sábado, 21 de novembro de 2009

KÜNG: "Entender para crer"



Publicamos a seguir um trecho do novo livro de Hans Küng, "Was ich glaube" [Em que creio] (até agora só na edição alemã). O excerto foi publicado no jornal Il Sole-24 Ore, 15-09-2009. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis o texto.

Minha espiritualidade sempre esteve mais envolvida com a racionalidade do que com a sensibilidade. Jamais quis simplesmente “crer”, mas também entender. Como teólogo sempre me considerei também filósofo, estudei filosofia e a pratiquei. A aversão contra esta matéria, continuamente observável de Martinho Lutero em diante, não me diz respeito. De outra parte, jamais me ficou claro por que os filósofos dos séculos vinte e vinte e um jamais quiseram colocar-se a questão da “metafísica”, consignando aos teólogos a administração desta grande herança da filosofia ocidental.

Pode ser que com minha teologia eu consiga remediar este esquecimento de Deus sobrevindo na filosofia e este esquecimento da filosofia ocorrido na teologia? Em todo caso, minha teologia não deveria ser uma ciência secreta para quem já é crente, que se entrincheira nas questões cruciais por trás dos mistérios, como o foi aquela atitude criada pelos teólogos no decurso de uma problemática histórica dos dogmas. Ela deveria antes ser compreensível, compartilhável e fidedigna, a ponto de aproximar também os não crentes do único grande mistério da realidade, aquele ao qual nós damos o nome de “Deus”.

Não posso e não quero esgotar minha razão nas questões de fé. Tudo o que é absurdo, obscuro, infantil, grotesco, reacionário, sinto-o estranho a mim, bem como aquela histeria massificada ou até mesmo mundial que se verifica no caso de um trágico incidente que ocorre a uma bela princesa, na morte inesperada de uma popstar envolta pelos escândalos ou na morte pública e difundida midiaticamente de um Papa.

Mas, também uma racionalidade absolutizada, um racionalismo ideológico podem ser uma superstição, de modo semelhante ao dogmatismo teológico. Em todo caso, tenho pouca vontade, tanto de discutir com os racionalistas enrijecidos, como com os dogmáticos imóveis. Mais de uma vez constatei que na polêmica ambos se demonstram incapazes até mesmo de referir somente de modo correto as minhas opiniões. Naquelas circunstâncias sua ratio é ofuscada pela passio.

Naturalmente também eu, como todo ser humano, não sou feito somente de razão e racionalidade, mas também de sentir e querer, de índole e fantasia, de emoções e paixões. Esforço-me decididamente por conseguir uma visão complexiva das coisas. Aprendi a pensar de maneira metódica e clara, o que se chama esprit de géometrie segundo o espírito de Descartes. Todavia, tenho tentado simultaneamente adquirir um conhecer, um sentir e um perceber que seja completo e intuitivo, segundo o esprit de finesse do antípoda de Descartes, ou seja, o excelente matemático Blaise Pascal.

No ginásio de Lucerna nós estudantes talvez entendêssemos mal nosso ótimo professor de história da arte que, durante o estudo de uma ópera, quando estávamos ante qualquer coisa não quantificável, porém estético, ou então ante a beleza, dizia esfregando os polegares com os indicadores e os médios: “Deveis sentí-lo, intuí-lo!” Mas, tinha razão. Há tantos fenômenos especificamente humanos como a arte, a música, o humor, o riso e por certo a dor, o amor, a fé e a esperança que não se deixam captar de maneira crítico-racional em suas várias dimensões, de modo que só é possível percebê-los em sua plenitude. Também a nova pesquisa sobre o cérebro está em condições, com seus grandes tomógrafos computadorizados, de explicar o funcionamento dos neurônios, mas não de descobrir os conteúdos dos nossos pensamentos e das nossas emoções.

Já quando eu era um jovem professor, considerava fascinante ter uma troca com os grandes cientistas das outras disciplinas. Não falava então de “interdisciplinaridade”, mas a exercitava onde quer que eu pudesse. Naturalmente considerava fundamental uma conduta de respeito, não com os sabidos acadêmicos, porém com os verdadeiros grandes conhecedores da matéria. Um respeito ante seu imenso saber, os seus resultados dotados de fundamento, sua diversa metodologia e seus juízos objetivos. Também na teologia tive que lidar com filósofos, juristas, historiadores e médicos e depois, de maneira cada vez maior com psicólogos, sociólogos e politólogos. Acima de tudo sempre quis levar a sério a independência e a autonomia das ciências naturais ou matemático-experimentais e me empenhei para que não viessem a ser postas em dúvida por nenhum teólogo ou religioso que apelasse a uma autoridade superior (Deus, a Bíblia, a Igreja, o Papa).

Da mesma forma, sempre considerei importante que, se fosse preciso tratar as questões das ciências naturais segundo seu método e estilo, então, de outro lado, seria preciso que também as questões da psique humana e da sociedade, bem como as do direito, da política e da pesquisa historiográfica, e tanto mais as da estética, da moral e da religião, fossem tratadas segundo seu método e estilo. De maneira de todo legítima, atualmente também nas ciências do espírito nós nos ocupamos sempre mais da análise dos fenômenos, das operações, dos processos e das estruturas. Mas, fazendo isso, não devemos esquecer que há questões legítimas em âmbito científico que se referem ao sentido primeiro e último das coisas, aos valores, aos ideais, às normas e aos comportamentos. Estas questões requerem uma resposta. Como filósofo e teólogo, não posso contentar-me com a problematicidade superficial do nosso mundo secularizado e reduzido unicamente à racionalidade e funcionalidade, porém devo procurar penetrar em sua dimensão mais profunda. De outra forma, como se poderia encontrar uma resposta à pergunta sobre o fundamento da vida?

FONTE: IHU/Unisinos online, 21/11/2009

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