domingo, 15 de novembro de 2009

Idéias de Heidegger sob novo ataque



Por décadas, o filósofo alemão Martin Heidegger (foto) foi tema de debates acalorados. Sua crítica do pensamento e da tecnologia ocidentais penetrou profundamente na arquitetura, na psicologia e na teoria literária e inspirou alguns dos mais importantes movimentos intelectuais do século XX. Mas Heidegger foi também um nazista fanático.

Agora, um livro a ser lançado brevemente em inglês, retoma o debate quanto a se o homem pode ser separado da sua filosofia. Baseado em novas evidências, o autor, Emmanuel Faye, afirma que as ideias racistas e fascistas estão tão entremeadas nas teorias de Heidegger que não merecem mais ser chamadas de filosofia. Assim, as obras e as muitas áreas criadas a partir dessas teorias têm que ser reexaminadas, diz o autor, de modo a não disseminarem ideias sinistras e perigosas para o pensamento moderno quanto foi sinistro e perigoso o "movimento nazista para os povos exterminados".

Publicado pela primeira vez na França em 2005, o livro, Heidegger: Introdução do Nazismo na Filosofia, exorta professores de filosofia a tratarem a obra de Heidegger como discurso odioso. E também as livrarias deveriam abandonar a classificação dos trabalhos do filósofo (que foram saneados e condensados pela família) como filosofia para incluí-los dentro da história do nazismo. Essas medidas funcionariam como sinal de advertência, do mesmo modo que a caveira na etiqueta de uma garrafa de veneno, para impedir a difusão descuidada das suas mais odiosas ideias, que Faye cataloga como a exaltação do Estado em relação ao indivíduo, a impossibilidade da moralidade, o anti-humanismo e a pureza racial.


O livro é o mais violento ataque feito até hoje a Heidegger (1889-1976) e invalidaria o tratamento pela área filosófica da sua obra nos EUA, e ainda mais na França, onde sua leitura é exigida em graus de estudo mais avançados. Faye (foto ao lado), professor da Universidade de Paris, em Nanterre, não só deseja tirar Heidegger da classe dos filósofos, como desafia seus colegas a repensar o real objetivo da filosofia e sua relação com a ética. Ao mesmo tempo, estudiosos de disciplinas tão distintas da filosofia, como a poesia e a psicanálise, se obrigariam a reconsiderar o uso das ideias de Heidegger. Embora Faye se refira à estreita correlação entre Heidegger e a atual política de extrema direita, os intelectuais da esquerda quase sempre foram inspirados pelas ideias dele. O existencialismo e o pós-modernismo, como também os ataques concomitantes ao colonialismo, bombas atômicas, ruína ecológica e noções universais de moralidade, tudo isso está baseado na sua crítica da razão e da tradição culturais ocidentais.

Richard Wolin, autor de diversos livros sobre Heidegger e leitor atento do livro de Faye, diz não estar convencido de que o pensamento do filósofo alemão esteja inteiramente contaminado pelo nazismo, como afirma Faye. Mas reconhece quão longe as ideias de Heidegger se espalharam para a cultura mais geral. "Não estou, absolutamente, subestimando qualquer dessas áreas por causa da influência de Heidegger", ele escreveu num e-mail, referindo-se à influência do pós-modernismo sobre o mundo acadêmico. "Estou simplesmente afirmando que devemos saber mais a respeito dos resíduos e conotações ideológicas de um pensador como Heidegger antes de aceitarmos seu discurso pronto ingenuamente."

Apesar de o texto em inglês editado pela editora da Universidade Yale só estar à venda nos EUA dentro de algumas semanas, ele já está chamando atenção, como foi assinalado por um ensaio na The Chronicle Review, revista de ideias e opinião do The Chronicle of Higher Education. No texto, intitulado Heil Heidegger! , o crítico Carlin Romano qualifica Heidegger como um "falastrão da Floresta Negra" e uma fraude que foi "supervalorizado no seu apogeu" e "bizarramente venerado pelos acólitos ainda hoje". Poucas pessoas leram o livro, mas o artigo gerou mais de 150 comentários online de defensores e detratores ferozes, mais do que qualquer outro trabalho publicado pela The Review este ano, segundo a editora Liz McMille.

