Com aparelhos eletrônicos como câmeras e celulares, os cientistas Gordon Bell e Jim Gemmell registraram exaustivamente dez anos de vida e armazenaram o material no disco rígido de um computador. No livro Total Recall (Memória Total), eles refletem sobre os desdobramentos dessa experiência
Montagem de Atômica Stúdio sobre foto de Mabel Feres
Na montagem, Bell (à esq.) e Gemmell manipulam imagens
expostas num cenário virtual.
Os pesquisadores acreditam que, em dez anos, as pessoas c
arregarão sua vida inteira num HD:
"Entraremos, então, na era do controle total sobre nossa memória"
Como tem feito nos sete últimos anos, VEJA traz nesta edição um resumo daquilo que a indústria de eletrônicos apresentou de mais inovador em 2009. São páginas dedicadas a celulares e televisores, câmeras fotográficas e filmadoras, computadores e equipamentos de monitoramento da saúde – às ferramentas, enfim, de nossa vida digital. Ano após ano, esses aparelhos evoluem. Tornam-se mais potentes, ganham funções, aprendem a conversar uns com os outros. Em 2009, o avanço na conectividade se ampliou: novas câmeras fotográficas e televisores com ligação direta à internet, por exemplo, aportaram no mercado. Mas não são apenas os aparelhos que se desenvolvem. Surgem também maneiras novas de usá-los. Como a proposta pelos cientistas americanos Gordon Bell, de 75 anos, e Jim Gemmell, de 44, responsáveis pelo projeto MyLifeBits, da Microsoft Research, e autores do livro Total Recall (Memória Total), lançado em setembro nos Estados Unidos. Ao longo da última década, os dois se empenharam em transformar a vida de Bell num vasto arquivo digital. Para isso, lançaram mão de alguns equipamentos e softwares experimentais – tais como a câmera SenseCam. Ela tem o tamanho de um maço de cigarros e é capaz de tirar até 200 fotos automaticamente por hora. Foi idealizada para disparar sempre que ocorre uma mudança no ambiente, tal como a entrada de uma pessoa ou uma variação na luz. A maior parte do trabalho, no entanto, foi feita com os recursos eletrônicos hoje acessíveis a qualquer pessoa. No processo, eles ganharam uma nova perspectiva sobre os produtos que são tema desta reportagem. "Usados de maneira sistemática, para registrar todos os nossos passos no cotidiano, câmeras, celulares e computadores podem ter um impacto ainda mais revolucionário do que já têm", diz Bell. "Eles podem ampliar infinitamente a nossa memória e, com isso, mudar a maneira como trabalhamos, aprendemos, cuidamos do corpo ou expressamos nossas emoções." Dos Estados Unidos, ambos falaram com a repórter Lia Luz.
Participar de um projeto como o MyLifeBits mudou a vida dos senhores?
Bell – Eu me tornei portátil. Estou livre de pilhas e pilhas de papéis. Toda a minha vida está arquivada num disco rígido. Ela ocupa 260 gigabytes.Posso, por exemplo, trabalhar em qualquer lugar do mundo, contanto que esteja com meu computador por perto. Ter tudo digitalizado também me deixa bastante seguro. Em certo sentido, tenho uma sensação de imortalidade. Aliás, no futuro, nossas memórias digitais poderão ser transformadas em avatares. Eles conversarão com nossos descendentes. Uma das consequências da memória total é que deixaremos uma história pessoal incrivelmente mais rica para a posteridade.
Gemmell – Recentemente, escaneei alguns documentos e depois os joguei fora. Disse aos meus filhos: "Isso me deixa tão feliz!". Hoje, com o registro digital detalhado de minhas atividades, posso ter acesso a informações sobre o histórico dos meus gastos calóricos, e isso me motiva a manter os exercícios. Mas, em geral, a digitalização maciça permitirá que as pessoas pensem de forma mais criativa, já que não terão de se preocupar em memorizar fatos.
Isso alterou sua relação com o passado?
Bell – Eu me tornei mais introspectivo. O simples fato de organizar os conteúdos da minha vida em áreas específicas me fez perceber que vivenciei capítulos bem distintos: a minha infância, as minhas escolas, os projetos que desenvolvi, as férias e assim por diante. A memória total favorece a observação detalhada do passado.
Por que a memória total transformará a forma como pensamos nossa vida?
Bell – Nós ainda vamos nos enganar, mas, com a digitalização total, saberemos exatamente quanto tempo passamos com nossos filhos, quanto comemos e se realmente fomos grosseiros em uma conversa. Teremos uma visão mais clara das nossas ações.
Os senhores argumentam que a memória biológica é subjetiva, tingida pela emoção e filtrada pelo ego. A digital, por outro lado, é objetiva, prosaica. Mas estamos prontos para lidar com um tipo de memória tão diferente da natural?
Gemmell – Algumas pessoas vão querer aderir à memória eletrônica mais do que outras. Não estamos dizendo que é preciso fazer isso, mas os benefícios são formidáveis. Estamos convencidos de que a maioria vai adotá-la.
Existem fatos que preferimos esquecer. O que fazer com esse tipo de informação, quando arquivada na memória total?
Bell – Todos passamos por momentos embaraçosos. Mas, em vez de apagá-los da memória, podemos deixá-los de lado. Algum dia, poderemos dar um novo desfecho a gafes e humilhações, até mesmo rindo daquelas ansiedades que pareciam tão sérias. Por isso, advogo manter tudo no arquivo de bits – mesmo o pior.
Há grande preocupação com a segurança e a privacidade em torno do uso de dados pessoais digitalizados. Como lidar com esses temas num mundo em que toda a vida estará transcrita em bits?
Bell – Acredito que as memórias eletrônicas poderão ser reconhecidas pela lei como uma extensão íntima das memórias biológicas e protegidas como tal. Mas também creio que parte das nossas informações será armazenada em uma espécie de banco suíço de dados, numa conta secreta e encriptada, cuja existência poderemos negar de maneira plausível.
O comportamento das pessoas vai mudar?
Gemmell – Vamos ingressar numa vida em que muitos dos nossos passos poderão estar sendo gravados. Pensar nisso pode despertar o melhor do nosso comportamento. Novos tipos de relacionamento também podem surgir desse fato. Haverá aqueles a quem você permitirá gravar momentos de sua vida e aqueles em quem não confiará. Talvez fazer promessas gravadas se torne um novo marco das relações pessoais.
O que acontecerá com a memória total no futuro?
Bell – Veremos uma explosão do número de sensores e equipamentos de gravação com maior capacidade de armazenamento de dados e com softwares mais eficientes. Os mais incríveis sensores serão implantados no nosso corpo. Aparelhos cardíacos, como meu marca-passo, já usam comunicação sem fio. Podem ser conectados à web. Há pouco tempo comprei uma balança com tecnologia Bluetooth (para transmissão de dados sem fio). Ela envia informações sobre o meu peso à memória digital do meu computador. É esse tipo de ferramenta que vai se expandir.
Reportagem VEJA Edição 2139/18 de novembro de 2009 - online.
Nenhum comentário:
Postar um comentário