domingo, 15 de novembro de 2009

Um pouco de areia...

Delfim Netto*

Um pouco de memória e algum salutar ceticismo com relação às “comprovações empíricas” apresentadas até hoje revelam que não há na teoria econômica campo mais minado e sujeito a condicionamento ideológico do que a chamada política cambial. O que se pode dizer com razoável certeza é que não existe um sistema cambial (câmbio fixo, flutuação suja ou livre flutuação) que seja o “melhor” em qualquer situação. As experiências com o “padrão ouro” e a flutuação da taxa de câmbio nos anos 20 do século passado deixaram evidente que a política econômica das economias abertas tem de lidar com um famoso “trilema” (não é possível ter simultaneamente):

1. Liberdade de movimento de capitais.
2. Uma política monetária independente.
3. Uma taxa de câmbio que produza a acomodação do nível de crescimento econômico desejável e a menor taxa de desemprego possível.

Esse fato pode ser surpreendido no debate (na Liga das Nações) entre Ragnar Nurkse e Gotfried Haberler antes mesmo da criação do FMI e do acordo de Bretton Woods. Este adotou um sistema “misto”: taxas de câmbio ajustáveis periodicamente, sob a supervisão daquela instituição. Já nos anos 50 do século passado, os economistas (particularmente Robert Triffin) apontavam para os inconvenientes e as assimetrias criados por tal arranjo, particularmente que “o peso de todo o ajuste recaia sobre o devedor” e só poderia ser liquidado com reservas construídas com a “moeda reserva” (o dólar americano).

A solução proposta por Triffin (e muitos outros) passava pela internacionalização dos ativos das “reservas” de todos os paí-ses e, finalmente, na criação de um Banco Central Mundial. Curiosamente, depois de 60 anos é isso que escondem as atuais discussões no G-20. É para isso que trabalha a burocracia do FMI, na esperança de que será o tal Banco Central Mundial e herdará o poder de controlar a economia de todos os países. Como a política monetária e a taxa de câmbio dependem da política fiscal, a burocracia do Banco Central Mundial, do alto de uma falsa “ciência” (que inspira a política monetária), ditará a política econômica de cada um e de todos os países. No final e ao cabo – como costuma dizer um amigo meu –, um pequeno grupo de burocratas (escolhido sabe Deus como!) que se pretende portador de uma verdadeira “ciência”, usurpará boa parte do poder incumbente eleito pelo sufrágio universal.

É cada vez mais evidente que os países são incapazes de controlar as “ondas” de movimentos especulativos dos capitais sem comprometer gravemente o crescimento econômico, o nível de emprego e impedir sua repercussão sobre a taxa de inflação.

Como todo ativo financeiro, a taxa de câmbio, quando há liberdade de movimento de capitais, ajusta-se instantaneamente às pressões do mercado (seja lá o que isso for), enquanto os preços e os salários demoram a fazê-lo, o que impõe custos reais à economia. É pura mitologia pensar que isso pode ser corrigido simplesmente aumentando o grau de “abertura”. É também mítica a crença de que a taxa de câmbio estabelecida livremente pelo “mercado” é um fenômeno “natural”, e que, portanto, qualquer intervenção governamental só poderia aumentar o desequilíbrio.

De fato, com câmbio flexível e ampla liberdade de movimento de capitais, a política monetária e a taxa de câmbio são resultado de um ajuste simultâneo (que está longe de produzir o bem-estar social) feito por meio de diferenciais das taxas de juro. A experiência brasileira mostra que desequilíbrios cambiais perversos podem durar muitos anos a ponto de modificar a estrutura produtiva (as exportações e as importações) de forma definitiva, sem levar em conta a sofisticação produtiva e a diversificação do setor exportador, fatores indispensáveis para um crescimento econômico permanente e saudável. É por isso que, agora mesmo, enquanto alguns países fazem intervenções para limitar a apreciação de sua taxa de câmbio e reduzir seus efeitos sobre a estrutura produtiva, outros fixam o seu câmbio com relação ao dólar e outros ainda aumentam sua taxa de juros para atrair capitais e tentam limitar sua desvalorização.

Nos anos 70, tal situação já era visível e os efeitos da excessiva mobilidade dos capitais eram tão perniciosos que James Tobin propôs a criação da taxa-Tobin, que deveria ser internacionalmente aceita e administrada pelos países e se aplicaria a todas as operações nominadas em outras moedas.

Não há, portanto, motivo para sugerir que o adequado ativismo governamental defensivo para influir no estabelecimento da taxa de câmbio seja um “pecado capital”: trata-se de puro mito sem suporte teórico ou empírico. No máximo é um fruto ideológico. Tobin tinha razão quando sugeriu, em 1972, “jogar um pouco de areia” no eficientíssimo e bem azeitado mecanismo de mobilidade dos capitais, para que os países reganhassem alguma liberdade de fazer políticas monetárias compatíveis com o crescimento econômico.
*Economista. Professor.Colunista da Carta Capital e Folha de São Paulo.
Fonte: Carta Capital, 18 de novembro de 2009, pg.30.

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