações realizados pelos muros e cercas, considerarei algumas que, internamente ao sistema mundial contemporâneo, dizem respeito a separações marcadas por concepções político-ideológicas e econômicas diferentes, por linhas que separam os pobres dos ricos, por concepções étnico-racial-culturais diferentes. Na verdade, muitas vezes os motivos dessas separações se embaralham de tal forma que distingui-las é possível apenas analiticamente.

É impossível deixar de começar pelo muro de Berlim, não apenas pelos 20 anos de sua queda, celebrados devidamente em 9 de novembro de 2009, mas sobretudo porque, no século 20, nenhum muro simbolizou mais do que ele uma separação entre duas metades tão globalmente diferentes, o mundo capitalista e o mundo socialista. Essa oposição violenta ficou popularizada na história por meio de uma curiosa expressão, a guerra fria, expressão que certamente indicava o grau de animosidade do, então, mundo bipolar. O muro de Berlim representava o antagonismo entre dois regimes políticos e econômicos que, no presente, não parecem ser tão fáceis de descrever sinteticamente, mas que de toda forma se expressavam em termos opostos tão imperfeitos que mais escondiam do que revelavam: democracia representativa versus centralismo democrático; economia de livre mercado versus economia centralmente planejada; liberdades democráticas versus autoritarismo de Estado.

O muro de Berlim tornou-se um ícone do século 20 porque concretizava a oposição das maiores forças político-econômicas de então e porque foi construído em uma cidade que protagonizou e sintetizou as principais forças e contradições do período, como capital de uma das maiores potências europeias: das primeiras lutas entre nacional-socialistas e comunistas; passando pela implantação do nazismo; por duas guerras mundiais, sobretudo a segunda quando Berlim é praticamente arrasada; pela cristalização territorial do conflito entre capitalistas e socialistas no pós-segunda guerra, na Alemanha, em geral, e em Berlim, em particular, com a construção do muro em 1961; até a derrubada do muro e a reunificação alemã com o retorno da capital a Berlim, simbolizando não apenas o fim da Guerra Fria, mas também o do socialismo real e o começo do que ironicamente chamei de globalização realmente existente. Pode-se ler o século 20 nas ruas de Berlim.

Mas há outros muros e cercas que se mantiveram e nunca foram tão globalmente visíveis quanto o de Berlim. Essa relativa invisibilidade talvez se deva ao fato de não se localizarem em situação tão central quanto a berlinense; talvez se deva à eficácia da ideologia do mundo globalizado segundo a qual vivemos em um mundo sem fronteiras. Penso, por exemplo, na Zona Desmilitarizada que separa as Coreias do Norte e do Sul, com seus 248kms de extensão e 4km de largura, a fronteira mais militarizada do mundo, apesar do seu nome.

Enquanto a geopolítica global continua reproduzindo-se em cenários militarizados, as populações locais continuam pagando, especialmente com a separação de famílias, cortadas por linhas ideológicas manipuladas pelos Estados, e também com o incessante recrutamento de jovens a serviço de interesses militares de elites estatais. Se a zona desmilitarizada entre as Coreias representa uma permanência concreta e anacrônica dos limites políticos e ideológicos da Guerra Fria, outras fronteiras e cercas contemporâneas representam limites ainda mais antigos: aqueles entre ricos e pobres.

Separação de ricos e pobres

Não há fronteira que simbolize tão claramente a separação entre ricos e pobres do que a existente entre o México e os Estados Unidos. Não apenas por sua extensão, de quase 3.200km, mas também por separar a economia mais rica do mundo de um país representante do sul global. Centenas de quilômetros já foram construídos, em áreas urbanas e rurais, de uma controvertida cerca planejada para ter aproximadamente 1.200km e destinada a controlar o maior fluxo legal e ilegal, no mundo, de pessoas atravessando uma fronteira. Muitos milhares de agentes da Patrulha de Fronteira dos Estados Unidos, membros da Guarda Nacional e mesmo do exército têm feito a segurança do lado americano, vigiando a passagem de migrantes, de contrabando e drogas, e utilizando, muitas vezes, aparelhos sofisticados de detecção de intrusos. Guiados por coyotes (atravessadores e guias profissionais), mexicanos e pessoas de muitos outros países, inclusive brasileiros, expõem-se, para evitar o controle americano, a travessias extremamente perigosas por ambientes inóspitos. Mortes de migrantes são frequentes nestas tentativas, especialmente no Deserto de Sonora.

Tal como em outras situações fronteiriças, criam-se diferentes realidades transfronteiriças como as existentes entre Ciudad Juarez e El Paso, entre Tijuana e San Diego, no México e nos Estados Unidos, respectivamente. Mais uma vez, encontram-se situações propensas a ambiguidades e enrijecimentos identitários.

