Moacyr Scliar*
Confirmada, a história da técnica de enfermagem que, no Hospital Universitário da Ulbra, aplicou poderosos sedativos em bebês se constituirá num dos episódios mais estranhos da história da medicina gaúcha. E, ao mesmo tempo, encerra algumas lições sobre as quais é preciso meditar.
Na versão inicial, depois desmentida, Vanessa Pedroso disse que injetava morfina e diazepam, este um forte tranquilizante, para induzir nas crianças parada respiratória. A seguir, a própria Vanessa fazia os procedimentos de reanimação. Seu objetivo, portanto, era aparecer na história como a heroína, a salvadora dos bebês. Um plano que obviamente só poderia ter nascido de uma mente enferma, e de fato, no primeiro depoimento, Vanessa admitiu problemas mentais e emocionais, entre eles a frustração por não ser médica.
A pergunta que imediatamente ocorrerá a muitas pessoas é: pode acontecer que uma pessoa perturbada trabalhe numa área em que o equilíbrio é condição fundamental?
Pode. E há um exemplo famoso para confirmá-lo. Trata-se do cirurgião alemão Ferdinand Sauerbruch (1875-1951), um pioneiro da cirurgia torácica que ficou famoso ao introduzir uma câmara especial que facilitou enormemente as intervenções no tórax; mais que isto, vários importantes procedimentos cirúrgicos estão ligados a seu nome. Era um homem de enorme arrogância, uma personalidade complicada. Para começar, aceitou receber do chanceler Adolf Hitler um importante prêmio. Depois, tornou-se o coordenador-geral da área cirúrgica no exército alemão – e esta área incluía perigosos experimentos com prisioneiros de campos de concentração. Por outro lado, teria ajudado Fritz Kolbe, que era um espião dos norte-americanos na Alemanha nazista. Por esta razão, não foi condenado nos julgamentos pós-guerra, mas perdeu seus cargos. Tal era seu prestígio, contudo, que a Alemanha Oriental decidiu apoiá-lo, por razões obviamente políticas. À medida que envelhecia, foi ficando demente; os pacientes que operava, muitas vezes usando procedimentos absurdos, sistematicamente morriam. E ninguém se atrevia a lhe dizer que parasse de operar. Quando, por fim, o fizeram, Sauerbruch não se conformou; com a ajuda da mulher, médica, e de uma empregada, trazia pacientes para casa e operava-os na cozinha. Os resultados a gente pode imaginar. Esta fase alucinada só terminou com a morte de Sauerbruch, aos 75 anos.
Cuidar de pacientes não significa apenas dominar certas habilidades, nem mesmo fazer diagnósticos. Cuidar de pacientes é uma relação humana e exige, do cuidador, um superior grau de discernimento e de sensatez. Profissionais da saúde não estão imunes à doença mental. No caso de Sauerbruch, o julgamento das pessoas que com ele trabalhavam foi prejudicado pela imagem autoritária do médico (o que, diga-se de passagem, já era um sintoma de que as coisas não corriam bem). Conclusão: a avaliação de desempenho na equipe de saúde, sobretudo em hospital, deve incluir os aspectos psicológicos da pessoa. “Médico, cura-te a ti mesmo”, diz um antigo provérbio, que vale para todos os outros profissionais. Para que evitemos problemas como esse do Hospital da Ulbra.
*Escritor. Médico. Colunista da ZH.
FONTE: ZH online - 17/11/2009
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