"A condição homossexual em si nunca é pecado", afirma Luís Corrêa Lima, padre jesuíta, teólogo e doutor em História pela Universidade de Brasília, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, onde coordena um projeto de pesquisa sobre homossexualidade e religião.
Corrê Lima concedeu uma entrevista ao jornal Crítica de la Argentina, 15-11-2009. A tradução de Vanessa Alves.
Eis a entrevista.
Numa entrevista publicada por este jornal, um representante da Igreja chilena disse que “a homossexualidade não está no plano de Deus” e que “é consequência do pecado original”. Qual sua opinião?
Para conhecer o plano de Deus, precisamos ouvir a linguagem da criação. Conforme o Papa, a fé no criador leva ao dever de escutar essa linguagem. Na natureza, a homossexualidade já foi documentada em mais de 450 espécies animais, e, no ser humano, existe em todas as culturas conhecidas. Buscar no pecado original a origem da homossexualidade é um erro.
A homossexualidade é pecado?
A condição homossexual em si nunca é pecado, porque não se trata de uma escolha livre da pessoa. Com relação ao comportamento ou as escolhas, aí sim entra a liberdade.
E qual comportamento deve ter um cristão homossexual?
Todo ser humano é, antes de tudo, designado para amar e ser amado. O Concílio Vaticano II ensina que a consciência é o sacrário onde Deus se manifesta, e ninguém deve agir contra sua própria consciência nem ser impedido de agir de acordo com ela. As pessoas adultas, muitas vezes, devem tomar decisões em situações complexas, onde as normas da sociedade e as instituições não prevêem de maneira adequada todas as circunstâncias. O cristão adulto deve ser adulto também na sua fé, colocando-se diante de Deus e sua consciência.
Por que a hierarquia da Igreja condena a homossexualidade?
Igreja tem seus alicerces na milenária tradição judeu-cristã, mas está espalhada pelo mundo, vivendo na cultura moderna. No judaísmo antigo, acreditava-se que o homem e a mulher haviam sido criados um para o outro, para se unirem e procriarem, e o homoerotismo era considerado uma abominação. Israel devia se diferenciar de outras nações de várias maneiras, entre elas, proibindo. O cristianismo herdou essa visão antropológica com sua interdição. A Doutrina da Igreja corresponde a uma longa sedimentação, de muitos séculos. O consenso sobre a compreensão da Bíblia e da chamada lei natural não é imutável, mas não muda rapidamente.
Costuma-se dizer que a Bíblia condena a homossexualidade. É verdade?
A Bíblia expressa a fé do antigo povo de Israel e das primeiras gerações cristãs. Nessa expressão, a palavra de Deus está presente. A revelação divina se reproduz na linguagem e nas categorias humanas e tem um enraizamento sociocultural, mas não deve ser confundida com ele. Na Bíblia, há uma cosmologia que diz que o mundo foi criado em seis dias e a Terra surgiu antes do Sol e das estrelas. Há uma antropologia que diz que o homem vem do barro e a mulher da costela do homem. E nessa antropologia também se proibia a união entre dois homens e duas mulheres. Não se deve seguir tudo ao pé da letra, como se hoje fosse necessário entender assim. Na Bíblia, não há respostas para todas as nossas perguntas.
O Levítico diz: “Com homem não te deitarás como se fosse mulher, é abominação”, mas também diz que é “abominação” comer animais do mar ou do rio sem barbatanas ou escamas. Por que a Igreja condena a homossexualidade, mas não a ingestão de mariscos?
Essa parte do Levítico trata do código de santidade, que regulamenta o culto de Israel e estabelece as diferenças que deve haver entre esse povo e os demais. Quando o cristianismo se expandiu entre os povos não judeus, esse código deixou de ser normativo. No entanto, como a proibição do homoerotismo permaneceu, esses versículos continuam sendo citados. Sem dúvida, é uma leitura retrospectiva e seletiva.
Como você interpreta a expressão “contra natura” presente na Epístola de São Paulo e assinalada como referência à homossexualidade?
