Com a crise, população de desabrigados aumenta nos EUA.
Por Eduardo Graça, para o Valor, de Los Angeles e Nova YorkJamie Foxx e Robert Downey Jr. em cena de "O Solista", filme que retrata a vida dos sem-teto na América
A cena é tipicamente nova-iorquina. Lee Parker, 63 anos, é o destaque de uma reportagem robusta do caderno principal do "Daily News", tabloide de maior circulação da cidade. Ele é uma das 94 pessoas que dormem no abrigo a ser fechado em março por conta da expansão de uma linha do metrô. De acordo com Patrick Markee, porta-voz da Coalizão dos Desabrigados, a mais ativa associação de defesa dos sem-morada nos EUA, desde outubro Nova York conta com uma população de sem-teto tão grande quanto a registrada durante a Grande Depressão. São pouco mais de 39 mil pessoas - sendo 16.500 menores de idade - passando a maior parte do dia e todas as noites em abrigos públicos espalhados pelos cinco distritos da cidade.
Do outro lado do país, na Califórnia, o cenário é semelhante. De acordo com a prefeitura, pouco mais de 73 mil sem-teto vivem em Los Angeles, sendo 10 mil menores de idade. Ao contrário de Nova York, a maior parte deles vive nas ruas, dormindo em carros e casas abandonadas, nas praias ou embaixo de pontes. Na capital mundial do cinema, o jornalista Steve Lopez, uma das estrelas do "Los Angeles Times", tem dado ao debate em torno da pobreza americana um tom pessoal. Foi a partir de seu encontro com Nathaniel Ayers, ex-estudante da prestigiosa Escola de Música Julliard, que nasceu "O Solista", filme em cartaz nos cinemas brasileiros, com atuações marcantes de Jamie Foxx e Robert Downey Jr., respectivamente nos papéis de Ayers e Lopez.
No cinema, a câmera do britânico Joe Wright, conhecido do público por "Desejo e Reparação", candidato ao Oscar de melhor filme de 2007, conduz o espectador a áreas pouco exploradas por Hollywood, como Skid Row, no centro de Los Angeles, notório reduto de dependentes químicos (a prefeitura diz que cerca de 42% dos sem-teto da cidade são usuários fixos de drogas e 35% sofrem algum tipo de distúrbio psicológico).
Wright logo percebeu que, com "O Solista", seria preciso radicalizar no realismo a ser impresso na tela. Uma de suas primeiras decisões foi a de trabalhar com os moradores de rua de Skid Row. Não há figurantes entre os sem-teto. "Eles não estão interpretando papéis, eles são aquelas pessoas. Um deles, Kevin Cohen, morreu uma semana antes da estreia do filme nos EUA, vítima da violência urbana, uma triste rotina na vida dos sem-teto. Sem ele, que foi um de meus mais constantes consultores, não teria conseguido terminar 'O Solista'. Ele me disse uma coisa tão engraçada quanto séria: na vida somos todos 'freaks'. Até o presidente dos EUA, se você olhar de perto, é um 'freak'", diz.
Ao se debruçar sobre o drama dos alijados da sociedade de consumo americana, Wright deparou-se com um problema que, acredita, "queremos jogar para debaixo do tapete". A miséria americana, diz, talvez mais do que em qualquer outra parte do Hemisfério Ocidental, tende a receber um manto de invisibilidade, já que parece menos provável em uma potência com alto índice de desenvolvimento humano. O tema, de fato, recebeu menos atenção do público do que o esperado. Apesar de contar com dois dos maiores astros do cinema americano, o filme faturou US$ 31,6 milhões, longe de ser um dos campeões de bilheteria do ano.
Em uma de suas mais recentes colunas, Lopez lembra que a população de desabrigados cresce nos EUA por conta da recessão. "Veteranos das guerras no Oriente Médio e no Afeganistão dormem em parques da cidade, a penitenciária serve de manicômio improvisado e a lista de espera nas poucas instituições dedicadas aos sem-teto, como a que ajudou Ayers e é retratada no filme, é imensa", revela o jornalista, ferrenho defensor do aumento de verbas para projetos de financiamento de casas para a população de rua, até como forma de reduzir as despesas do Estado na saúde pública, cuja reforma é a principal bandeira de Obama.
Mas a crise financeira global parece impedir maiores avanços na área. Em Los Angeles, a prefeitura, enfrentando redução de receita de US$ 530 milhões, cortou verbas para o programa de ajuda a sem-teto. "Se o Congresso conseguiu encontrar US$ 80 bilhões no orçamento para salvar gigantes ineptos do setor financeiro como a AIG, será possível que não consegue encontrar US$ 2 bilhões para um programa de incentivo de moradias para os sem-teto? Ou US$ 120 milhões em ajuda emergencial para projetos já existentes, o que, no fim das contas, é exatamente o que a AIG ofereceu de bônus a seus executivos no ano passado?", provoca Lopez. Em Nova York, o município chegou ao ponto de cobrar aluguel para desabrigados que tenham algum tipo de ganho e usem abrigos da prefeitura porque não conseguem pagar os aluguéis na cidade. Há dois meses, o mesmo Lee Parker que ganhou as páginas do "Daily News" na reportagem sobre o abrigo que vai virar metrô dorme em uma cadeira, já que não há camas disponíveis.
De acordo com Patrick Markee, da Coalizão dos Desabrigados, o número de sem-tetos na cidade aumentou em 12% no ano passado. "São dez mil famílias vivendo nos abrigos, um recorde histórico", aponta, em estudo apresentado no mês passado. No último ano fiscal americano, mais de 120 mil pessoas passaram pelo menos uma noite nos abrigos públicos da prefeitura, incluindo 44 mil crianças. "O número de desabrigados em Nova York não apenas cresceu dramaticamente, mas chegou a seu mais alto nível desde o início do século passado", denuncia. Uma das razões teria sido o fim do programa de vouchers do governo federal, espécie de subsídio oferecido por Washington, que pagava aluguéis para famílias sem moradia afim de reduzir o número de pessoas nos abrigos públicos. O programa, parte do chamado Section 8, visto pelos republicanos como exemplo de políticas arcaicas que não estimulavam o indivíduo a deixar de lado as tetas do Estado, foi extinto em 2005 pelo governo Bush.
Na primeira semana do mês, Michael Bloomberg, o homem mais rico de Nova York, de acordo com a revista "Forbes", e defensor do fim do Section 8, foi reeleito para um terceiro mandato na prefeitura da cidade. Curiosamente, uma de suas promessas de campanha há quatro anos, quando voltou a City Hall pela segunda vez, era a redução em dois terços da população de desabrigados. A promessa não saiu do papel. Os resultados da disputa do dia 3 foram surpreendentes para um político com aprovação de até 70% nas pesquisas. Bloomberg teve 50,6% dos votos, contra 46% de seu desconhecido rival democrata, e perdeu feio justamente no Bronx e nas regiões mais pobres do Brooklyn e no Queens, áreas mais afetadas por graves problemas sociais, como a assustadora explosão no numero de desabrigados na cidade que nunca dorme.
FONTE: Valor Econômico - Caderno EU & FIM DE SEMANA - 20/11/2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário