terça-feira, 31 de julho de 2012

O deserto e o jardim: as duas solidões do ser humano.

Enzo Bianchi*

 

Estar só, saber estar só é uma conquista que exige esforço, exercício, audácia. 
Sem a solidão e sem o silêncio, 
como poderíamos conhecer a nós mesmos, 
escavar em nós mesmos, 
enxertar conscientemente em nós mesmos
 germes de comunhão?


Solidão: uma palavra que habitualmente soa como negativa, que causa medo, porque remete à imagem de um pântano desolado, a uma situação fechada, de isolamento, até mesmo de reclusão na prisão. Quando se afirma que alguém está sozinho, diz-se isso com um sentimento de pena, de compaixão. Gabriel Marcel chegou a confessar: "Não há a não ser um sofrimento: o estar só", bem sabendo que muitos homens e muitas mulheres estão condenados a sofrer essa situação. E Victor Hugo escreveu laconicamente: "O inferno está todo nesta palavra: solidão".

Mais do que solidão, devemos, porém, falar de solidões, no plural, porque muitas são as formas nas quais a solidão pode aparecer, e de fato aparece, nas nossas vidas. Acima de tudo, há uma solidão a ser lida como uma espécie de destino, isto é, a solidão em que nos precipitamos em um certo ponto da vida, quando a morte nos arranca aqueles que nos permitiam não ficar sozinhos.

Essa é, por exemplo, a solidão do órfão que, perdendo a mãe ou o pai, não tem mais ao seu lado aquela presença que era a carne, a vida da qual viera, não tem mais aquela referência ao "tu" que o tinha acompanhado na sua vinda ao mundo. Tempos atrás, a solidão do órfão era um tema da literatura, principalmente para a dos jovens, um tema atestado de modo quase obsessivo; hoje, ao invés, ele foi removido, como se não se registrasse mais a morte de algum pai, que determina para o filho, criança ou adolescente, uma situação de triste solidão.

Solidão ligada a uma perda também é a de quem está privado do seu amante/amado. Eugenio Montale escrevia na morte da esposa: "Eu desci, dando-te o braço, ao menos um milhão de escadas / e agora que tu não estás, é o vazio a cada degrau". Sim, nessa solidão-destino, só se pode gemer, chorar, lamentar: o pranto é a única coisa necessária e parece também ser o único remédio possível.

Uma outra solidão negativa é a do isolamento. Às vezes, muitas vezes a partir de inícios silenciosos e escondidos, acontece de estarmos sozinhos, isolados, porque todos estão longe, porque não estamos mais perto de ninguém. A manifestação extrema dessa solidão é a prisão, onde somos jogados para longe da vida, dos afetos, do escorrer cotidiano da existência.

Hoje, porém, de fato, muitos aportam nesse isolamento mesmo sem chegar a essa situação limite: chegam a ela principalmente por causa de "um mundo em fuga" (Anthony Giddens), de uma sociedade marcada pela velocização, em que o indivíduo não tem mais tempo para dar aos outros a sua própria presença.

Parece impossível, mas essa distância nasce dos próprios filhos, dos próprios entes queridos, e a estranheza se afirma porque os laços se mostram frágeis e são facilmente afrouxados ou mesmo truncados. É o estado em que se encontram muitos idosos, pensionistas, inválidos e doentes, abandonados em parte ou totalmente por aqueles que, empenhados em viver, não têm mais o cuidado por aqueles que não conseguem "permanecer na vida", "correr" como eles. Esses idosos estão – se poderia dizer – sob prisão domiciliar, porque estão impedidos pela sua condição física de se moverem como antigamente.

Depois, há a solidão de quem vive o sentimento da estranheza: esta é sobretudo um mal-estar psicológico e intelectual. Tal solidão é mais rara e é uma enfermidade que aflige pessoas na posse de uma certa educação, de uma certa cultura. Não se trata de apatia ou de falta de interesses, mas sim de uma rejeição do que está ao redor, do ar que se respira. É um sentimento estranho aos outros. Este, em resumo, é a solidão de quem pensa que os outros são o inferno... E depois há as solidões fecundas.

Estar só, saber estar só é uma conquista que exige esforço, exercício, audácia. Sem a solidão e sem o silêncio, como poderíamos conhecer a nós mesmos, escavar em nós mesmos, enxertar conscientemente em nós mesmos germes de comunhão?

Mas é preciso a coragem de se retirar, de fazer anacorese, de se afastar do cotidiano, do próprio empenho, dos próprios vínculos: e isso não para renegá-los, mas sim para se distanciar do que saiu de nós, do que foi gerado por nós, mas não está dentro de nós.

É um sair do turbilhão cotidiano para se afirmar: "Senta-te e vai'', dizia um padre do deserto. É nessa fase da solidão assumida que a música, a leitura, a vista de uma imagem, a contemplação de uma planta ou de uma pedra são eloquentes, nos fazem perguntas, acenam a respostas, nos fazem tremer de alegria, nos fazem chorar... "Beata solitudo, sola beatitudo!", gritava Bernardo de Claraval.
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*  A reflexão é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal Avvenire, dos bispos italianos, 29-07-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 31/07/2012
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'Batman' é o 'rock do americano doido'

 Arnaldo Jabor*
 
Fui ver o "Cavaleiro das Trevas", mas não vou analisar o Batman como 'arte'. Agora existe um novo tipo de coisa - um filme-game que não se mede por estrelinhas ou bonequinhos aplaudindo. Não existe mais ‘gostei’ ou ‘não gostei’. Os roteiros não contam mais, a mise-en-scène é a tempestade de planos de três segundos montados em enxurrada com efeitos especiais incessantes.
O significado dos filmes está além deles. Interessa ver os conceitos que estão por baixo das cenas, a intenção por baixo da ação. O filme se esconde no décor - ali está o verdadeiro sentido. Acabaram mocinhos x bandidos; as personagens principais são as coisas, os computadores, a tecnociência.
Esse filme se pretende mais complexo que os outros; mas não é. Parece "complexo", mas é apenas "emaranhado". Isso. Assim como o mistério da arte é abolido no "entretenimento", nos atuais filmes de ação a "complexidade" é substituída por um simulacro: o proposital "emaranhamento", que nos dá a sensação de "profundo". É claro que o Batman é um herói genial, que os outros empregados da Marvel são heróis encantadores das histórias em quadrinhos. Nada contra as aventuras maravilhosas que tinham uma cândida simplicidade nos enredos. O que enche o saco é ver como os produtores se apropriam dessas historinhas ingênuas e tentam dar-lhes um sentido do ‘ar do tempo’, construindo um sarapatel de fatos políticos: terrorismo, patriotic act, política do medo, impotência social, numa espécie de ‘rock do americano doido’... "Ah... deixa de ser chato; é apenas gibi filmado..." Gibi é o cacete - alguns desses filmes são manifestos com interpretações ridículas sobre o momento atual. E ninguém percebe.
No entanto, gostei muito do Batman 2, com o Heath Ledger criando uma obra-prima rara no cinema, uma ilha do cinismo contemporâneo, misturando bem e mal, misturando horror e simpatia. "Escolhi o caos" - ele diz para o Batman. Heath, de certo modo, faz uma crítica ao próprio filme. Heath é quase uma paródia do "grande espetáculo", é um marginal dentro do elenco.
Claro também que do meio desse barroquismo digital, linguagens e verdades podem estar nascendo. Mas se descascarmos as camadas de significação, em meio ao enxame de efeitos especiais, podemos ver Batman e outros como "sintoma", como queriam os professores da "filmologia" francesa. Nos anos 60, Gilbert Cohen-Seat criou uma espécie de filosofia do cinema, a filmologia, em que analisava não só os filmes, mas o berço de onde saíram, o chão histórico de onde brotavam. Foram várias fases desse pós-cinema de porrada e velocidade.
Nos filmes violentíssimos dos anos 80, com os atores brutais como Sylvester Stallone, Van Damme etc., Hollywood inventou o prazer do sangue, das facas dentadas, dos peitos estourados, das metralhadoras fálicas. Era a safra do cinema pós-Vietnã, como uma vingança na tela pela derrota humilhante dos americanos pelos guerreiros comedores de arroz; eram um show de força para compensar o fracasso da guerra.
Mais tarde, ainda antes do "11 de Setembro", rolou a grande onda de filmes sobre a destruição de Nova York. Parecia uma sugestão ao Osama, que acabou realizando essa volúpia destrutiva, satisfazendo esse estranho desejo de autoextermínio dos americanos. Por quê? Ninguém filma Paris acabando ou Londres em pó. Mas, americano paranoico só pensa em inimigos. Podem conferir as obras: os USA invadidos por "Godzillas", por discos voadores letais, por asteroides, por explosões no "Armageddon" (há em Godzilla uma cena absolutamente igual à multidão real de 2001, fugindo pela rua, com as torres se suicidando ao fundo. Aliás, no mundo real, as próprias torres encarnavam uma arrogância arquitetônica, pedindo bombardeio.)
Osama, o Coringa do deserto, acabou com a ideia de guerra. Osama nos atacou de outro tempo - fora da história. A queda das torres do WTC está nos filmes de hoje como uma cicatriz na dramaturgia. Neste Batman 3 também tiveram o prazer de massacrar a Bolsa de Valores (dezenas metralhados como em Colorado), de explodir o Super Bowl, de ver a cidade tomada, a ponte doi Brooklyn desabando. Por quê?
Recentemente, a violência dos "estoura-peitos" e o suicídio virtual dos filmes-catástrofe deram lugar a uma cultura de massas mais "reflexiva". Hollywood, claro, se apropriou até dos heróis anarquistas ou psicopatas, ameaçando a ‘boa’ sociedade. Passaram a fingir uma ‘crítica ao Sistema’ como em Matrix ou o Clube da Luta, que foi a tela de onde surgiu o nosso assassino Matheus, alguns anos atrás em São Paulo, lembram?
Hoje, a verdade de Hollywood está fora das telas, nas motivações financeiras e paranoicas dos produtores. Já se disse que o 11 de Setembro em NY foi o único momento de realidade na escalada do mundo virtual. Depois da catástrofe das torres e agora, com a tremenda crise do mundo atual, o cinema só quer faturar em cima da confusão, explorar o inexplicável com fábulas ridículas com terroristas angustiados, monstros do mal e heróis do bem, tudo bem simplificado para agradar à patuleia. Onde estão os comportamentos humanos verdadeiros? Ninguém liga mais para isso.
Este filme não é o Bem contra o Mal. Fala sobre a liberdade do povo, mas deixa um odor republicano no ar. Gozamos o tempo todo com o mal e, no fim, os produtores nos "concedem" o arbítrio de escolher o bem, quando a tecnologia e as cenas celebram o mal durante toda a projeção. Este "meio" é muito mais importante que as "mensagens" que, ao final, vêm em pequenas lições morais defendendo a família, a solidariedade, o amor.
No Batman, a política e a polícia tentam dar conta da imensidão da corrupção e da criminalidade global. Ninguém sabe o que fazer, mas o cinema americano acha que sabe, com suas alegorias paranoicas e lucrativas. Quando Osama-Coringa atacará de novo?
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* Cineasta. Escritor. Cronista.
Fonte: Estadão on line, 31/07/2012
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Na incerteza essencial, a saída é o Estado

 Antonio Delfim Netto*

 
A primeira coisa que um economista tem que aprender é que, a despeito do que dizem os mais sofisticados e artificialmente matematizados livros de microeconomia, o homem-indivíduo não existe.
Só existe a "rede" de relações em que está imerso no universo econômico, controlado pelas instituições que ele mesmo foi "descobrindo" ao longo de sua história para a sua subsistência material (alimento, vestimenta e abrigo): o Estado e o mercado. O primeiro garante as condições de um razoável funcionamento do segundo, impondo-lhe normas de comportamento em troca da garantia de sua existência.
Os dois polos dessa organização foram evoluindo lentamente para uma combinação que permita - agora sim - ao homem-indivíduo gozar crescentemente de valores que aprecia: 1) sua liberdade de escolha e a apropriação dos benefícios que dela eventualmente decorram; e 2) o uso relativamente eficiente de seu esforço para produzir os bens e serviços de que necessita para o seu bem-estar. Essa "necessidade" aumenta naturalmente por uma disposição psicológica. É a "eficiência" que lhe proporciona maior tempo livre para procurar sua humanidade.

Só o investimento público pode 
socorrer a economia

Não há leis naturais na economia e não existe equilíbrio de longo prazo que possa determinar a combinação ótima da relação Estado versus mercado. A história mostra que um Estado constitucionalmente controlado, suficientemente forte para impor regulação aos mercados (particularmente ao financeiro), parece ser uma combinação razoável, que permite um aumento da quantidade de bens e serviços com os recursos sempre escassos de que dispõem as sociedades.
A antinomia Estado versus mercado é disfuncional. Mas há mais. Há um terceiro valor que o homem-indivíduo inserido nas relações econômicas procura, além da liberdade e da eficiência: uma preferência pela relativa igualdade. Inserido na "rede", ele aparentemente tem maior alegria quando suas relações se realizam com membros em condições próximas às suas.
O problema é que essa maior igualdade não pode ser obtida pelo funcionamento dos mercados. Esses combinam liberdade individual com eficiência individual, mas, por serem altamente competitivos, estimulam a desigualdade. Estudos empíricos sugerem que a partir de certo ponto essa desigualdade é também disfuncional com relação à eficiência coletiva.
Há, por outro lado, um fato empiricamente bem comprovado. Os mercados, apesar de suas virtudes, têm um problema sério: são inerentemente instáveis. A ilusão criada pela teoria neoclássica, que os economistas tinham descoberto políticas econômicas que tornavam as crises "obsoletas" (como afirmou um prêmio Nobel em 2003!), foi enterrada "à la lumière des flambeaux" na crise de 2007...
Dois fatos: 1) a possibilidade que o mercado possa produzir um nível de desigualdade não funcional; e 2) o fracasso da ideia que tínhamos entrado num período de "grande moderação", por conta das políticas econômicas fiscal, monetária e cambial desenvolvidas nos últimos 30 anos, deixou claro que a economia é um tipo de conhecimento muito complexo. Ele está longe de poder ser dominado pelo cientificismo produzido pela inveja da física, que encantou alguns economistas.
O papel fundamental de um Estado constitucionalmente controlado transcende - e muito - o de ser o "garante" das instituições que permitem aos mercados serem instrumentos úteis (indispensáveis, mesmo) para o desenvolvimento social e econômico. Ele é o único instrumento capaz de, em condições especiais e com medidas corretas, eventualmente, corrigir as flutuações do emprego e da produção, quando os agentes sociais congelam diante da incerteza absoluta.
É importante entender que essa incerteza não é do tipo do risco atuarial, que tem uma história e ao qual pode aplicar-se o cálculo das probabilidades. É a incerteza essencial à qual se referia Keynes, do tipo: o que será a eurolândia daqui a cinco anos? É a incerteza produzida pelo fato que o passado não tem qualquer informação sobre o futuro. Alguém acha que o destino da União Monetária Latina no século XIX pode nos informar como terminará a União Econômica Europeia no século XXI?
Quando isso acontece, destrói-se a "rede" social, porque desaparece o seu elemento essencial: a confiança mútua. Termina instantaneamente o crédito interbancário e com ele destrói-se parte da demanda global do setor privado. Para sustentar o nível de emprego e de renda, só resta tentar substituí-la pela demanda pública. O consumo é a parte mais importante da demanda e mais resistente à flutuação do PIB principalmente pelas medidas anticíclicas da política fiscal. O investimento é menor, mas é mais volátil, porque depende da expectativa do futuro e da possível taxa de retorno (o lucro esperado) que são mortalmente atingidos pela incerteza.
Nessa circunstância, só o investimento público pode socorrer a economia, porque ele amplia a demanda e, ao mesmo tempo, a capacidade produtiva. Para não comprometer o equilíbrio fiscal, o melhor é realizá-lo através do setor privado, com concessões e parcerias com taxas de retorno adequadas e descentralizá-lo para obter um efeito mais rápido e generalizado, como parece ser a atual tentativa de cooptação dos Estados e dos municípios.
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*Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
E-mail: contatodelfimnetto@terra.com.br
Fonte: Valor Econômico on line, 30/07/2012
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A irracionalidade da razão: a doença da mente

