Em entrevista à coluna "Direto da Fonte", a bióloga Lygia Pereira da Veiga fala sobre os avanços que levaram ao Nobel de Medicina e sobre a capacidade do estado de São Paulo atrair competências por meio do apoio da FAPESP à pesquisa acadêmica.
Lygia Pereira da Veiga nunca trabalhou com os três novos ganhadores do Nobel de Medicina que estudaram a enzima telomerase - Elizabeth Blackburn, Carlo Greider e Jack Szostak. Mas passa perto deles. Mergulhada nos mistérios da Genética Humana, pertence ao time que criou a primeira linhagem de células-tronco embrionárias humanas no Brasil. Mas antes disso, teve que lutar para que a Lei, permitindo estudos com este tipo de célula, fosse aprovada no Congresso. Portanto, ninguém melhor para explicar o fio condutor dos três cientistas, o telômero - uma ínfima região da ponta de um cromossomo, que ajuda a entender por que as pessoas envelhecem.
Bióloga há 20 anos, uma das grandes descobertas de Lygia foi que, no Brasil, ser cientista exige coragem. "Aqui você gasta uma energia danada para fazer rodar uma roda emperrada", resume a professora carioca associada da USP.
E por que, então, foi parar nisso? "Olha, é um pouco aquela história do professor certo na hora certa, e do professor errado na hora errada." Sua família era toda casada com a Literatura. José Olympio Pereira da Veiga, seu avô, fundou a editora José Olympio. Dois de seus irmãos, a Sextante. E ela própria chegou a ganhor prêmio em concurso literário. Acabou cruzando, no entanto, com professores algo "ripongas" ou antipáticos das humanas e se deu bem com a turma do científico. Resultado: tem na parede, hoje, um doutorado de Biologia da Mount Sinai Graduate School, da Universidade de Nova York.
Qual a importância desse novo Nobel de Medicina?
A ciência descobriu, nos anos 80, um mecanismo biológico que é fundamental, na ponta dos cromossomos. Já se imaginava que existisse alguma coisa para proteger essa ponta - e o que os três premiados de agora descobriram foi a estrutura dessa ponta, que a gente chama de telômero. E ele é do mesmo jeito desde a levedura, organismo com uma só célula, até o ser humano.
Mas não descobriram como protegê-lo.
O que eles detectaram foi como esse telômero protege os cromossomos. Junto com ele identificaram uma enzima, a telomerase, responsável por manter essa ponta intacta quando a célula se divide.
Essa ponta é responsável pelo envelhecimento?
À medida que nossas células vão se dividindo, essas pontas vão diminuindo um pouco, a cada divisão, até chegarem a um tamanho crítico em que a célula para de se dividir. E isso está relacionado com o envelhecimento. Quando descobriram a estrutura dos telômeros e essa enzima, imaginaram: "Se eu puder aumentar a quantidade dessa telomerase no organismo, quem sabe eu consigo fazer minhas células se dividirem por mais tempo, e eu demore mais pra envelhecer."
Seria o caminho para uma vida mais longa?
Em tese. Mas depois a comunidade científica descobriu que uma célula parar de se dividir é muito importante, porque senão ela pode virar um tumor. Ou seja: se eu aumentar a densidade dessa telomerase para a célula não parar de se dividir, em vez de alcançar a vida eterna eu posso gerar um câncer.
O princípio do câncer é isso, uma célula biruta que não para de se dividir?
É isso. E aí o que perceberam? Que você precisa ter várias alterações nos genes da célula para que ela fique biruta e perca esse controle, dividindo-se quando não deve e formando o tumor. Na maioria dos casos de câncer, uma dessas alterações genéticas é o aumento dessa telomerase.
Mas não se sabe ainda por que essa célula fica biruta.
Na verdade, não existe uma "doença" chamada câncer, cada um é um pouquinho diferente do outro e a gente nunca vai achar uma cura universal para ele. O que os pesquisadores tentam achar são as assinaturas, as características comuns de certos tipos de câncer. E a tal de telomerase pode ser uma delas. A gente sabe que até 90% dos tumores têm uma quantidade aumentada dessa enzima.
E por trás dessas buscas se investiga, também, o prolongamento da juventude, os caminhos são parecidos, não?
Sim, são. Assim que a telomerase foi descoberta, criaram uma empresa nos EUA, a Geron, voltada para o rejuvenescimento. Mas quando o aumento da telomerase foi associado ao câncer, viu-se que aquilo era uma brincadeira perigosa. Desistiram.
E a pesquisa de vocês sobre a linhagem das células-tronco embrionárias humanas, também é uma forma de prolongar a vida, não?
Sem duvida. Mas aqui se trata de terapia celular, é como montar peças para serem substituídas. Não vou impedir meu fígado de envelhecer, mas tento produzir células de fígado novas e saudáveis para mantê-lo em bom estado. No mundo, isso existe desde 1998. No Brasil, a legislação autorizou em 2005 e conseguimos a primeira linhagem em 2008.
E já houve casos práticos, como salvar vidas?
Só de camundongo. Nele, essas células permitem tratar diabetes, Doença de Parkinson, lesão de medula. Mas adaptar isso a um sistema maior, como o humano, ainda depende de muita pesquisa.
Você é de uma família voltada para o universo literário, seu avô, seu pai... De onde veio essa vocação para cientista?
Não sei direito. Fazer pesquisa no Brasil não é fácil. Você gasta uma energia danada pra fazer rodar uma roda emperrada.
As dificuldades maiores são financeiras, ou políticas?
Primeiro, é difícil importar os reagentes. São todos feitos nos Estados Unidos e demoram dois meses pra chegar. Outra coisa é que nossa comunidade científica é relativamente pequena. Então aquela interação e troca que você tem nos EUA é bem menor aqui. A internet ajuda, mas contato pessoal é fundamental.
O cobertor é curto, além das verbas federais os Estados e municípios não podiam também ajudar?
Há uma diferença enorme entre São Paulo e o resto do País. Sou carioca, e brinco dizendo que troquei Ipanema pela Fapesp. Em São Paulo, se você é competente e tem uma ideia que faz sentido, ela banca sua pesquisa. E assim o Estado atraiu competências de todo o Brasil - como os EUA atraíram do mundo inteiro. Mas para os que dependem de verbas da União é complicado.
E os recursos privados?
Eles são a grande diferença entre Brasil e EUA. Lá tem empresa investindo em pesquisa, instituições sem fins lucrativos ajudando a ciência. Aqui isso não existe.
É porque precisaria ter depois uma demanda e o nosso mercado é pequeno?
Eu acho mais que é mais cultural. Temos exemplos de investimento em pesquisa, como o Alellix, que foi financiado pela Votorantim Venture Capital. A empresa começou com ajuda da Fapesp para fazer o genoma da laranja e venderam ela por US$ 300 milhões no ano passado. Mas por aqui isso é exceção.
Reportagem de SONIA RACY, para o ESTADÃO ONLINE
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