João Batista Cesário*
Em 20 de novembro — data da morte de Zumbi dos Palmares — celebramos o Dia Nacional da Consciência Negra. Marcado por manifestações culturais e religiosas, esse dia é oportunidade para séria reflexão.
Desde o início, a história do Brasil tem sido escrita com o sacrifício de vidas humanas. Primeiramente dos povos indígenas, os “negros da terra”, dizimados pelo projeto colonizador. Depois, dos negros da África, arrancados de suas terras e culturas e trazidos como gado para sustentar a colonização. Foram mais de três séculos de escravidão, violência, sevícias e mortes para construir a nação brasileira.
No final do século XIX, diante das mudanças impostas pelo modo de produção capitalista e da necessidade de projetar o país ao nível das nações civilizadas, forjou-se um arremedo de liberdade na Abolição da Escravatura. Liberdade sem direitos não é liberdade; é nova forma de servidão.
E Rui Barbosa, a “Águia de Haia”, errou gravemente ao determinar a destruição dos registros históricos relativos ao passado escravista do Brasil. A queima de arquivos, no entanto, não anulou a história de milhões de vidas consumidas no sistema escravagista mais longo das Américas, que reservou ao Brasil o desonroso posto de último país a promover “oficialmente” a abolição no Continente.
Por isso, 13 de maio é data da falsa abolição, a daqueles que decidiram de forma “politicamente correta” o encerramento da escravidão, ciosos de seus interesses econômicos. 20 de novembro é a data dos que lutaram pela verdadeira abolição, como a experiência de Palmares no século XVII, dos outros numerosos quilombos e incontáveis experiências libertárias país afora.
Zumbi, a ser consumido pelo engenho da economia açucareira da época, preferiu viver livre e morrer lutando no quilombo da liberdade. Daí que 20 de Novembro é memória de resistência e convite à reflexão.
Graças ao perverso mecanismo do racismo cordial, a grande parcela afrobrasileira da população tem sido historicamente marginalizada. O racismo cordial se manifesta ao nível das relações interpessoais quase de brincadeira, em piadas e gracejos de cunho racial, reveladores, no entanto, de sentimentos inconfessados. E tudo parece natural, em nome da democracia racial que, supostamente, caracteriza o Brasil.
De fato, o racismo brasileiro nada tem de cordial; é bem concreto e deixa marcas terríveis na vida das vítimas. Senão vejamos. Estudo do Ipea intitulado Retrato das Desigualdades de gênero e raça, aponta que no Brasil “os negros são grande maioria entre os mais pobres, estão nas posições mais precárias do mercado de trabalho e possuem os menores índices de educação formal”. 69% dos domicílios que recebem Bolsa Família, 60% dos que recebem Benefício de Prestação Continuada e 68% dos que participam do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil são chefiados por negros, evidência de que estão entre os mais pobres do país. Negros(as) são majoritariamente SUS-dependentes; entram mais cedo no mercado de trabalho, trabalham mais tempo durante a vida, recebem os menores salários e apresentam os maiores índices de desemprego. O trabalho doméstico remunerado é majoritariamente exercido por mulheres negras. Domicílios chefiados por negros apresentam piores condições quanto a qualidade da habitação e saneamento básico.
Por isso, o Dia Nacional da Consciência Negra é denúncia de uma realidade que urge ser transformada. A sociedade norte-americana que elegeu Barack Obama presidente, a seu tempo e a seu modo, está lidando com o conflito racial que sempre a dividiu. Enquanto isso, no Brasil do racismo cordial, ações afirmativas e compensatórias são questionadas, leis que inibem a discriminação e o preconceito são sutilmente ignoradas e descumpridas.
Até quando o Brasil negará cidadania plena à parcela afrodescendente de sua população? Queimar arquivos históricos ou ignorar pesquisas como essa do Ipea não mudará a verdade dos fatos.
*João Batista Cesário é coordenador da Pastoral Universitária da PUC-Campinas.
Correio Popular, 20/11/2009
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