Leonardo Boff*

Não estamos longe da verdade se entendermos  a tragédia atual da humanidade como o fracasso de um tipo de razão predominante nos últimos quinhentos anos. Com o arsenal de recursos de que dispõe, não consegue dar conta das contradições, criadas por la mesma. Já analisamos nestas páginas como se operou a partir de então, a ruptura entre a razão objetiva (a lógica das coisas) e a razão subjetiva(os interesses do eu). Esta se sobrepôs àquela a ponto de se instaurar como a exclusiva força de organização histórico-social.
Esta razão subjetiva se entendeu como vontade de poder e poder como dominação sobre pessoas e coisas.  A centralidade agora é ocupada pelo poder do “eu”, exclusivo portador de razão e de projeto. Ele gestará o que lhe é conatural: o individualismo como reafirmação suprema do “eu”. Este ganhará corpo no capitalismo cujo motor é a acumulação privada e individual sem qualquer outra consideração social ou ecológica. Foi uma decisão cultural altamente arriscada a de confiar exclusivamente à razão subjetiva a estruturação de toda a realidade. Isso implicou numa verdadeira ditadura da razão que  recalcou ou destruíu outras formas de exercício da razão como a razão sensível, simbólica e ética, fundamentais para a vida social.
O ideal que o “eu” irá perseguir irrefreavelmente será um progresso ilimitado no pressuposto inquestionável de que os recursos da Terra são também ilimitados. O infinito do progresso e o infinito dos recursos constituirão o a priori ontológico e o parti pri  fundador desta refundação do mundo.
Mas eis que depois de quinhentos anos, nos damos conta  de que ambos os infinitos são ilusórios. A Terra é pequena e finita. O progresso tocou nos limites da Terra. Não há como ultrapassá-los. Agora começou o tempo do mundo finito. Não respeitar esta finitude, implica tolher a capacidade de reprodução da vida na Terra e com isso pôr em risco a sobrevivência da espécie. Cumpriu-se o tempo histórico do capitalismo. Levá-lo avante custará tanto que acabará por destruir a sociabilidade e o futuro. A persistir nesse intento, se evidenciará o caráter destrutivo da irracionalidade da razão.
O mais grave é que o capitalismo/individualismo introduziu duas lógicas que se conflitam: a dos interesses privados dos “eus” e das empresas e a dos interesses coletivos  do “nós” e da sociedade. O capitalismo é, por natureza, antidemocrático. Não é nada cooperativo e é só competitivo.
Teremos alguma saída? Com apenas reformas e regulações, mantendo o sistema, como querem os neokeynesianos à la Stiglitz, Krugman e outros entre nós, não. Temos que mudar se quisermos  nos salvar.
Para tal, antes de mais nada, importa construir um novo acordo entre a razão objetiva a a subjetiva. Isso implica ampliar a razão e assim libertá-la do jugo de ser instrumento do poder-dominação. Ela pode ser razão emancipatória. Para o novo acordo, urge resgatar a razão sensível e cordial para se compor com  a razão instrumental. Aquela se ancora do cérebro límbico, surgido há mais de duzentos milhões de anos, quando, com os mamíferos, irrompeu o afeto, a paixão, o cuidado, o amor e o mundo dos valores. Ela nos permite fazer uma leitura emocional e valorativa dos dados científicos da razão instrumental. Esta emergiu no cérebro neocortex há apenas 5-7 milhões de anos. A razão sensível nos desperta o reencantamento e o cuidado pela vida e pela mãe-Terra.
Em seguida, se  impõe uma nova centralidade: não mais o interesse privado mas o interesse comum, o respeito aos bens comuns da Humanidade e da Terra destinados a todos. Depois a economia precisa voltar a ser aquilo que é de sua natureza:  garantir as condições da vida física, cultural e espiritual de todas as pessoas. Em continuidade, a política deverá se construir sobre uma democracia sem fim, cotidiana e inclusiva de todos seres humanos para que sejam sujeitos da história e não meros assistentes ou beneficiários. Por fim, um novo mundo não terá rosto humano se não se reger por valores ético-espirituais compartidos, na base  da contribuição das muitas culturas, junto com a tradição judaico-cristã.
Todos esses passos possuem muito de utópico. Mas sem a utopia afundaríamos no pântano dos interesses privados e corporativos. Felizmente, por todas as partes repontam ensaios, antecipadores do  novo, como a economia solidária, a sustentabilidade e o cuidado vividos como paradigmas de perpetuação e reprodução de tudo o que existe e vive. Não renunciamos ao ancestral anseio da  comensalidade: todos comendo e bebendo juntos como irmãos e irmãs na Grande Casa Comum.
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* Leonardo Boff e autor de   Virtudes para um outro mundo possível, 3 vol.Vozes 2009.
Fonte:  http://leonardoboff.wordpress.com/2012/07/30/a-irracionalidade-da-razao-a-doenca-da-mente/
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'Toda iniciativa para a educação é válida'


A  64ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), considerada o maior congresso científico da América Latina, terminou com um bom debate sobre o Programa Ciência sem Fronteiras, abordado em duas mesas redondas e na conferência do ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marco Antonio Raupp.
No total, foram 11.912 participantes de 700 cidades brasileiras, volume considerado um sucesso pela presidente da SBPC, a professora da Unifesp Helena Bonciani Nader. Nesta entrevista, ela fala sobre os pontos altos do encontro, destaca a presença inédita de um prêmio Nobel e faz sua avaliação do programa Ciência sem Fronteiras.

O que a senhora destaca desse encontro?
Um dos destaques foi a presença de Dan Shechtman, prêmio Nobel de Química de 2011. A presença dele foi marcante para os jovens. Eu assisti à apresentação sentada no chão porque não tinha mais lugar e não tinha mais fone para a tradução. O que eu vejo de positivo foi ele ter tocado esses jovens.

E quanto à escolha do tema?
Outra novidade foi que nós, cientistas, sempre discutimos os saberes tradicionais, mas aquele que é o detentor desses saberes não participa. Desta vez, eles estavam sentados nas mesas com os pesquisadores. Teve uma troca de conhecimento inédita, que terá um saldo positivo para o futuro do País. Trouxemos pela primeira vez um ministro do Tribunal de Contas da União. Os pesquisadores precisam entender melhor como funciona esse sistema e aprender a dialogar. É isso que a SBPC pode fazer. Não pode oferecer soluções, mas pode juntar os cientistas, discutir e oferecer propostas.

O que ficou das discussões sobre o Ciência sem Fronteiras?
Desde quando foi lançada a ideia do Ciência sem Fronteiras, fui entrevistada várias vezes para dizer qual era a posição da SBPC. Todas as iniciativas para a melhoria da qualidade da educação e da ciência são válidas. O que foi colocado durante a mesa redonda, até mesmo pelos presidentes do CNPq, Glaucius Oliva, e da Capes, Jorge Guimarães, é que o programa foi criado rapidamente e, como tudo, precisa de ajustes.

Quais seriam esses ajustes?
O que eu vejo como impacto muito importante é o alerta de que o estudante brasileiro tem uma dificuldade no diálogo internacional. A única língua que o nosso estudante fala é o português, mas a língua internacional é o inglês. O programa Ciência sem Fronteiras deu uma cutucada nas nossas universidades, elas estão esquematizando como suprir essa deficiência. A Capes e o CNPq estão pensando em criar um projeto de ensino a distância em inglês que realmente capacite. O programa é bom e está andando.

Há preocupação com o retorno dos estudantes?
A China, que mandou na década de 1980 muitos estudantes para os EUA, trouxe essa turma bem formada de volta de uma forma muito competitiva. Ou seja: oferecendo excelentes condições de trabalho. A garantia que queremos é ter essas condições no Brasil. Por isso a gente insiste: os meninos estão sendo bem formados, então temos de mostrar que terão boas condições na volta.
(O Estado de São Paulo - 29/07)
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Fonte:  http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=83473
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segunda-feira, 30 de julho de 2012

Crer em maluquices é parte da natureza humana, afirma cético

Investigador paranormal Ben Radford esteve em debate na Folha

Creative Commons
Americano Benjamin Radford, editor da revista cética "Skeptical Inquirer", em palestra
Americano Benjamin Radford, editor da revista cética "Skeptical Inquirer", em palestra
Benjamin Radford, investigador de supostas ocorrências paranormais e editor da revista americana "Skeptical Inquirer", confessa sem muito constrangimento que tem um carinho especial pelos chupa-cabras, supostos monstros destruidores de rebanhos da América Latina.
Já os contatos com pessoas que acreditam piamente ter sido sequestradas por extraterrestres não foram tão divertidos, ao menos na experiência desse "cético profissional". "Eles são a minha maior fonte de ameaças de morte", contou ele em debate na Folha na última sexta.
Radford participou de uma conversa com leitores do jornal, em mesa-redonda sobre pensamento crítico, ceticismo e ciência na qual também estavam presentes Kentaro Mori, editor do site "Ceticismo Aberto", e este jornalista. 

MISSÃO: ENTENDER
Nascido no Novo México e formado em psicologia, Radford, 41, faz parte do quadro de editores da "Skeptical Inquirer" desde 1997, período durante o qual também ajudou a investigar supostos fenômenos que a ciência não conseguiria explicar -de fantasmas a monstros em lagos- Estados Unidos afora.
Ele recusa, porém, o rótulo de desmancha-prazeres ou de sujeito de cabeça fechada. "Minha missão não é desmascarar ou desprovar os fenômenos, mas tentar entendê-los", diz. A formação em psicologia, segundo ele, ajuda a levar em conta as predisposições da mente humana que acabam levando as pessoas a acreditar de forma pouco crítica em supostos fenômenos sobrenaturais.
"Eu acho que essas crenças sempre continuarão conosco, elas são parte da condição humana", resume. 

DELÍRIO DE DAWKINS
Talvez por ter isso na cabeça, Radford afirma não ficar muito à vontade com a associação entre conhecimento científico e ateísmo defendida por alguns dos mais influentes divulgadores de ciência do mundo, como o zoólogo britânico Richard Dawkins. Para Radford, "forçar as pessoas a escolherem um lado, ou a ciência ou a religião, pode ser contraproducente, e discordo de Dawkins nesse ponto".
"Não gosto da posição binária, de estar comigo ou contra mim. Se você é religioso, para mim tudo bem. Vou continuar dormindo de noite sem problema e não vou tentar converter você", declarou.
Ele afirma conhecer céticos muito rigorosos que, mesmo assim, acreditam em Deus. "Por outro lado, é preciso reconhecer o trabalho fantástico em favor da ciência que Dawkins faz ao explicar a teoria da evolução para o público", ressalta.
Durante a conversa, ele se revelou pessimista em relação à popularidade atual do pensamento crítico e da ciência. "Uma coisa que claramente não está dando certo é a educação", disse ele. "Precisamos fazer com que o pensamento crítico seja uma ferramenta para a vida, ensinada nas escolas, como parte integrante das disciplinas."
O clima descontraído do debate permitiu até uma exibição pública de tatuagens inspiradas pela ciência: um dos presentes na plateia resolveu mostrar o desenho de um átomo em seu pulso, o que levou Radford a mostrar a tatuagem de um microscópio em seu peito.
"Acho que o microscópio é um bom símbolo do que tento realizar com meu trabalho", explicou ele. 

Raio-X / Benjamin Radford 

NASCIMENTO
2 de outubro de 1970 no Novo México, Estados Unidos
FORMAÇÃO
Graduação em psicologia, com interesse em escrita profissional, pela Universidade do Novo México
CARGO
Editor e colunista da revista "Skeptical Inquirer"
LIVROS RECENTES
"Tracking the Chupacabra: The Vampire Beast in Fact, Fiction and Folklore" (Em Busca do Chupa-cabras: A Fera Vampira como Fato, Ficção e Folclore"), de 2011, e "Scientific Paranormal Investigation: How to Solve Unexplained Mysteries" (Investigação Científica Paranormal: Como Resolver Mistérios Sem Explicação"), de 2010
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Reportagem por REINALDO JOSÉ LOPES EDITOR DE “CIÊNCIA+SAÚDE”
Fonte: Folha on line, 30/07/2012

“Conversation piece”

L. F. Veríssimo*

Esses americanos... Lá existem o que eles chamam de “conversation pieces”, que vêm a ser qualquer coisa que sirva para começar uma conversa. Digamos que você vai receber na sua casa uma pessoa com a qual não tem nenhuma intimidade, afinidade e, principalmente, assunto. Para que a visita não transcorra em constrangedor silêncio, você coloca em cima da mesa de centro alguma coisa – um livro, uma escultura, uma cabeça mumificada – que despertará a curiosidade do visitante, que indagará a respeito e lhe permitirá dissertar sobre o seu significado e sua história. Com sorte, e com um “conversation piece” bem escolhido, a conversa sobre este tópico único pode durar a visita inteira e dispensar a busca de outros assuntos.

– Esse fuzil...

– Fabricação japonesa. Comprei quando eu estava pensando em me tornar um serial killer. Depois comecei com as aulas de sapateado e fui para outro caminho, mas o arsenal ficou. Tenho o porão cheio de armas, se você quiser vê-las depois...

– Sim, sim. Gostaria. Você parece ter tido uma vida muito interessante.

– Tive. Tudo começou quando mamãe me colocou na máquina de lavar roupas por engano, junto com minhas fraldas, e só me retirou no fim do ciclo.

Não deixa de ser admirável e lamentável ao mesmo tempo uma sociedade tão prática que prevê o embaraço social e inventa maneiras de evitá-lo e precisa de acessórios para começar uma conversa.
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* Escritor. Colunista da ZH
Fonte: ZH on line, 30/07/2012
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Internet e Pós-Capitalismo

A convergência digital, a blogosfera e a comunicação compartilhada não ameaçam apenas a oligarquia da mídia corporativa. Também requerem um novo projeto para democratizar o jornalismo, e outros mecanismos para remunerar os produtores culturais
Antonio Martins

1.Nos últimos anos, graças a certas ferramentas tecnológicas, mas especialmente a algumas mudanças de paradigma, os antigos conceitos de liberdade de informação e propriedade intelectual estão sendo superados. Em seu lugar, surgem idéias como comunicação compartilhada, inteligência coletiva, fim da passividade do receptor, direito à intercomunicação. Essas mudanças têm enormes repercussões em nossa vida social, econômica, política e simbólica. Estão, por sua vez, relacionadas a sinais de que uma outra lógica de organização das sociedades – capaz de superar a que está baseada no lucro e na competição – é possível e necessária.
2.Um dos problemas-chaves a resolver é, precisamente, a produção de símbolos — arte, comunicação, literatura — num mundo em que a vida continua sendo comprada e vendida como mercadoria. Em outras palavras: se queremos que as obras culturais circulem e sejam apropriadas e recriadas por todos; se queremos fazer de cada ser humano um criador cultural, como remunerar o trabalho do artista? Como permitir que, sendo livre seu trabalho, possa ele alimentar-se, vestir-se, habitar, viajar, equipar-se – em suma, satisfazer suas múltiplas necessidades e desejos.
3.Um dos pontos essenciais para encontrar uma resposta foi oferecido em conferência pronunciada no ano passado, durante o Fórum Cultural Mundial, por Gilberto Gil. Vivemos num mundo em transição e em transe. São tão profundos quanto os que marcaram a passagem do mundo feudal à modernidade e geraram, entre outros fenômenos, o Renascimento europeu.
4. Alguns dos mecanismos sociais que marcaram a modernidade e representaram, em sua época, liberdade, transformaram-se em prisões. O ser humano medieval recuperou a moeda e ampliou os mercados para se libertar das relações obrigatórias e limitadas que o prendiam à terra, ao senhor, aos afazeres que haviam sido repetidos por seus ancentrais desde muitas gerações. A cidade e o mercado eram os espaços em que cada um podia oferecer livremente seu trabalho – ou seja, encontrar uma alternativa à obrigação de permanecer no feudo, trocando favores pessoais com o senhor, sempre subordinado, sempre sem liberdade de escolher seu próprio destino pessoal. A moeda era o que permitia a tal ser humano “livre” ganhar o mundo e comprar sua vida sem o limite dos vínculos de favor.

