Joaquim Falcão*
Para entendermos um pouco mais o que ocorre no mundo global hoje, com reflexos no Brasil, é útil decifrar a pauta da líder global: CNN. Marcos Lins, bom brasileiro, dizia que sociologia se faz 50% a pé, e 50% sentado. Ou seja, metade viajando e registrando o comportamento das pessoas, e metade lendo, explicando esses comportamentos. Hoje, não precisamos de tanto. Basta espiar a TV ou a internet em tempo real.
O que a CNN identifica, escolhe, edita e coloca no ar todos os dias, como se fosse a realidade global mais importante? Que notícias todos têm que saber? Na verdade, cada segundo, cada minuto que a CNN coloca no ar, é uma escolha. Seja do dono da TV, de seu editor ou repórter. É escolha entre alternativas incompatíveis. A pauta não é o que vai ao ar, são os critérios da escolha. Isso é o que importa. A CNN se revela nos critérios. Quando diz o que é importante, descarta o desimportante. Revela o seu sim e o seu não — sua visão do mundo global e assim nos influencia. De forma sutil e indireta, é verdade. Mas duas ou três horas por dia de CNN bastam. O padrão é mais ou menos o seguinte.
Primeiro, não se distingue mais um Rolex de um país ou de um creme Clear Essence para as pernas de uma ex-miss universo. Estão todos, rápidos e espremidos, coloridos, no mesmo intervalo. Misturam-se. Berlim é o lugar para se estar. Rolex é o prêmio para qualquer conquista. A magia da África é observar animais selvagens em Quênia. Aperte o botão e invista na Turquia. Venha para Maldivas, o lado solar da vida. Mas, se quiser sair do ordinário e entrar no extraordinário, vá para o Banco PHB. Antes passe na Polônia para ouvir Chopin nos anos de sua morte. E Romênia virou RuMania, um país ou um jogo gráfico de sentidos. Tanto faz. O principal cliente dos intervalos da CNN são os países — alguns inclusive das listas de corrupção ou guerra. Bancos americanos e suíços sumiram. Só bancos africanos.
Intervalos transformaram-se em incruentos campos de batalha. Disputas entre nações, identidades culturais e naturais. Tudo mercadoria: telefones, bancos, cosméticos, relógios e campos de golfe. A CNN é o mercado da esquina do mundo. Muitas vezes, espaço para lavanderia da reputação financeira perdida do cliente. Aí, nações unidas são países concorrentes.
Ultrapassados os intervalos, notícias e programas revelam o prioritário: a guerra, ameaça ou comemoração. A pobreza ou a doença aparece, mas sempre na África, não em Paris ou Nova York. Thomas Friedman conecta os dramas globais — devastação amazônica e desperdício industrial. Na CNN, pouco se conecta. Pobreza é curiosa e asséptica, tão editada quanto um musical de Hollywood. Pobreza grassa no mundo e chega como longínqua curiosidade para o telespectador. Barrada na alfândega da edição. Epidemia que não chega. E, no entanto, tem chegado: ou via Wall Street ou gripe aviária. Mas a CNN continua a vitrine do inalcançável. No mesmo dia em que os países negam no Summit da ONU recursos para acabar com a fome, aumentam-se sem alarde despesas de guerra.
Explosões e homens-bomba no Paquistão. Talibãs e Al-Qaedas. Militares mantidos no Afeganistão, onde a produção de heroína triplica. Ameaças atômicas da Coreia do Norte ou do Irã. A eterna disputa entre árabes, palestinos e israelitas. Guerra que não acaba porque não começa. Soldados americanos viram celebridades, vivos ou mortos. As batalhas do Iraque mínguam, mas não terminam. Nos últimos dias, esaa programação teve novidade compensatória.
Na falta de claras vitórias de hoje, comemoram-se mais e mais as vitórias de ontem. Obama, Angela, Nicolas, Medvedev, Brown, Hillary parecem turistas exaustos em excursão permanente, feita de discursos, sorrisos, apertos de mãos e coroas de flores. Comemoram-se diariamente. A derrota de um e a vitória de outro, alternadamente. Cinco dias de comemorações da queda do Muro de Berlim. Demolidores e construtores lado a lado, russos e alemães. Comemoraram até o final da primeira grande guerra.
O interesse pela paz é que determina essa pauta, que ainda depende muito dos Estados Unidos. Mas essa na CNN é pauta de exportação. Pauta sem sangue, petróleo, dólar, disputa de mercados. O americano médio pouco sabe o que ocorre no mundo. Só que o Mr. Kevin Howard, da Enron, foi solto. O resultado não pode ser outro. Notícias, programas, intervalos desconectados produzem perplexidade e plantam ingratidões. Mostra-se, mas não se explica. O que se vê não se entende. Pauta de fatos que se sobrepõem, mas não convivem — irreais pelo inumano que transmitem.
*Professor de direito da FGV do Rio
FONTE: Correio Braziliense online - 19/11/2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário