segunda-feira, 1 de março de 2010

'Deus existe', palavra de biólogo



Quatrocentos e um anos após a primeira observação da Lua realizada por Galileu chegou o momento de “romper o seu encantamento”. Não é um neo-inquisidor que o explica, mas ao contrário: foi Stuart Kauffman, biólogo e teórico da complexidade, exemplo perfeito de celebridade ‘made in USA’. Escreveu “Reinventar o Sagrado” e propõe aos colegas um terremoto conceitual, baseado no teorema científico de um deus panteísta, identificado com as impetuosas metamorfoses do todo, dos micróbios às galáxias.
A entrevista é de Gabriele Beccaria e publicada pelo jornal La Stampa, 24-02-2010. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis a entrevista.

Professor, por que a ciência “clássica” não basta e se teria necessidade de uma mudança de perspectiva?
Com uma batalha contra a visão padrão que se afirmou de Newton em diante, o reducionismo dita uma série de leis, como aquelas da mecânica celeste e tudo ocorre em relação às próprias leis. É a concepção dominante, que não se reduziu sequer com o advento da mecânica quântica e, por conseguinte, com Bohr e Schroedinger, até as grandes mentes como Steven Weinberg. Se eles têm razão, o Universo não pode ser criativo. Meu ensaio, ao invés, sustenta uma tese radicalmente diversa, rompendo, precisamente, o encantamento galileano: não é verdade que tudo o que acontece seja descritível com as leis naturais.

Muitos cientistas não estão de acordo: pode dar um exemplo?
Fá-lo-ei com uma pergunta: é possível imaginar antecipadamente todas as pré-adaptações darwinianas dos humanos”?

Sua resposta é um seco “não”, exato?
De fato. Pensemos no coração. Sua função evidente é bombear sangue, mas se pode acrescentar que também emite sons regulares, as batidas. E então Darwin rebateria que em todo caso não se trata de uma função. O coração foi selecionado para fazer circular o sangue e é esta capacidade que conferiu uma vantagem seletiva aos organismos dotados de um coração. Eis o meu ponto, que nasce do próprio Darwin: o som martelador poderia representar um “passo ulterior”, mas, num ambiente diverso daquele que conhecemos e, por conseguinte, estamos falando de uma pré-adaptação, uma transformação da qual ainda não se pode prever o resultado evolutivo. É isso que no século vinte tem sido definido como “exaptation”.

Refere-se à presumida incapacidade da seleção de “governar” as fases incipientes de estruturas complexas?
Isso mesmo. Outro exemplo é a barbatana natatória dos peixes. Os paleontólogos sustentam que ela nasceu como uma pré-adaptação dos peixes dotados de pulmões e que, portanto, o órgão se desenvolveu numa fase subseqüente, quando água e ar se misturaram. E, consequentemente, minhas perguntas são duas: Primeira: estamos diante da emergência de uma função que não existia? Sim, a da estabilização na água. Segunda: ela contribuiu para mudar os modos pelos quais a biosfera evoluiu? Sim, certamente. Nasceram tantas novas espécies de peixes. E, em conseqüência, mudou também a história do Universo e é aqui que se retorna à questão crucial, à qual acenei antes: teria sido possível prever todas as pré-adaptações darwinianas para todos os organismos hoje existentes? A resposta é: não! Não se pode prever a emergências das barbatanas natatórias a partir da física e muito menos se pode simular a evolução da biosfera: não só não sabemos o que acontecerá, mas sequer o que poderia acontecer. E é aqui que chego à conclusão”.

Explique: pensa, então, em restabelecer o contato entre ciência e fé que hoje parece irremediavelmente rompido?
Se definimos como “lei natural” a descrição de processos regulares, poderá existir uma para explicar o emergir da barbatana natatória? Não. Sua manifestação não viola nenhuma lei, ou, quem sabe, ao mesmo tempo nos impele além. Eis o ponto do meu ensaio: o despregar-se do Universo não é completamente descritível através das leis “padrão” e este é o motivo pelo qual o reducionismo é inadequado, pois não explica a inata criatividade natural que anima o que nos circunda e isto vale não só para a biologia, mas também, por exemplo, para a história ou a economia.

Como reagem os seus colegas a estas que parecem ser provocações?
A ciência não está em condições de conhecer e deduzir tudo e esta incapacidade rompe as barreiras entre ciência e arte e toda outra manifestação do pensamento. A ciência é somente um dos instrumentos de conhecimento num mundo do qual ignoramos os resultados. A conseqüência é profunda: há a necessidade de um segundo Iluminismo que dê conta dos diversos aspectos de nossa humanidade e contribua para uma civilização global diversa da atual, capaz de opor-se aos fundamentalismos. E não me refiro a uma única realidade homogênea, mas a uma ecologia de civilização que conjuntamente envolva e compartilhe um sentido do sagrado que vai além da adoração de uma restrita racionalidade. Deus se torna a criatividade do Universo, no qual estamos imersos e do qual fazemos parte.
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Fonte: IHU 01/03/2010

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