BARBARA EHRENREICH
Escritora americana fala que, em vez de auxiliar,
a corrente da autoajuda pode
deixar as pessoas ainda
mais culpadas e infelizes
Na pele Barbara Ehrenreich conheceu
o positivismo quando teve câncer
A jornalista e escritora americana Barbara Ehrenreich odeia o chamado pensamento positivo. A implicância começou quando foi diagnosticada com câncer de mama, oito anos atrás, e se viu bombardeada por pessoas, livros e sites afirmando que teria que encarar a doença com otimismo, pois poderia aumentar as chances de cura. O episódio resultou no livro "O Lado Ruim das Coisas: Como a Promoção Incansável do Pensamento Positivo Prejudicou a América" (tradução livre do original Bright- Sided: How the Relentless Promotion of Positive Thinking has Undermined America), que acaba de ser lançado nos Estados Unidos. A ex-colunista do "The New York Times" e da revista "Time" ampliou o campo de análise e constatou que o excesso de positivismo atrapalha a economia, a política e a sociedade como um todo, porque faz com que as pessoas fiquem mais individualistas, egoístas e, em última instância, infelizes. Aos 68 anos, divorciada, uma filha e dois netos, a premiada autora de 20 livros, que também assina grandes reportagens para a revista "Harper's", afirma: "O melhor a fazer quando se recebe um diagnóstico de doença grave ou se perde o emprego, por exemplo, é encarar a realidade, descruzar os braços e agir rápido. Aí sim o resultado poderá ser muito positivo." Na entrevista a seguir, Barbara, que vive em Alexandria, Virgínia (subúrbio de Washington), nada contra a corrente da autoajuda.
ISTOÉ - Por que a sra. odeia o pensamento positivo?
Barbara Ehrenreich - A primeira vez que tive contato com o pensamento positivo como uma espécie de ideologia organizada foi quando eu estava tratando de um câncer de mama, oito anos atrás. Estava em busca de informação e apoio, então entrei em todos os sites na internet, comprei livros, mas não encontrei o apoio que eu queria. Ao invés disso, recebi a instrução de que eu deveria ser muito positiva a respeito de minha doença. Que, na verdade, eu deveria tomála como uma coisa boa, que iria, no final, me tornar mais sensível, mais espiritual. E que, se eu não fosse positiva, eu morreria - embora não dissessem isso diretamente, essa era a mensagem. Aquilo me deixou furiosa. Era a pior coisa que já tinha acontecido comigo e me falavam para pensar que era uma coisa maravilhosa.
ISTOÉ - Como a sra. reagiu e que tipo de apoio esperava?
Barbara - Por sorte, não caí nessa. Porque, se você cai, tem que lutar não somente para aguentar os tratamentos terríveis, mas também fazer um esforço enorme para pensar positivamente. Abaixo a ditadura do pensamento positivo. É como ter uma segunda doença. Queria, sim, ter participado de um grupo em que as mulheres assumissem que não gostavam do que estava acontecendo, mas que tivessem vontade de encontrar formas de mudar as coisas. No passado, por exemplo, os médicos costumavam fazer operações horríveis, como mastectomias radicais, que prejudicavam os movimentos do braço. Feministas e ativistas da saúde protestaram e mudaram isso.
"O Brasil tem algo de muito especial,
que não tem a ver com otimismo, mas com alegria.
Nos EUA, primeiro as pessoas
teriam que ficar bêbadas para agir assim"
ISTOÉ - Em que outras circunstâncias o pensamento positivo pode ser ruim?
Barbara - Vimos isso claramente com a crise financeira. Estamos acostumados a ouvir que, se pensarmos positivamente, as coisas boas virão. Muita gente pobre ouve isso nas igrejas evangélicas: Deus quer que você seja rico, Deus quer que você tenha uma casa maior. E aí, se alguém lhe oferece uma hipoteca que pareça milagrosa, que você não tenha que provar renda ou pagar um valor de entrada, isso é visto como uma bênção. Esse tipo de pensamento já arruinou muitas vidas.
Nos níveis mais altos do mundo empresarial, também havia essa ideia de que nada poderia dar errado. Se algum funcionário levantasse alguma dúvida, seria mandado embora, porque não queriam trabalhar com pessoas negativas. Em 2006, no agora defunto Lehman Brothers (banco de investimentos americano que faliu no ano passado), o chefe da divisão de imóveis disse ao CEO que estava muito preocupado com a possibilidade de quebra. E esse cara foi demitido. As pessoas não podem continuar se autoenganando continuamente sem correr sérios riscos.
ISTOÉ - Como isso se relaciona com o Brasil, onde as pessoas são consideradas, em pesquisas internacionais, otimistas e felizes?
Barbara - O Brasil tem algo de muito especial a seu favor, que não tem a ver com otimismo ou felicidade. Tem a ver com alegria. A cultura brasileira preservou instituições e costumes que permitem que as pessoas expressem a alegria coletiva. Estive no Rio de Janeiro há alguns anos, muito brevemente, e estava em Copacabana quando uma escola de samba passou. Naquele momento, todo mundo na praia, todo tipo de gente, de todas as idades, começou a dançar, as pessoas se divertiam muito, sem nenhum tipo de constrangimento. Aquilo foi muito encantador e estimulante para mim. Nos Estados Unidos, primeiro as pessoas teriam que ficar bêbadas para agir assim. A gente não tem uma quantidade suficiente de ocasiões para isso. É uma coisa muito especial que o Brasil e outras culturas têm a oferecer para o mundo: sim, nós podemos nos divertir muito.
ISTOÉ - O pensamento positivo tem alguma influência nessa forma de ver as coisas?
Barbara - A ideologia do pensamento positivo é terrivelmente individualista. É só você que tem que mudar, o mundo não. Os livros de autoajuda nunca perguntam como seus desejos podem entrar em conflito com os do outro. Outra questão é que, no pensamento positivo, ver o mundo de forma ampla, pensar no que ele está fazendo com você, é visto como uma tentativa de encontrar uma desculpa para seus problemas. Se você pensa que seus problemas se devem à discriminação racial ou ao fato de você ter nascido pobre, isso não passa de uma desculpa, porque você tem tudo para ser bemsucedido e superar qualquer coisa.
ISTOÉ - Como isso afeta a cabeça das pessoas?
Barbara - Dá muito trabalho ser positivo o tempo todo. Se você lê esses livros de autoajuda, aprende que tem que acordar, recitar afirmações para si mesmo, colocar um quadro na parede e pregar nele figuras do carro e da casa que quer... É muita energia mental. E as pessoas que praticam isso acabam se afundando ainda mais na própria culpa. Se você contrata um coach para ajudá-lo a conquistar uma atitude positiva que pensa ser necessária para ter sucesso no mundo e isso não acontece depois de algumas semanas, a culpa recairá sobre você. O coach dirá que não está se esforçando o suficiente, que tem algo dentro de você bloqueando o caminho.
ISTOÉ - Através da obrigatoriedade do otimismo se chegaria à culpa e à infelicidade?
Barbara - Sim. E a parte mais cruel é você culpar as próprias vítimas, que são pegas em situações muito difíceis de suas vidas - seja enfrentando um câncer, seja após uma demissão. Fiz uma pesquisa com executivos demitidos. Nos Estados Unidos, as pessoas que perdem seus trabalhos podem se tornar pobres muito rapidamente, porque ficam sem plano de saúde e sem crédito. Quando eu ia aos encontros feitos para pessoas demitidas, via a dificuldade delas em se reprogramar para transmitir e enxergar internamente toda essa alegria.
"Essa ideologia é terrivelmente individualista.
Os livros de autoajuda nunca
perguntam como
seus desejos podem entrar
em conflito com os do outro"
ISTOÉ - Por que os livros de autoajuda são tão populares?
Barbara - Vou dar um exemplo. Um estudo recente mostrou que desde 1972 as mulheres estão cada vez mais tristes nos Estados Unidos e em outros países industrializados. Você lê isso e pensa: talvez eu não seja tão feliz como deveria ser. E, então, adivinha! Imediatamente após a publicação do estudo, lançam um livro (que comprei) chamado "Encontre o Melhor Momento de Sua Vida Agora: o que as Mulheres Mais Felizes e Bem-Sucedidas Fazem de Diferente" (tradução livre). É um livro típico de autoajuda, com testes de personalidade e anúncios de outros produtos que você pode comprar. Ou seja, o problema é criado e depois se oferece uma solução.
ISTOÉ - Como escapar?
Barbara - Enfrentando a realidade. É claro que seria ridículo achar sempre que tudo vai dar errado, ficar todo o tempo considerando possíveis infortúnios, pensando sobre todos os seus defeitos e coisas assim. Mas por que não tentar olhar para o mundo, tanto quanto possível, como ele é? E ver quais são as oportunidades e os perigos, e aí tentar descobrir o que fazer a respeito deles, seja o aquecimento global, seja o desemprego?
ISTOÉ - Não existem momentos em que o pensamento positivo pode ajudar, como na superação de uma depressão?
Barbara - A depressão é uma doença séria, que requer algum tipo de intervenção, como terapia ou medicação. Você não pode simplesmente passar panos quentes dizendo: pense positivamente. Não funciona. Um fato curioso é que nos Estados Unidos, berço do pensamento positivo, consumimos dois terços do mercado global de antidepressivos. Não sei bem como usar as pesquisas internacionais sobre felicidade, mas os Estados Unidos não se saem bem nelas. Há algo de errado nisso.
ISTOÉ - As pessoas estão menos tolerantes com a infelicidade?
Barbara - Um dos grandes corolários disso tudo é que ninguém quer estar em torno de pessoas negativas, reclamonas, choronas ou vítimas. Elas se tornaram o equivalente moderno dos pecadores.
ISTOÉ - De onde surgiu a ideologia do pensamento positivo?
Barbara - É uma coisa muito americana, que vem do princípio para o meio do século XIX. Tenho uma certa simpatia pelas pessoas que começaram isso porque eram rebeldes contra o protestantismo calvinista da época. Elas estavam dizendo: não somos todos pecadores miseráveis, não estamos todos fadados à punição eterna, este é um país cheio de oportunidades, vamos pensar de forma diferente. Levando em consideração a situação com a qual estavam lidando, não era uma proposta ruim. Mas, no século XX, é como se o pensamento positivo tivesse se tornado uma nova forma de calvinismo, uma nova forma de culpar a si mesmo. Em vez de investigar sua alma constantemente em busca de pecados, você revista sua mente em busca de pensamentos negativos, para expulsá-los.
ISTOÉ - Como isso evoluiu?
Barbara - O pensamento positivo decolou nos anos 80, com as grandes demissões no mundo corporativo. As empresas começaram a promover esses eventos sobre motivação porque, primeiro, não queriam pessoas reclamando sobre a instabilidade de seus empregos, e, segundo, queriam enfiar mais trabalho nas pessoas que sobreviviam às demissões. Foi nessa época que isso se tornou um grande negócio.
Reportagem de MAÍRA MAGRO, para ISTO É, nº2088 - 18 NOV/2009.
http://www.terra.com.br/istoe/edicoes/2088/artigo156133-2.htm
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