Adolfo Pérez Esquivel
O ativista político e Nobel da Paz argentino diz por que defende
a ideia de que os crimes ambientais sejam tipificados como
ofensas contra a humanidade e julgados na Corte de Haia
"Todos os que, de alguma forma, ameaçam a vida dos bilhões de habitantes da Terra precisam ser punidos"
O argentino Adolfo Pérez Esquivel, 78 anos, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1980 por sua luta pelos direitos humanos na América Latina, tornou-se o maior defensor de um projeto audacioso e potencialmente perigoso para combater os crimes ambientais. Ele propõe que seus responsáveis sejam julgados pelo Tribunal Penal Internacional de Haia, que se ocupa dos crimes de guerra e contra a humanidade. Sua justificativa é que a destruição da natureza constitui um delito tão grave quanto os genocídios ou os assassinatos cometidos pelas ditaduras. Esquivel esteve em São Paulo na semana passada para fazer uma palestra a convite da ONG Serviço Paz e Justiça, na segunda escala do périplo que empreende pelo mundo para divulgar sua ideia a integrantes dos governos e das sociedades.
Ele falou a VEJA.
O senhor propõe julgar os crimes ambientais com a mesma severidade com que se julgam os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade, na Corte Penal de Haia. Esses delitos se equivalem?
Qual a diferença entre o assassinato de milhares de civis em um ataque no Afeganistão e a matança de milhares de pessoas por contaminação da água? Ou entre a fome causada pelos conflitos tribais na África e a fome causada pela destruição do solo e uso indevido da terra? Morte é morte em qualquer lugar, assim como a fome é terrível e devastadora em qualquer parte do mundo. No entanto, poucos param para pensar no estrago que as catástrofes ambientais causam diariamente ao planeta e às pessoas que o habitam. A contaminação da água e do solo e a destruição da biodiversidade acarretam doenças, pobreza e falta de comida. O que proponho é acabar com a impunidade para esses crimes. Todos se lembram da explosão na usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia. Ou do vazamento de gás tóxico de uma fábrica da Union Carbide em Bhopal, na Índia. Até hoje esses crimes, que provocaram a morte de milhares de pessoas, continuam impunes. O mesmo se aplica às empresas de petróleo responsáveis por vazamentos nos mares, às grandes mineradoras e ao agronegócio. Quem ameaça seriamente a vida dos bilhões de habitantes da Terra precisa ser julgado e punido.
Como esses crimes seriam avaliados e julgados?
Nossa ideia é introduzir o crime ambiental na Corte Penal de Haia por meio da criação de uma câmara especial para esse tipo de delito, ou instituir uma corte própria para os crimes ambientais. Para isso, é preciso modificar o Estatuto de Roma, que legitima a corte penal. Para caracterizar os grandes crimes ambientais, precisamos primeiro da aprovação de dois terços dos países signatários do estatuto. Assim, conseguiremos julgar as catástrofes ambientais provocadas pelo homem e os atentados contra o planeta da mesma forma que julgamos os crimes contra a humanidade. Eles passam a pertencer à mesma categoria.
Na Corte de Haia, os países renunciam à sua soberania e entregam o acusado para julgamento. Julgar os crimes ambientais dessa forma não mexeria perigosamente com o equilíbrio, muitas vezes frágil, entre as nações?
A soberania está relacionada com valores e qualidade de vida. O que é mais importante: a soberania alimentar ou a soberania dos estados? As Nações Unidas já fizeram um alerta de urgência sobre a questão da fome e da soberania alimentar em muitos países. Por isso, quando a questão é o ambiente, temos de esquecer as fronteiras e pensar no ser humano. Mais do que tudo, é preciso regular as atrocidades contra a natureza do ponto de vista jurídico e humanístico quanto antes.
"A definição de transgressão aos direitos humanos
não se limita mais ao que fizeram as ditaduras – sequestro,
desaparecimento e torturas.