Quando os mercados, que o ser humano desenvolveu para se livrar do mundo feudal, passam a dominar seu criador

5. Ocorre que o mercado é, por natureza, um espaço marcado pela competição, pela desigualdade e por um tipo de alienação que leva à hipervalorização do produto e apagamento do produtor. Se produzo laranjas, ou fios de cobre mais baratos, serei o vencedor. O mercado ignora se meu vizinho é obrigado a lavrar terras mais áridas, ou se as relações sociais na fábrica em que trabalha são mais humanas. Algo muito semelhante se dava no mundo da indústria cultural, onde os padrões de belo, bom e agradável eram definidos por um sistema onde alguns grandes operadores tinham enorme poder de definir, por exemplo, que estilo de produção cinematográfica, ou que enfoque de cobertura midiática, tinham o poder de encantar ou convencer.
6.No terreno da produção simbólica, o período que vivemos é marcado por duas tendências contraditórias. Alguns fatores tendem a padronizar os produtos de forma cada vez mais intensa . Garantir a circulação de um jornal diário em papel, na escala e nos padrões de “qualidade” requeridos pelo mercado, exige investimentos de dezenas de milhões de reais. As produções cinematográficas tradicionais consomem uma parcela cada vez maior de seu orçamento com publicidade.
7.No entanto, dois fatores combinados têm servido como uma contra-tendência formidável, que questiona a própria idéia de mercantilização da produção simbólica. A primeira é tecnológica: a internet começou, a vários anos, a erodir a receita da indústria cultural. Primeiro, veio o compartilhamento de música, sem contrapartida financeira. Depois – e ainda mais interessante e transformador – surgiram as possibilidades não apenas de trocar o que já está pronto, mas de criar em conjunto, a partir de múltiplos pontos do planeta.
8. Estes enormes passos tecnológicos teriam pouco sentido e efeito se não coincidissem com um profundo mal-estar em relação aos paradigmas que marcaram a modernidade – em especial a mercantilização do mundo. Tem crescido – o Fórum Social Mundial é expressão disso – a consciência de que o mercado, embora surgisse como uma ferramenta de libertação do ser humano, se não cotrolado, domina seu criador. Já não somos o que somos, mas o que compramos. O mais interessante é que surgem, em paralelo, alternativas. Afirma-se a lógica dos direitos. Debate-se, nos Fóruns Sociais, a idéia de que certos bens e serviços, necessários para assegurar vida digna, devem ser oferecidos a todos os seres humanos do planeta, independentemente de sua capacidade de pagar por eles. Acesso à terra, água potável, eletricidade, renda básica da cidadania, saúde de qualidade, educação, internet, bens culturais. A lista vai se refinando, felizmente, e é possível vislumbrar o dia em que essa lógica se desdobrará no direito a viajar para ter contato com novas culturas, ou no direito à psicanálise.

Tecnologia é fator secundário. Conhecimento livre é movido pela busca de nova lógica social e desencanto com oligopólio das narrativas

9. É precisamente nesse contexto que surgem o direito à intercomunicação, a inteligência coletiva, o fim da passividade do receptor, o conhecimento livre. Graças à tecnologia — mais especialmente à busca de um mundo organizado segundo uma nova lógica social —, está se esfacelando um dos grandes instrumentos de dominação da era capitalista: o oligopólio das narrativas e discursos. Embora partidária do neoliberalismo, a revista Economist apontou, num estudo publicado em meados de 2006, que está se encerrando a era da comunicação de massa. Iniciada com a invenção dos tipos móveis, por Gutemberg, ela foi marcada pela produção de um volume cada vez mais maciço de bens simbólicos, por um número cada vez mais reduzidos de emissores. Em seu lugar, está surgindo a era da comunicação pessoal e participativa. Sua marca será o poder que uma parcela cada vez maior da humanidade terá para se livrar da condição de mero consumidor, e tornar-se, também, produtor de bens simbólicos. As transformações serão tão profundas que Economist chega a prever o fim do jornal diário impresso, ainda na primeira metade do século atual.
10. A mudança de paradigma, extremamente positiva, cria dois problemas complexos. O primeiro é a necessidade de recriar espaços públicos de debate, para evitar que a multiplicação dos produtores de conteúdo gere apenas um caos multifônico. O fato de cada ser humano ser um produtor de narrativas e discursos não deve significar que cada um se satisfaça consigo mesmo e dispense o diálogo. Nesse caso, estaríamos diante de uma nova forma de incomunicação e alienação. Para evitar o risco, é importante criar outros nós na grande rede, certos lugares onde os produtores de símbolos se encontram, se reconhecem e estabelecem trocas. Isso não se faz de forma piramidal, nem com base em relações mercantis, nem sob a batuta de um editor todo-poderoso – mas a partir de recortes e pontos de vista compartilhados por uma comunidade. No Brasil, um exemplo desbravador é o site de jornalismo cultural Overmundo. Centenas de leitores, muitos dos quais mantêm seus próprios blogs, ou produzem vídeo ou áudio – ou seja, já são produtores de conteúdo cultural – sentem-se atraídos para contribuir também para o Overmundo. Por que surgiu um nó, onde é possível estabelecer diálogos mais amplos. Lançado em outubro, o Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique persegue um objetivo semelhante, no terreno do pensamento crítico e da busca de alternativas políticas. Num primeiro momento, ela reunirá colaboradores já reconhecidos por sua capacidade de análise, ou por atuar em iniciativas transformadoras e refletir sobre elas. Numa segunda etapa, como em Overmundo, a participação estará aberta a qualquer leitor que se tenha pontos de vista relevantes a expressar.

Uma possibilidade radical: desmercantilizar o trabalho humano, desvinculando o direito à vida digna de um emprego assalariado

11. O segundo grande desafio é o da remuneração e sobrevivência dos novos produtores de símbolos. De certa maneira, a liberdade de conhecimento e de produção cultural é profundamente utópica, no melhor sentido do termo: o de antecipar um futuro possível. Ela aponta para a possibilidade da desmercantilização mais radical: a do próprio trabalho humano. Produzir comunicação, cultura ou arte não deve ser algo que dependa de remuneração, mas um prazer e algo inerente à própria condição humana. Outras atividades, cada vez mais numerosas, deveriam ter o mesmo status: cuidar da natureza, educar as crianças, mostrar nossa cidade a visitantes que não a conhecem. No caso de muitas outras atividades, o desenvolvimento da tecnologia poderia ser visto como um alívio, não como um drama – desde que houvesse outras relações sociais. Se novas máquinas permitem fabricar computadores empregando muito menos operários, ou se é possível automatizar a coleta de lixo, isso não deveria ser visto como ameaça de desemprego, mas como redução do tempo de trabalho, eliminação das tarefas humanas mais penosas e desagradáveis. A condição é nos dispormos a imaginar a ultrapassagem da sociedade-mercadoria e do trabalho-mercadoria. Uma decisão-chave é reconhecer que, na época em que vivemos, a garantia de uma vida digna não pode mais estar associada a um emprego remunerado. Por isso, é tão decisivo o debate sobre a criação de uma Renda Cidadã internacional – e mesmo medidas muito tímidas nesta direção, como o Bolsa-família brasileiro merecem todo apoio.
12. Mas como viveremos nós, enquanto continuarmos imersos nas relações capitalistas? Em primeiro lugar, é preciso afastar a idéia de que uma nova sociedade pode ser construída num único ato, a partir do qual as relações sociais transformam-se por encanto. Durante muito tempo, teremos de ampliar o espaço das relações de solidariedade e compartilhamento, estando, contudo, obrigados a aceitar as relações de mercado, a vender nossa capacidade de produzir bens simbólicos. Uma grande arte haverá em equilibrar esses dois aspectos de nossa vida social.
13. Isso exige, ao mesmo tempo, imaginar e testar desde agora novas relações. Se o trabalho necessário para produzir Overmundo é remunerado graças ao apoio de uma empresa pública, mediante patrocínio, devemos ter a ousadia de debater com a sociedade que se trata de uma relação muito mais avançada que vender o conteúdo do site aos que podem pagá-lo.
14. No Brasil, uma importantíssima janela de oportunidades em favor da comunicação compartilhada e de novos mecanismos de remuneração dos produtores culturais está se abrindo, há vários meses. Certas atitudes políticas adotadas quase em bloco pelo oligopólio que controla a mídia provocaram um grave desgaste de sua legitimidade, principalmente entre a parcela mais esclarecida e politizada de sua audiência. Surgiram, em paralelo, sinais de articulação embrionária entre publicações e produtores de conteúdo que atuam na blogosfera, o que poderia ser, no futuro, uma rede – horizontal e não-hierárquica – de novas iniciativas de comunicação independente.

Tiro pela culatra: o oligopólio da mídia tenta manipular duas vezes a opinião pública, e sai com credibilidade arranhada

15. Em pelo menos dois episódios, a mídia comercial tentou manipular acontecimentos importantes, servindo-se do controle que julgava ter sobre a opinião pública para produzir fatos políticos que interessavam a si própria e às correntes políticas com quem se identifica. Às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais de 2006, ela envolveu-se com a campanha do candidato conservador, e com setores da Polícia Federal, para produzir ilegalmente fotos, que foram apresentadas como comprometedoras de outro candidato – o então presidente da República, que acabou se reelegendo. Mais tarde, no primeiro semestre de 2007, o oligopólio tentou tirar proveito de uma tragédia – um desastre aéreo com 200 mortes – para fabricar apressadamente uma suposta causa (problemas na pista do aeroporto de Congonhas), responsabilizar o governo federal e vitaminar um movimento de oposição de direita liderado por grandes empresários, auto-denominado “Cansei”.
16. Em ocasiões anteriores, campanhas promovidas em bloco pelo oligopólio foram capazes de sensibilizar a sociedade e produzir os efeitos desejados.

 [1] Para ficar apenas em dois exemplos: por meio de campanhas semelhantes, o oligopólio obteve, em 2002, a inviabilização da candidatura presidencial de Roseana Sarney, então líder nas pesquisas de opinião pública; e conseguiu abortar, em 2004, a criação do Conselho Nacional de Jornalismo e da Agência Nacional de Cinema e Audivisual

[2] Vale a pena ler, em especial, a reportagem em que Raimundo Pereira (em Carta Capital) descreve a construção, pela mídia e pela candidatura de Geraldo Alckmin, de uma versão que comprometia Lula, no chamado “escândalo da compra do dossiê”.
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Fonte: http://www.outraspalavras.net/muito-alem-de-gutenberg/
Imagem da Internet

O retorno dos filósofos comunistas

 Santiago Zabala*

Empobrecimento, desigualdade e declínio das velhas democracias estão levando pensadores a dialogar 
com face anti-estatista, radical e libertária do marxismo 
Ler Marx e escrever sobre Marx não faz de ninguém comunista, mas a evidência de que tantos importantes filósofos estão reavaliando as ideias de Marx com certeza significa alguma coisa. Depois da crise econômica global que começou no outono [nórdico] de 2008, voltaram a aparecer nas livrarias novas edições de textos de Marx, além de introduções, biografias e novas interpretações do mestre alemão.
Por mais que essa ressurreição [2] tenha sido provocada pelo derretimento financeiro global, para o qual não faltou a empenhada colaboração de governos democráticos na Europa e nos EUA, esse ressurgimento [3] de Marx entre os filósofos não é consequência nem simples nem óbvia, como creem alguns. Afinal, já no início dos anos 1990s, Jacques Derrida [4], importante filósofo francês, previu que o mundo procuraria Marx novamente. A previsão certeira apareceu na resposta que Derrida escreveu a uma autoproclamada “vitória neoliberal” e ao “fim da história” inventados por Francis Fukuyama.
Contra as previsões de Fukuyama, o movimento Occupy e a Primavera Árabe demonstraram que a história já caminha por novos tempos e vias, indiferente aos paradigmas econômicos e geopolíticos sob os quais vivemos. Vários importantes pensadores comunistas (Judith Balso, Bruno Bosteels, Susan Buck-Mors, Jodi Dean, Terry Eagleton, Jean-Luc Nancy, Jacques Rancière, dentre outros), dos quais Slavoj Zizek é o que mais aparece, já operam para ver e mostrar como esses novos tempos são descritos em termos comunistas, quer dizer, como alternativa radical.
O movimento acontece não só em conferências de repercussão planetária em Londres [5], Paris [6], Berlin [7] e New York [8] (com participação de milhares de professores, alunos e ativistas) mas também na edição de livros que se convertem em best-sellers globais como Império [9] de Toni Negri e Michael Hardt, A Hipótese Comunista [10] de Alain Badiou e Ecce Comu [11] de Gianni Vattimo, dentre outros. Embora nem todos esses filósofos apresentem-se como comunistas – não, com certeza, como o mesmo tipo de comunista –, a evidência de que o pensamento comunista está no centro de seu trabalho intelectual autoriza a perguntar por que há hoje tantos filósofos comunistas tão ativos.

A ressurgência do marxismo
Evidentemente, nessas conferências e nesses livros, o comunismo não é proposto como programa para partidos políticos, para que reproduzam regimes historicamente superados; é proposto como resposta existencial à atual catástrofe neoliberal global.
A correlação entre existência e filosofia é constitutiva, não só da maioria das tradições filosóficas, mas também das tradições políticas, no que tenham a ver com a responsabilidade sobre o bem-estar existencial dos seres humanos. Afinal, a política não é apenas instrumento posto a serviço da vida burocrática diária dos governos. Mais importante do que isso, a política existe para oferecer guia confiável rumo a uma existência mais plena. Mas quando essa e outras obrigações da política deixam de ser cumpridas pelos políticos profissionais, os filósofos tendem a tornar-se mais existenciais, vale dizer, tendem a questionar a realidade e a propor alternativas.
Foi o que aconteceu no início do século 20, quando Oswald Spengler, Karl Popper e outros filósofos começaram a chamar a atenção para os perigos da racionalização cega de todos os campos da atividade humana e de uma industrialização sem limites em todo o planeta. Mas a política, em vez de resistir à industrialização do homem e da vida humana, limitou-se a seguir uma mesma lógica industrial. As consequências foram devastadoras, como todos já sabemos.
Hoje, as coisas não são essencialmente diferentes, se se consideram os efeitos igualmente calamitosos do neoliberalismo. Apesar do discurso triunfalista do neoliberalismo, a crise das finanças globais neoliberais do início do século 21 serviu para mostrar que nunca as diferenças de bem-estar material foram maiores ou mais claras que hoje: 25 milhões de pessoas passam a viver, a cada ano, em favelas urbanas; e a devastação dos recursos naturais do planeta já provoca efeitos assustadores em todo o mundo, tão devastadores que, em alguns casos, já não há remédio possível.
Por isso tudo, relatório recente do ministério da Defesa da Grã-Bretanha [12] previa, além de uma ressurgência de “ideologias anticapitalistas, possivelmente associadas movimentos religiosos, anarquistas ou nihilistas, também movimentos associados ao populismo; além do renascimento do marxismo”. Essa ressurgência do marxismo é consequência direta da aniquilação das condições de existência humana resultantes do capitalismo neoliberal como o conhecemos.