Outros entraram na briga. Ron Rosenbaum, autor de Explaining Hitler (Explicando Hitler), chega até a estender o argumento à filósofa judia alemã Hannah Arendt, ex-aluna e amante de Heidegger. Citando ensaio recente do historiador Bernard Wasserstein, Rosenbaum escreveu no website Slate.com. que a ideia de Hannah sobre o Holocausto e a sua famosa formulação da "banalidade do mal" foi corrompida por Heidegger e por outros escritores antissemitas. Comentaristas rejeitam veementemente a noção de que ideias importantes não podem ser extraídas de ideias infames. Escrevendo para o website do The New Republic, o tnr.com, Damon Linker declarou ser "absurdo implicar toda a bibliografia filosófica de Heidegger". Ele e outros repercutiram a opinião do importante filósofo americano Richard Rorty, que, num artigo no The New York Times, escreveu: "Você não pode ler a maioria dos grandes filósofos mais recentes sem levar o pensamento de Heidegger em conta." Rorty acrescentou, contudo, que "o cheiro da fumaça dos crematórios sobreviverá nas suas páginas".

Aos olhos de Faye, a filosofia de Heidegger não pode ser separada da sua política da maneira, digamos, que a verve poética de T.S. Elliot ou a técnica cinematográfica de D.W. Griffith podem ser apreciadas independentemente das suas próprias crenças. Embora não discuta o lugar de Heidegger no panteão intelectual, Faye revisa suas conferências não publicadas e conclui que a filosofia de Heidegger baseava-se nas mesmas ideias do Nacional Socialismo. Sem compreenderem o solo em que a filosofia heideggeriana tem raízes, afirmou, as pessoas não podem entender que suas ideias possam avançar em direções preocupantes. O ditame de Heidegger para ser autêntico e livre das limitações convencionais, por exemplo, pode levar a uma rejeição da moralidade. A denúncia da razão e do modernismo sem alma pode levar a um anti-intelectualismo grosseiro.

Heidegger juntou-se ao partido nazista em 1933, ao se tornar reitor da Universidade de Freiburg e supervisionou a demissão de professores judeus. Após a guerra, foi proibido de lecionar por um tribunal. Nos anos 50, Hannah Arendt reatou o relacionamento com ele e se empenhou para refazer sua reputação. Heidegger foi um grande crítico da sociedade tecnológica moderna e da tradição filosófica ocidental que propiciou a ascensão dessa sociedade. Segundo ele, nós temos que vencer essa tradição e repensar a real natureza da existência ou do ser humano. Sua prosa é tão densa que, para alguns estudiosos, ela pode ser interpretada para significar qualquer coisa, enquanto outros a rechaçam completamente como sandices. No entanto, ele é considerado um dos maiores e mais influentes pensadores do século.

Teólogos usaram sua crítica da razão para explicar o ato de fé; arquitetos foram inspirados pela sua rejeição das regras convencionais para introduzir uma série de novos estilos, materiais e formas nos projetos de construção. Sua crítica da tecnologia mecanicista atraiu ambientalistas e urbanistas. Mas uma disputa verbal sobre as teorias de Heidegger não deve causar surpresa. Afinal, a posição americana clássica sobre como as sociedades liberais devem tratar ideias perigosas vale a pena ser discutida também. E é isso que Faye diz pretender. Na sua opinião, ensinar as ideias de Heidegger sem revelar suas profundas simpatias pelo nazismo é como levar uma criança a um espetáculo de fogos de artifício sem alertá-la de que um rojão também pode explodir no rosto de alguém.

A reportagem é de Patricia Cohen, do jornal New York Times, e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 15-11-2009.
Postado no IHU/Unisinos, 15/11/2009

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