Hoje, os direitos humanos incluem
direitos econômicos,
sociais e ambientais"
Em Haia, a pena máxima é a prisão perpétua. Os acusados de promover a matança de baleias estariam sujeitos às mesmas penas impostas a Radovan Karadzic, o ex-líder sérvio acusado das piores atrocidades na Guerra da Bósnia?
A campanha pela caracterização dos crimes ambientais de modo a julgar os culpados na Corte de Haia está ainda no início. Faz parte de nossos planos adaptar a legislação internacional a esse tipo de delito. Contamos com a ajuda de juristas internacionais para isso.
Quais crimes ambientais deveriam ser julgados por esse tribunal?
O fazendeiro que destrói a floresta para plantar soja transgênica, por exemplo, é um réu em potencial. O mesmo se aplica ao dono da mineradora que utiliza milhões de litros de água por dia, contamina a água dos rios por causa da exploração desmedida de metais como ouro, prata e cobre e deixa a população morrer de sede.
O senhor pode citar o nome de um candidato ao banco dos réus desse tribunal?
Na Argentina, um dos casos mais marcantes é o da empresa Alumbrera. Ela conta com uma permissão de extração de milhões de litros de água por hora em uma zona quase desértica. Uma vez usada, a água é inutilizada. Já foram comprovados vários vazamentos tóxicos e há denúncias de contaminação por chuva ácida.
Se a empresa tem autorização para usar água, a culpa pelo desequilíbrio ambiental é da empresa ou do governo?
Pode ser da empresa, do governo, ou de ambos. Veja a situação de Ruanda ou do Congo, países onde há crimes contra a humanidade em decorrência das atrocidades que acontecem ali. Nesse caso, a culpa é dos governantes. Não é possível dizer agora se eles serão julgados isoladamente ou em conjunto. Há que pesar a posição de cada governo em relação às questões ambientais. Alguns países têm políticas de preservação ambiental. Outros, como os Estados Unidos e a China, nem sequer assinaram o Protocolo de Kioto. Isso faz toda a diferença.
Boa parte dos 20 milhões de habitantes da Amazônia brasileira sobrevive da exploração predatória da floresta. Eles seriam passíveis de julgamento individualmente?
Nesse caso, os culpados não são as pessoas, mas o governo que não dá a elas condições sociais mínimas, como emprego, educação e saneamento básico. Ou então as empresas clandestinas, que as contratam para fazer um trabalho ilegal.
Julgar crimes ambientais em tribunais internacionais, similares ao que julgou os carrascos nazistas, sinaliza uma mudança de mentalidade das sociedades com relação aos direitos humanos?
Sem dúvida. Trata-se de uma evolução. A definição de transgressão aos direitos humanos não se limita mais ao que fizeram as ditaduras – sequestro, desaparecimento e torturas. Hoje, os direitos humanos incluem direitos econômicos, sociais e ambientais. É preciso pensar no assunto em todas as suas dimensões, e não mais de forma cartesiana e fragmentada, como vínhamos fazendo. Na minha opinião, os direitos humanos são violados quando a uma população é constantemente vedado o acesso à saúde, ao trabalho e à educação. Os direitos humanos são violados quando crianças morrem de fome, quando as condições tradicionais de vida dos índios são perturbadas a ponto de ameaçar a existência deles. Quando os primeiros tribunais para julgar crimes contra a humanidade foram estabelecidos, a destruição da natureza não havia chegado ao ponto em que está hoje. Estamos à beira de um colapso ambiental. Estabelecer o equilíbrio entre a natureza e o ser humano é fundamental.
Fala-se muito em aquecimento global, mas ninguém quer deixar o carro em casa. O senhor acha que a sociedade está preparada para entender a relevância dos crimes ambientais e a necessidade de estabelecer leis rígidas contra eles?
