“‘O primeiro homem que reuniu um buquê de flores tornou-se deferente do animal.’ A meditação japonesa, antiga de 2 mil anos, continua: ‘Tornou-se um homem porque exigiu da natureza alguma coisa mais que a satisfação de suas necessidades imediatas. Entrando no domínio da arte, reconhece a utilidade do inútil”.”
“A volta eterna às coisas simples acontece quando estamos de bem com o mundo e mergulhamos no curso da vida. O brilho de uma jarra, o canto de uma criança na casa vizinha, um cão que late na distância. De mãos dadas com a realidade, não somos a favor nem contra: as coisas existem e nós a amamos porque existem.”
“Um rosto é uma revelação repentina — ou pode ser um mistério que não se resolve. Tudo depende de saber amá-lo, de saber chegar perto e ficar, sem pressa ou interesse pessoal. Um rosto humano é sempre um desafio, um segredo, uma janela do espírito — tudo aquilo que nossos olhos distraídos permitem ver.”
“Um monge trapista que escrevia livros — Thomas Merton — respondeu uma vez a alguém que lhe perguntou sobre o significado dessa coisa tão simples e maravilhosa que é estar atento: ‘Atenção perfeita é o estado de estar consciente daquilo que se está fazendo. Nada mais que isso’”.
“Não importa se os dias estão azuis ou cobertos de nuvens, se as noites estão estreladas o use são negras e há relâmpagos no céu. O que vale é o tempo que faz dentro de mim, e o modo como vejo o mundo. Se ele é luminoso e calmo, estou aberto para a beleza, a brisa e a música.”
“Nas grandes cidades, onde o silêncio às vezes é possível nas madrugadas, há mais para ver e aprender do que geralmente se pensa. Quando muitos homens se reúnem em torno de interesses comuns, o que está em suas almas vem freqüentemente para fora, e dá forma aos objetos e às pessoas. A cidade grande é um imenso espelho, em que podemos ver nossos próprio rosto multiplicado muitas vezes. Quando nos servimos das cidades para entender o que somos, elas se tornam abençoadas.”
“Como um pássaro que voa longe quando tentamos tocar suas asas, a beleza se esconde se queremos entendê-la a nosso lado. Com gestos delicados, atenção tranqüila e amor pelo desconhecido, ela se chega a nós antes que possamos dar o primeiro passo na sua direção. O imprevisto é a sua marca, o vazio é o seu chamado, o silêncio é seu prenúncio.”
“Um brinquedo, uma roupa, a pequena cama — os objetos que cercam a vida de uma criança conservam sua energia quando ela se ausenta para ir à escola ou viajar. Há naquelas coisas uma vibração que se percebe no ar. Aqueles que amam costumam também imantar tudo o que tocam, e assim deixam um rastro perfumado por onde passam.”
“‘Como são graciosas as crianças, antes de aprenderem a dançar’. O poeta inglês Samuel Coleridge queria falar da espontaneidade, da beleza que não pode ser preparada nem deseja impressionar alguma coisa que existe em estado natural, inocente de seus próprios encantos. O mundo sonha com um tempo em que a liberdade e a beleza vão caminhar de mãos dadas – sem preparação ou aviso, em nome do amor e da graça de viver.”
“‘Uma pessoa livre é alguém tão disponível quanto um recém-nascido, uma página em branco onde ainda nada foi escrito.’ ( Eckhart) Como as crianças pequenas, que são livres porque ninguém lhes ensinou, ainda, como é que se conquista a liberdade.”
“O caminho de casa tem tudo para ser o mais conhecido, e no entanto é o que menos conhecemos. De tanto percorrê-lo distraidamente, não o vemos mais como de fato é, com suas cores e formas, seus sons e perfumes. É assim também que agimos com aqueles que dizemos amar: eles estão próximos, com a sua verdade, mas nós estamos cegos pelo hábito de viver.”
“Ver claramente é poesia, profecia e religião, tudo de uma vez.” — John Ruskin
“Há um provérbio popular espanhol que diz: ‘O mundo é de Deus, mas Deus o aluga aos corajosos’. As pessoas que o repetem descobrem um dia que a coragem de que fala é a ousadia de ver a vida com os olhos de um recém-chegado para quem cada coisa acontece sempre pela primeira e pela última vez. Aos homens que têm a coragem de ver assim, Deus empresta seu mundo — como já havia emprestado sua sabedoria.”
“Quando deixaram de ver as coisas que estão à sua volta, algumas pessoas dizem que se acostumaram com elas. O céu noturno estrelado, as nuvens vermelhas do pôr-do-sol, os pássaros que teimam em cantar no coração das cidades de cimento — o mundo fica invisível aos poucos, como se fossem apagando os nossos olhos para sempre. Os que conseguem ver o mundo com olhos novos vivem nos baços do deslumbramento. Os outros, vítimas modernas do cansaço, já não vêem o mundo em que estão mergulhados.”
“O poeta e filósofo persa Al-Ghazali achava que a música — uma certa música, principalmente — é aliada ao verdadeiro conhecimento, aquele que flui de dentro do espírito, não dos livros ou das teorias. Para o poeta, a música abre as janelas do coração, de tal maneira que às vezes quem começa a ouvir a melodia não é o mesmo homem que houve seus acordes finais.”
“Se a música fosse apenas uma combinação de sons, não ocuparia um espaço tão grande na vida dos homens. Porque a música é uma janela do espírito, uma força capaz de envolver e transformar quem a ouve, ela acompanha o ser humano na sua caminhada pelo mundo.”
“O som da água que corre, que passa entre as pedras e cai mais adiante , é música também – como é música o brilho dessas pedras e o rosto humano que eterniza o instante quando existe amor, e se dispersa quando há apenas a contemplação da beleza.”
“Quando quiseram saber do pensador Karl Jaspers porque não viajava, ele explicou que podia vir a saber, dentro de casa, tudo o que valia a pana saber. O encanto das viagens não está nas mudanças de cenário, ou na fuga à vida de todo dia, mas nas descobertas que se sucedem no espírito. Se a viagem externa — aquela que nos leva de um lugar ao outro do mapa — não se fizer acompanhar de uma viagem interior, o cavaleiro estará vivendo talvez, no seu percurso, a mesma experiência de sua montaria.”
“Essa marca do nosso tempo, a velocidade é difícil de justificar. A razão pela qual corremos é um enigma até mesmo para aquele que se apressa. Se o que se deseja é chegar um pouco antes a algum lugar, seria melhor sair mais cedo e seguir devagar – conhecendo o caminho e aproveitando o percurso, talvez para descobrir que ele é muito mais fascinante que o ponto de chegada. No mundo animal, a velocidade está sempre associada à fuga e a fome, e quase nunca é fonte de prazer. Entre os homens, a pressa pode muito bem ser um pretexto.”
“‘O poeta americano Ezra Pound definiu uma vez a poesia como a dança da inteligência entre as palavras’. O menor contato com a arte poética mostra, na verdade, como as palavras são necessárias, como são também grandes obstáculos. Andar entre elas faz parte da sabedoria de viver. Saber dançar entre elas é um presente do céu.”
*O título da crônica é meu... Original do autor é LUIZ CARLOS LISBOA, que não entendi...
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
FONTE: Correio Popular/Campinas - 22/11/2009
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