O que é “comunismo”?
Por mais que a palavra “comunista” tenha adquirido inumeráveis significados distintos, ao longo da história, na opinião pública atual ela significa uma relíquia do passado e é associada a um sistema político cujos componentes culturais, sociais e econômicos são todos controlados pelo estado.
Por mais que talvez seja o caso na China, Vietnã ou Coreia do Norte, para a maioria dos filósofos e pensadores contemporâneos esse significado é insuficiente, está superado, é efeito de propaganda maciça e, sobretudo, é diariamente desmentido pela evidência de que o mundo não estaria vivendo uma “ressurgência” do marxismo, se o comunismo marxista fosse apenas isso.
Como diz Zizek, o comunismo de estado não funcionou, não por fracasso do comunismo, mas por causa do fracasso das políticas antiestatizantes: porque não se conseguiu quebrar as limitações que o estado impôs ao comunismo, porque não se substituíram as formas de organização do estado por forma ‘diretas’ não representativas de auto-organização social.”
O comunismo, como ideário antiestatizante das oportunidades realmente iguais para todos, é hoje a melhor hipótese, ideia e guia  para os movimentos políticos libertários antipoder, como os que nasceram dos protestos em Seattle (1999), Cochabamba (2000) e Barcelona (2011).
Por mais que esses movimentos lutem em nome de causas e valores específicos e diferentes entre si (contra a globalização econômica desigualitária, contra a privatização da água, contra políticas financeiras danosas), todos lutam contra o mesmo adversário: o sistema de distribuição não igualitária da propriedade, em democracias organizadas pelos princípios impositivos do capitalismo.
Como o demonstram a pobreza sempre crescente e o inchaço das favelas, este modelo deixou para trás todos os que não foram “bem-sucedidos” segundo suas regras, produzindo novos comunistas.

Comunismo e democracia
Em resumo, enquanto Negri e Hardt [13] buscam no “comum” (quer dizer, nos modos pelos quais a propriedade pública imaterial pode ser propriedade dos muitos), e Badiou busca nas insurreições (em ações como a da Comuna de Paris) [14], a possibilidade de se alcançarem “formas de auto-organização” não estatais, quer dizer, a possibilidade de formas comunistas, Vattimo (e eu) [15] sugerimos que todos examinemos os novos líderes democraticamente eleitos na Venezuela, Bolívia e outros países latino-americanos.[16]
Se esses líderes conseguiram chegar ao governo e começar a construir políticas comunistas sem insurreições violentas, não foi por terem chegado ao mundo político armados por fortes conteúdos teóricos ou programáticos; mas por suas fraquezas.
Diferente da agenda pregada pelo “socialismo científico”, o comunismo “fraco” (também chamado “hermenêutico” [17]) abraçou não só a causa ecológica [18] do de-crescimento, mas também a causa da decentralização do sistema burocrático estatal, de modo a permitir que se constituam conselhos independentes locais, que estimulam o envolvimento das comunidades.
Que ninguém se surpreenda se muitos outros filósofos, atraídos para o comunismo pelas ações e políticas de destruição da vida do neoliberalismo, também vislumbrarem a alternativa [19] que se constrói na América Latina. Especialmente, porque as nações latino-americanas demonstraram que os comunistas podem ter acesso ao poder também pelas vias formais da democracia.

Notas: 
[9] Império, 2005, Rio de Janeiro: Ed. Record, 501 p.
[10] A hipótese comunista, 2012, São Paulo: Boitempo Editorial, 152 p.
[17] Hermenêutico: adj. Relativo à interpretação dos textos, do sentido das palavras. (…) 3) Rubrica: semiologia. Teoria, ciência voltada à interpretação dos signos e de seu valor simbólico. Obs.: cf. semiologia  4) Rubrica: termo jurídico. Conjunto de regras e princípios us. na interpretação do texto legal (…). Etimologia: gr. herméneutikê (sc. tékhné) ‘arte de interpretar’ < herméneutikós,ê,ón ’relativo a interpretação, próprio para fazer compreender’ [NTs, com verbete do Dicionário Houaiss, emhttp://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=hermen%EAutica&cod=101764]
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* Santiago Zabala é pesquisador e professor de filosofia da Institució Catalana de Recerca i Estudis Avançats, ICREA[1], da Universidade de Barcelona. É autor, dentre outros trabalhos, de The Hermeneutic Nature of Analytic Philosophy (2008), The Remains of Being (2009), e, mais recentemente, com G. Vattimo, Hermeneutic Communism (2011), todos publicados pela Columbia University Press. 
Na Al Jazeera | Tradução: Vila Vudu
Fonte:  http://www.outraspalavras.net/2012/07/30/o-retorno-dos-filosofos-comunistas/

domingo, 29 de julho de 2012

Um herói para os ricos

ADEUS, REVOLUÇÃO O herói alia-se à polícia para trazer a paz social de volta a Gotham City (Foto: divulgação)

ADEUS, REVOLUÇÃO
O herói alia-se à polícia para trazer a paz social de volta a Gotham City (Foto: divulgação)

O último filme da trilogia de Christopher Nolan opõe Batman às manifestações em Wall Street

GUILHERME PAVARIN E MARCELO BERNARDES
O ator inglês Christian Bale veste bem os ternos Armani que simbolizam os anos de prosperidade de Wall Street. Em 2000, no filme O psicopata americano, ele foi o investidor yuppie Patrick Bateman. Narcisista e violento, o personagem se tornou o símbolo perverso dos Estados Unidos do final dos anos 1980, quando a prosperidade econômica do governo Ronald Reagan impulsionava as Bolsas de Valores e produzia milionários da noite para o dia.
Agora, com O cavaleiro das trevas ressurge, que estreia no dia 27 nos cinemas brasileiros, Bale volta a vestir ternos elegantes, mas num cenário econômico distinto. Na pele do bilionário Bruce Wayne, ele depara com uma população inflamada pela desigualdade social. Cidadãos ressentidos são atraídos pelo vilão Bane (Tom Hardy), um terrorista carismático que alicia a multidão para seu projeto de destruição de Gotham City com um discurso ao mesmo tempo populista e intimidador. Sob o comando de Bane, a cidade vive uma espécie de revolução criminosa, com julgamentos e execuções sumários, expropriações e acerto de contas social.
A história fictícia tem correspondência no mundo real. Trata-se de uma parábola dos embates sociais que se estenderam pelo fim do ano passado no Parque Zuccotti, em Nova York, próximo a Wall Street – não por coincidência, vizinho ao local escolhido para as filmagens. O personagem Bruce Wayne, mesmo meio falido, faz parte do 1% de ricos e milionários que foram alvo dos protestos Ocupe Wall Street. Os 99% excluídos de Gotham ficam na sombra, assustados, ou se aliam aos criminosos que dominam a cidade. Formam uma massa confusa e amorfa, que requer proteção e comando. Batman, a sua maneira inarticulada e muscular, é o líder conservador que detém a revolução e restaura a ordem. Um legítimo representante da elite econômica e moral da cidade.
Para fazer este Batman, Nolan se inspirou num livro de Charles Dickens sobre a Revolução Francesa 
O conflito social é o motor do filme, o último de uma trilogia iniciada em 2005. A nova Mulher Gato, interpretada por Anne Hathaway, veio de baixo na pirâmide. Filha de operários, ela rouba e seduz milionários idiotas, movida por um vago propósito social. Seu lema é fazer os abastados se arrepender de seus excessos. “Ela se encaixa perfeitamente em nosso universo de personagens sombrios”, disse a ÉPOCA a produtora Emma Thomas, mulher do diretor Christopher Nolan. “Você nunca sabe de que lado ela está.” Numa das cenas mais simbólicas do filme, durante um baile de gala, ela encosta a boca vermelha e sensual no ouvido de Wayne e sussurra: “Há uma tempestade chegando. Quando ela nos atingir, vocês não entenderão como puderam viver com tanta largueza e deixar tão pouco para o resto de nós”. A frase poderia ter saído de um poema militante de Bertold Brecht. Para frear a avalanche criminosa e social, Batman, pela primeira vez, se alia oficialmente à polícia. A mensagem é clara: o Homem Morcego e a Justiça representam as forças capazes de vencer o mal, encarnado pelo ativismo social.
Nolan, o diretor do filme, diz que sua principal influência para o roteiro foi o romance Um conto de duas cidades, de 1859, do britânico Charles Dickens. O livro, ambientado na Revolução Francesa de 1789, acompanha o impacto dos acontecimentos históricos sobre a vida de personagens que pertencem a diferentes grupos sociais – o aristocrata, o malandro, o miserável... As multidões, ora inflamadas, ora submissas, conferem o pano de fundo contra o qual a trama se desenrola. Da mesma forma, Nolan tentou fundir a complexidade das lutas e dos interesses sociais aos dilemas morais e afetivos de seus personagens. Em alguns momentos, com a ajuda de atores como Michael Caine, Batmam ganha tons quase shakespearianos.
Com ele, Nolan se consagra como o diretor que melhor traduziu o personagem dos quadrinhos para o cinema. Foi o único capaz de captar a essência violenta e triste do Homem Morcego. Traz, ao mesmo tempo, realismo e modernidade para suas histórias. Agora, com O cavaleiro das trevas ressurge, ele acrescentou a isso tudo um toque de profundidade que o maniqueísmo original dos quadrinhos não tinha. Um Oscar para premiar a trilogia, e seu imenso sucesso comercial, não seria nenhuma surpresa.