Há duas posições principais com relação a isso. Quem sofre as consequências de um crime ambiental, como as vítimas da explosão de Chernobyl, entende a necessidade de levar os responsáveis ao banco dos réus e quer que isso aconteça logo. Já quem vive nas zonas urbanas, longe das barbaridades que ocorrem na Floresta Amazônica ou nas regiões mais pobres da Argentina, tem mais dificuldade para perceber a importância dessa proposta. Para essas pessoas, para quem os alimentos nascem no supermercado, a natureza é só uma coadjuvante.
Como os governantes estão reagindo à sua proposta?
Eles estão dispostos a cooperar? O Brasil, a Espanha e os países nórdicos têm se mostrado dispostos a cooperar, mas não acredito que os Estados Unidos e a China se interessem em criar um tribunal nos moldes que proponho.
O julgamento de crimes ambientais em um tribunal internacional seria uma forma mais eficiente de combater o aquecimento global do que os protocolos e metas de emissão de poluentes?
Sim. Há muitas promessas e boas intenções nos protocolos e nas metas de redução nas emissões de carbono dos países, mas não há sanções para o descumprimento do que foi estabelecido. Uma das únicas formas efetivas de combater o aquecimento global é ter um marco jurídico para ajudar a controlar a poluição.
Como cidadão argentino, qual é sua avaliação do governo da presidente Cristina Kirchner?
Uma democracia não se restringe a votos numa urna, mas sim a direitos iguais para todos. É preciso revisar a democracia argentina. A presidente Kirchner precisa abrir o diálogo com outros setores sociais. Isso não se faz com clientelismo político. Sou um crítico severo do governo argentino.
"Há muitas promessas e
boas intenções nos protocolos
contra o aquecimento global,
mas eles de nada adiantam se não há sanções
para o descumprimento das metas de
redução nas emissões de carbono"
Em um artigo recente, o senhor escreveu que é hora de o presidente americano Barack Obama acordar e pôr em prática as mudanças que prometeu na campanha.
Obama tem governo, mas não tem poder. Parece uma pessoa bem-intencionada, mas sem condições de fazer o que realmente pretende. Não acho que é certo um Nobel da Paz enviar tropas para o Afeganistão ou manter prisões em Guantánamo. Muitas vezes os governantes não fazem o que querem, mas o que podem fazer. Acho que esse é o caso de Obama. Só espero que ele consiga honrar o Prêmio Nobel que ganhou.
O senhor é um sobrevivente da ditadura militar argentina, que o torturou. Ainda há torturadores no continente democratizado?
Lamentavelmente, a tortura ainda ocorre em vários países. Como integrante de um comitê contra a tortura, visito com frequência prisões e institutos que abrigam menores delinquentes. É muito difícil mensurar a tortura, mas focamos num trabalho de educação dos efetivos policiais e das Forças Armadas para evitar essa prática bárbara e cruel. Em toda a América Latina ainda temos muitos problemas no processo de seleção e preparação de policiais e de militares. Temos de lidar com duas barreiras. A primeira é a herança cultural das ditaduras. Em muitas nações, a tortura ainda é valorizada nos meios militares e policiais. A segunda é a violência que está impregnada em todos os setores das sociedades. Vivemos uma exaltação da violência. Vemos e vivenciamos cenas violentas em qualquer lugar. Há um incentivo constante ao comportamento violento. Precisamos de uma cultura de paz e diálogo. É o que estamos tentando introduzir, aos poucos.
Recentemente, o senhor aderiu a uma greve de fome para alertar sobre a pobreza na província de Jujuy, na Argentina. Aos 78 anos, o senhor ainda tem energia para protestos radicais?
Larguei o cargo de professor na faculdade de arquitetura para me dedicar aos direitos humanos. Hoje, quando me perguntam qual é minha profissão, digo que sou um ativista político. Nunca vou deixar de ser. Continuo em busca dos meus ideais. É o mínimo que posso fazer a esta altura da vida.
REPORTAGEM DE GABRIELA CARELLIFONTE: Revista VEJA - Ed. 2140/25 de novembro de 2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário