segunda-feira, 1 de março de 2010

O batllismo do século 21?

Renato Martins*

José “Pepe” Mujica inicia hoje o segundo governo socialista da história do Uruguai. Recebe de Tabaré Vasquez um país em transformação, resultado das políticas de combate à pobreza implementadas pelo governo da Frente Ampla. O símbolo principal dessas mudanças é o Plano Ceibal, iniciativa do governo que nos últimos dois anos entregou a cada criança e a cada professor das escolas públicas um laptop com acesso à internet banda larga. Qualificado de revolucionário até pelos partidos de oposição, o plano explica o apoio de mais de 60% que o presidente Tabaré desfruta ao deixar o governo. Nada mal, à luz do que diziam seus adversários no início do governo.

Mujica se elegeu com o compromisso de prosseguir as mudanças e ampliar as políticas sociais iniciadas no governo Tabaré Vasquez. Em dezembro passado, quando derrotou o candidato do Partido Nacional, a mídia brasileira destacou a sua trajetória de ex-guerrilheiro pertencente ao Movimento de Libertação Nacional, os Tupamaros. Pouco se disse, porém, sobre a evolução do pensamento político do Uruguai, o que nos ajudaria a compreender o significado das mudanças em curso desde que a esquerda assumiu o poder em 2004.

O batllismo, vertente política nascida nas fileiras do Partido Colorado, é um exemplo desse desconhecimento. Foi a partir dessa doutrina que o Uruguai superou a difusa institucionalidade herdada do século 19 e consolidou-se como Estado moderno. Devem-se a José Batlle y Ordóñez, presidente do Uruguai por duas vezes (1903-1907 e 1911-1915), as principais ideias dessa doutrina que influenciou fortemente o país. Muitos anos antes do aparecimento do welfare state nos países industrializados, Batlle lançou as bases do Estado de bem-estar social no Uruguai. Até hoje ele é chamado de Don Pepe pelos uruguaios.

No século 19 as disputas entre Blancos e Colorados degeneravam normalmente em guerras civis, dividindo e enfraquecendo o país, e tornando-o presa fácil de interesses estrangeiros. Os confrontos de caudilhos locais refletiam a luta de poder entre o governo central e os departamentos. Após assumir a presidência e sufocar uma revolta dos líderes Blancos do Departamento de Rivera, Batlle deu início a um programa de reformas que viria conferir ao Uruguai o título de Suíça da América.

Ao nível econômico, promoveu-se a nacionalização de setores estratégicos e atribuiu-se ao Estado o papel de indutor do crescimento. No plano social, aprovou-se um conjunto de leis sobre a proibição do trabalho de menores de 13 anos, a garantia de 40 dias de licença maternidade, o repouso semanal obrigatório e a jornada de oito horas. Promoveu-se a separação entre a Igreja e o Estado, o divórcio por iniciativa da mulher, o voto feminino (aprovado em 1932) e o ensino público.

Com o passar do tempo, o Uruguai tornou-se o país mais laico da América Latina, com os menores índices de analfabetismo, as mais baixas taxas de natalidade e mortalidade e um dos mais altos níveis de esperança de vida. Após a morte de Batlle, em 1929, e a depressão dos anos 30, que atingiu drasticamente o país, os seus seguidores foram incapazes de recompor o arco de alianças políticas de sustentação do batllismo.

Ainda assim, o legado de suas ideias representa até hoje a vitória do elemento intelectual e urbano, com forte identidade nas classes médias, sobre o Uruguai rural e conservador do final do século 19. Não poucos militantes da esquerda uruguaia reivindicam a sua herança. Mujica, porém, tem os olhos voltados para o futuro. Em livro de entrevista a Samuel Blixen, intitulado El sueño del Pepe, ele diz: “O conhecimento será a propriedade mais importante no mundo que se aproxima. A verdadeira libertação é a acumulação da inteligência nas entranhas da sociedade. Não há outro caminho que a capacitação. Não existe nada mais valioso que o cérebro de nossos filhos. Mas o acesso ao conhecimento deve ser democratizado, para todos, para que os pobres tenham também acesso ao conhecimento”.

É um sonho que se parece com um programa de governo, alicerçado em valores morais de um velho militante de esquerda que, ao final do livro, declara: “Eu não renuncio ao socialismo. Mas no sonho do socialismo, é preciso reinventar o capitalismo”. Será que esse novo Pepe, a quem compete governar o Uruguai em um contexto histórico distinto, aportará o elemento popular de um renovado batllismo do século 19?
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*Doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP), assessor especial da Secretaria-Geral da Presidência da República
Fonte: Correio Braziliense online, 01/03/2010

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