quinta-feira, 19 de novembro de 2009

"As carne das fazendas americanas é imoral"

JONATHAN SAFRAN FOER*

ÉPOCA – No livro, você conta que aquilo que gostava de comer quando criança estava relacionado às histórias de sua avó. Você se arrepende de ter adorado o frango com cenoura que ela fazia?
Jonathan Safran Foer – Eu gostava porque era dela. Era adorável ser o receptor da comida dela. Quando parei de comer frango com cenoura, ela passou a cozinhar outros pratos e continuei adorando comer a comida dela. Não é o conteúdo do prato que importa, mas como ele é preparado, o amor com que a pessoa cozinha para você. Arrepender-me da carne que comi não seria uma emoção útil. Eu não sabia. Eu era uma pessoa diferente. O que importa, para mim, não é a última refeição que fiz, e sim a próxima que farei.

ÉPOCA – Após idas e vindas, o nascimento de seu primeiro filho fez você optar definitivamente pelo vegetarianismo. Você seria um mau pai se continuasse onívoro?
Foer – Não. Não vejo essa questão como uma divisão entre bom e mau. Esses valores não são absolutos. Não acho que a decisão deva ser entre vegetariano e onívoro. Há inúmeras opções entre as duas. Na verdade, somos apresentados a essas opções várias vezes todo dia, e todas essas vezes fazemos escolhas – e essas escolhas representam nossos valores. Meu livro não é contra a carne. É contra um determinado tipo de carne: a carne produzida em fazendas industriais. Essa é uma distinção muito importante, porque se trata de um argumento prático, não filosófico. O fato é que todo mundo é hipócrita. Eu sou hipócrita. O tempo todo faço coisas que preferiria não fazer.

ÉPOCA – Então, qual foi o propósito de virar vegetariano desta vez?
Foer – Quanto mais eu aprendia sobre essa indústria, mais impossível ficava me imaginar sustentando-a. Quanto mais eu aprendia sobre como os animais são tratados, com que tipo de drogas eles são alimentados, como são geneticamente modificados, menos eu desejava trazê-los para dentro de meu corpo. E, definitivamente, eu não queria isso no corpo de meus filhos. E há as histórias que os pais contam para as crianças, as explicações que dão para suas escolhas. Eu queria falar com meus filhos sobre os animais, sobre cuidar do meio ambiente, sobre evitar o desperdício. O Brasil é um lugar muito interessante para ter esse tipo de conversa. Afinal, as fazendas de gado brasileiras não são como as americanas. Os animais aí ainda pastam, ainda são criados de maneiras que a maioria das pessoas aceitaria.

ÉPOCA – Isso quer dizer que, se você vivesse no Brasil, comeria carne?
Foer – Creio que não. Mas acredito que não teria escrito esse livro.

ÉPOCA – O ser humano sempre comeu carne. O hábito está em nossa natureza, em nossa cultura. Por que parar agora?
Foer – A espécie humana sempre tratou as mulheres como cidadãos de segunda classe. A espécie humana sempre cultivou a escravidão de outros humanos. O fato de os humanos terem feito isso desde os primórdios não é uma boa justificativa para continuar fazendo. O ser humano, em seu melhor estado, transcende o que é natural. Estaríamos tendo esta conversa por telefone a milhares de quilômetros de distância se estivéssemos realmente interessados no que é natural? O trabalho que eu e você fazemos se destina a gerar conversas, tornar as pessoas mais informadas e, em última análise, melhorar o mundo. E isso envolve todo tipo de coisa antinatural.
"Mudar o que comemos e
deixar sabores se esvair da memória
é uma forma de esquecimento
que vale a pena cultivar"
ÉPOCA – Ao visitar essas fazendas e assistir à matança cruel dos animais, você procurava motivos para não comer carne?
Foer – Sempre baseei minhas decisões no instinto. E acho que isso não basta. Não basta para decisões que fazemos tantas vezes ao dia. Não basta para algo que tem tantas consequências ambientais e sobre o mundo animal. Se mudei de ideia tantas vezes sobre comer carne, é porque não estava informado. Eu não queria mais esse vaivém. Eu precisava entender em que acreditava.

ÉPOCA – Você cita outros autores, como Michael Pollan, que já havia descrito como as fazendas industriais funcionam. Foi preciso ver para se convencer?
Foer – É diferente quando você é o fotógrafo. Uma coisa é ler um livro ou ver um vídeo, ser um observador. Mas não somos observadores. Somos cúmplices. Os fazendeiros produzem o que nós consumimos. Boa parte de meus leitores não são fazendeiros, mas são fazendeiros por procuração. Ver essas coisas de perto foi um jeito de me lembrar disso. E não é nada fácil entrar numa fazenda. Eles mantêm a coisa como segredo. Algumas vezes tive de fazer minhas visitas na calada da noite.

ÉPOCA – Existe um jeito de matar animais que você não considere cruel? Suas visitas a criadores que usam métodos “humanitários” de abate não o aliviaram?
Foer – Sim, existem maneiras de matar animais que não são cruéis. Mas não há como criar um sistema de abate que não seja cruel. Conheci fazendeiros que tratam os animais com mais cuidado do que eu trato meu cachorro! Eram muito boa gente e faziam tudo o que estava a seu alcance. Alimentavam os animais com a comida certa, davam a eles todo o espaço de que precisavam, os animais não eram geneticamente modificados. Seria ótimo se o jeito deles fosse a regra, mas eles sempre serão a exceção.

ÉPOCA – Havia um que até pedia desculpas aos animais, não?
Foer – Sim, um criador de frangos. Um cara maravilhoso. O lugar é ótimo. Se for para comer peru, recomendo que seja o de lá.

ÉPOCA – E a produção é grande? Quantos animais ele mata por dia depois de se desculpar?
Foer – Muito poucos. Esse é o problema. Para criar animais humanamente, é preciso que as pessoas comam muito menos carne.

ÉPOCA – Se eu criasse galinhas em meu quintal e as matasse com minhas próprias mãos, simplesmente torcendo-lhes o pescoço, estaria sendo uma consumidora humana?
Foer – Seria bom se as pessoas tivessem uma ligação mais direta com sua comida. Mas criar galinhas no quintal é uma espécie de hobby. O mundo não vai se alimentar de galinhas produzidas no quintal.

*QUEM É
Escritor nova-iorquino. Tem 32 anos e é casado com a escritora Nicole Krauss, com quem tem dois filhos
O QUE PUBLICOU
Seu primeiro romance, Tudo se ilumina (2003), narra a viagem de um personagem homônimo que tenta encontrar a mulher que salvou seu avô judeu do nazismo. Em 2007, lançou Extremamente alto e incrivelmente perto, história de um menino cujo pai morreu no atentado às torres gêmeas
O QUE FAZ HOJE
Acaba de lançar Eating animals (ainda sem tradução), um livro de não ficção sobre a ética da alimentação
FONTE: Revista ÉPOCA nº600 - 16/11/2009 - REPORTAGEM de FRANCINE LIMA

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