O caráter estratégico desta fronteira, com suas cercas e controles, não se resume a marcar e reforçar reciprocamente construções identitárias nacionalistas e essencialistas entre mexicanos e americanos protestantes anglo-saxões, construindo estereótipos utilizáveis em todos os âmbitos de interação entre estas vastas populações nos Estados Unidos. Não são poucos estes âmbitos, na verdade, os “mexicanos”, sejam na forma de migrantes recentes, de mexicanos-americanos ou de chicanos, formam o maior segmento étnico internamente àquele país. Evidentemente, os EUA não seriam o que são se não tivessem anexado quase a metade do território mexicano e incorporado uma enorme quantidade de pessoas nascidas no México ou a ele ligado por descendência. De fato, apesar da retórica da necessidade de controle migratório, os Estados Unidos seriam impensáveis sem a imigração em geral – fonte inesgotável de acumulação primitiva – e a imigração mexicana, em particular. O que seria da economia da Califórnia sem os migrantes mexicanos permanentes ou temporários?

Civilizações separadas

Muito do apresentado até agora aplica-se a outras fronteiras fortificadas antimigrantes tendo como cenário outras linhas de separação entre ricos e pobres, desta vez em situações reminiscentes de tempos coloniais envolvendo a União Europeia e a África e muito menos conhecidas do que o muro de Berlim, a Zona Desmilitarizada entre as Coréias ou a fronteira mexicana-americana. Refiro-me às cercas de Ceuta e de Melilla, dois enclaves espanhóis no Marrocos cuja história mais uma vez é representativa da ambiguidade destas zonas. São territórios denominados de África Espanhola, “praças de soberania” – rótulo que aponta para uma geopolítica espanhola que se apoia ainda na Reconquista, isto é na retomada pelos cristãos dos territórios da Península Ibérica invadidos, na Idade Média, por 800 anos pelos muçulmanos. Hoje, Ceuta e Melilla, as duas somando quase 150.000 habitantes, são cidades autônomas, espanholas e portanto parte da União Européia na África. Estão separadas do Marrocos por cercas duplas, uma de 12kms a outra de 6kms, com sofisticados aparelhos de detecção, em uma zona altamente vigiada. Seu objetivo é deter o contrabando e a imigração legal, desta vez proveniente, em sua maioria, da África subsaariana. Em 2005, um grave conflito envolvendo migrantes, as polícias espanhola e marroquina, deixou vários mortos.

Ceuta e Melilla, além de serem fronteiras entre ricos e pobres, entre migrantes e o Eldorado europeu, são também fronteiras entre civilizações, como bem indica sua história geopolítica. São fronteiras entre a África negra e a Europa, entre os muçulmanos e os cristãos, isto é entre etnicidades, religiões e culturas diferentes. Mas, no mundo contemporâneo, nenhuma fronteira simboliza tão fortemente a separação de civilizações quanto o triste muro entre israelenses e palestinos na Faixa de Gaza. São dezenas de quilômetros de concretos ódios e discriminações.

As fronteiras são mecanismos classificatórios e taxonômicos que dividem o mundo entre nós e eles. São encarnações lineares das ideologias territoriais dos Estados nacionais. Como todas as zonas limítrofes, se prestam, ao mesmo tempo, a situações liminares, ambíguas, onde as identidades dos atores podem ser manipuladas conforme interesses diversos, ou a rigidez identitária absoluta, definidas de forma essencialista. As fronteiras fortificadas são exemplos claros de intolerância político-ideológica, étnica e de classe, muitas vezes animadas por xenofobias e racismos, mais ou menos abertos. Seus muros e cercas são construídos por diversos motivos: para evitar a mudança e a “desordem”, a exposição a uma competição por recursos vistos como escassos; para manter privilégios; para evitar a poluição que a mistura com “outros” radicalmente diferentes pode causar; para impedir que compatriotas sintonizados nas promessas salvíficas do outro lado desertem, expondo os limites das promessas salvíficas do lado que quer controlar as deserções. Como aparatos classificatórios e taxonômicos, seus significados são passíveis de redefinição de acordo com conjunturas e interesses diferenciados.

Existem outros muros e cercas que continuam a dividir o mundo, gerando situações de injustiça e violência. Alguns são chamados de muros da vergonha, como a denunciar os piores sentimentos e realidades que os embasam. Apesar da certeza de que os muros e cercas caem ou se tornam desnecessários de acordo com momentos históricos diferentes, a persistência destas formas de divisão nos faz crer que ainda estamos longe de poder testemunhar a queda de todos os muros, algo que podemos almejar inspirados na queda do muro de Berlim.

Oxalá fora o desaparecimento do muro de Berlim o primeiro movimento no dominó da queda de todos os muros!

*Professor titular do departamento de antropologia, Gustavo Lins Ribeiro é diretor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília. O texto acima é versão condensada do que foi apresentado no seminário “Além do Muro – 20 Anos da Queda do Muro de Berlim”, organizado pelo Departamento de História da UnB, Embaixada Alemã e Goethe-Zentrum Brasília
FONTE: CORREIO BRAZILIENSE ONLINE, 21/11/2009

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