A carta de São Paulo aos Romanos contém uma refutação do politeísmo. Os pagãos não adoravam a um deus único e, como permitiam o homoerotismo, que era abominável para os judeus, isso era visto como castigo divino pela prática religiosa equivocada. No contexto judeu-cristão da antiguidade, este argumento era compreensível, mas não deve ser usado hoje para indivíduos constitutivamente gays, para quem a orientação sexual não tem nada que ver com a crença em um ou vários deuses.
Alguns defendem que a relação entre David e Jônatas, assim como a de Rute e Noemi, era homossexual. Diz a Bíblia que David e Jônatas “beijaram-se um ao outro” e em uma passagem David diz a Jônatas: “Teu amor foi para mim mais maravilhoso que o amor das mulheres”. Qual sua opinião?
Nós lemos isso hoje e podemos pensar em homossexualidade. Mas para os primeiros leitores judeus da antiguidade, observadores da lei de Moisés, isso era inadmissível. De qualquer maneira, um texto pode transpassar sua época e contexto e ser lido em outro horizonte de interpretação, gerando novos sentidos em novos leitores.
É possível ser homossexual e católico ao mesmo tempo?
Sim. A Igreja nasceu rompendo as fronteiras do judaísmo no primeiro século, incorporando multidões de povos que não eram circuncidados. Hoje, pode também se conceber uma identidade simultaneamente gay e cristã, estimulando as comunidades locais a acolher as diversidades.
Na página da agência católica ACI, as notas mais destacadas são declarações contra o matrimônio gay. Por que tanta obsessão contra os homossexuais?
Certa vez, o papa Benedito XVI disse que o cristianismo “não é um conjunto de proibições, e sim uma opção positiva”. Essa consciência hoje desapareceu quase completamente. Há no cristianismo uma tradição de séculos de proibição, medo e culpa. Convém retornar as nossas origens. A palavra evangelho quer dizer “boa notícia” e, para os cristãos, é o amor de Deus e sua salvação, revelados em Jesus Cristo. Hoje é necessário focar a dimensão positiva e alegre da mensagem cristã.
Conforme Boswell, a Igreja nem sempre condenou a homossexualidade e chegou a celebrar matrimônios homossexuais no passado. É verdade?
A história da Igreja é vasta; abrange um terço da humanidade por vinte séculos. Boswell é bastante documentado e é provável que o que diz tenha acontecido, mas essas práticas não viraram hegemônicas. No entanto, podem ajudar a pensar essa questão no presente e no futuro.
Acredita que chegará o dia em que a Igreja católica aceitará casar homossexuais, como fazem algumas igrejas protestantes?
O futuro é imprevisível, mas a Igreja católica sempre está inserida num contexto mais amplo, que é a sociedade. Quando a sociedade muda, a Igreja acaba mudando. A modernidade vem desencadeando grandes mudanças na Igreja nos últimos séculos, e esse processo continua.
Suponhamos, num exercício de ficção, que essa mudança se produzisse. Como padre, gostaria de casar um casal gay?
Se a Igreja algum dia aceitar, não negarei.
Você coordena um grupo de pesquisa sobre homossexualidade e religião na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Como surgiu e que trabalho realiza?
Meu interesse pelo tema nasceu do meu trabalho como sacerdote, encontrando pessoas nascidas e criadas na Igreja que se descobriam gays e viviam conflitos. O foco do projeto é a complexa relação entre religião e homossexualidade e suas repercussões no espaço público e no exercício da cidadania. Temos grupos de estudos, trabalhos e teses concluídas ou em curso, publicações e atividades dentro da agenda universitária.
Alguma vez se sentiu pressionado pela hierarquia da Igreja para não se expressar sobre esses assuntos?
A Companhia de Jesus realiza um trabalho apostólico de fronteira, nas encruzilhadas ideológicas onde há conflito entre as aspirações humanas legítimas e a mensagem evangélica. Isso inclui fazer pontes com os que estão fora da igreja e têm dificuldades com suas posições. Como jesuíta, sinto-me muito comprometido com este trabalho. Mas, como membro da Igreja, eu não posso ignorar minha pertença e certas tradições. É um equilíbrio delicado e trato de ser cuidadoso para evitar problemas maiores.
FONTE: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=27645 -19/11/2009
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