A reinvenção de Batman
As inovações que fizeram da trilogia de Nolan um sucesso
A reinvenção de Batman (Foto: divulgação (3) e The Kobal Collection)
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Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Mente-aberta/noticia/2012/07/um-heroi-para-os-ricos.html
 

Dan Shechtman: “Empresas de tecnologia ajudam a salvar o mundo”

A QUÍMICA CERTA Dan Shechtman no Instituto de Tecnologia de Israel. Ele ganhou o Prêmio Nobel de Química, mas prefere dar aulas sobre a criação de empresas de tecnologia (Foto: divulgação/Nobel)

O ganhador do Nobel de Química de 2011 deu aulas sobre como criar negócios a 10 mil alunos em Israel – e incentiva outros países a fazer o mesmo

GRAZIELE OLIVEIRA
 

Cyrus Smith estava numa situação terrivelmente infeliz, perdido numa ilha desconhecida. Graças a seus conhecimentos de engenharia e ciências, ele e os companheiros conseguiram fabricar ferramentas, construir diques, plantar, erguer casas e sobreviver. Além de todos esses feitos fictícios, Smith – protagonista do livro A ilha misteriosa, do escritor francês Júlio Verne – serviu de inspiração ao menino israelense Daniel Shechtman. O jovem leitor cresceu, estudou engenharia mecânica, tornou-se doutor em ciência dos materiais e, em 2011, ganhou o Prêmio Nobel de Química. Sua pesquisa revelou uma nova forma de organização dos átomos em materiais sólidos, os quase cristais, descobertos em 1982. Hoje, discute-se a aplicação desse tipo de material em várias frentes, como utensílios de cozinha e equipamentos eletrônicos. Shechtman precisou defender sua descoberta por anos, diante de ataques duríssimos de outros especialistas em sua área. Em 2009, a comunidade científica se convenceu de seus argumentos.
Ao longo dessa jornada vitoriosa, ele encontrou tempo para aplicar o estilo “mão na massa” de seu herói Cyrus Smith a outra paixão: o estudo das empresas inovadoras. Desde 1986, Shechtman ministra um curso de empreendedorismo tecnológico no Instituto de Tecnologia de Israel, o Technion, em Haifa, mesmo local onde começou a estudar engenharia. O Technion é a instituição de ensino e pesquisa mais importante de um país cujo desenvolvimento e segurança se apoia, principalmente, em tecnologia. No ranking global de inovação da escola de negócios francesa Insead, Israel aparece à frente de países como Coreia do Sul, França e Japão. Na Bolsa americana Nasdaq, Israel só perde, em número de empresas listadas, para Estados Unidos e China. Durante o programa desenvolvido por Shechtman, os alunos de ciência e engenharia assistem a palestras com empresários iniciantes, para saber as dificuldades que eles enfrentam, e aprendem noções de administração, marketing e propriedade intelectual. Ao tratar do assunto, Shechtman assume um tom quase messiânico. Ele acredita que quem abre um negócio próprio baseado em tecnologia não apenas prospera individualmente – também trabalha por uma sociedade melhor e pela paz global. Ele estará no Brasil no período de 22 de julho a 1º de agosto e passará por São Luís, Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal.

ÉPOCA – O senhor diz que a importância do empreendedorismo vai muito além da economia. Como assim?
Dan Shechtman –
Muitos países vivem da venda de matérias-primas, petróleo, minério, recursos não renováveis que, com o tempo, diminuirão e, eventualmente, desaparecerão. E, depois, o que esses países farão? Para ter outra fonte de receita, essas nações devem tentar desenvolver novos setores da economia e fabricar produtos tecnológicos que consigam vender – podem até ser produtos agrícolas, mas que exijam uso de tecnologia. Os países que fizerem isso encontrarão formas de dar um bom padrão de vida a todas as pessoas. Acredito que o empreendedorismo tecnológico é o caminho para manter a paz no mundo, porque as pessoas que trabalham duro para ganhar mais não querem desperdiçar isso numa guerra. Os países que não fizerem isso não prosperarão. Eles correm o risco de ver a qualidade de vida cair. Muitos desses países, em algum momento, começarão a desmoronar, e milhões e milhões de pessoas começarão a emigrar para as nações mais ricas. Como lidar com essa visão melancólica do futuro? Podemos resolver isso ao incentivar e ensinar o empreendedorismo tecnológico. Para que os cidadãos numa nação dediquem sua capacidade intelectual a projetar, fabricar e vender produtos inovadores, é necessário que o país crie as condições certas. Entre elas, encorajar a formação de engenheiros e cientistas, e encorajá-los a empreender.

"O governo não deve tentar controlar os projetos e as empresas. Ele tem de encorajar a criação dos negócios. Eles florescem de baixo para cima"
ÉPOCA – O senhor poderia se dedicar a ensinar e pesquisar química. Por que e como o senhor começou a tratar de empreendedorismo na universidade?
Shechtman –
Inaugurei há 26 anos o programa de aulas de empreendedorismo tecnológico no Technion, para ensinar os alunos a iniciar um negócio próprio. O programa começou por causa das necessidades em Israel e foi estimulado pelo crescimento das exportações israelenses de produtos de altíssima tecnologia. Encorajamos nossos alunos a pensar o futuro e a ser independentes. As boas universidades passam a mensagem: “Você é tão bom que as grandes empresas vão querer contratar você”. No Technion, a mensagem que transmitimos é: “Você é tão bom que pode abrir sua própria empresa tecnológica”. Cerca de 10 mil alunos formados já passaram pelo curso, e eles estão espalhados pelo país todo. Desde então, o bem-estar da população israelense aumentou dramaticamente, assim como a renda per capita. Isso é um incentivo às pessoas de outros países a também fazer algo assim. Alunos de outros países são bem-vindos ao curso.

ÉPOCA – O que há de tão especial no empreendedorismo tecnológico? Ele é mais importante que o empreendedorismo tradicional, como abrir uma loja ou um restaurante?
Shechtman –
Uma diferença é que o serviço de um restaurante, supermercado ou loja não pode ser exportado. E o empreendedorismo tecnológico é o melhor jeito de fabricar os produtos que abastecerão esses supermercados e essas lojas, de ganhar mais dinheiro com esses produtos e de fazer as pessoas gastar mais dinheiro com eles.

ÉPOCA – No Brasil, não funciona muito bem a transmissão de conhecimento entre as universidades e as empresas. Entre esses dois mundos, há divergências em relação a sigilo, objetivos, prazos, custos, patentes, divisão de lucros. O senhor tem uma sugestão para mudar isso?
Shechtman –
Normalmente, a pesquisa básica fica com a universidade, e a pesquisa aplicada fica com as empresas. Não acho que seja possível mudar a mentalidade das empresas – elas precisam defender sua propriedade intelectual. Isso é típico de companhias. Mas parte da pesquisa em que essas companhias se envolvem poderia ser aberta. Em alguns países, as companhias já perceberam que não podem fazer tudo sozinhas e que a academia pode contribuir com boas ideias.

ÉPOCA – Vários países tentam reproduzir o modo de funcionamento do Vale do Silício, nos Estados Unidos, com empresários, universidades e investidores trabalhando juntos, para incentivar o nascimento de empresas inovadoras. Mas a maioria dessas tentativas de imitação não vai muito longe. Por quê? O senhor acha que Israel também tenta reproduzir a estrutura do Vale do Silício?
Shechtman –
Os países que tentaram imitar o Vale do Silício adotaram iniciativas de cima para baixo, e ele não cresceu desse jeito. Temos um tipo de Vale do Silício em Israel, mas ele avançou de baixo para cima. O governo não deve se envolver nos projetos, deve apenas dar apoio para que os jovens corajosos criem suas empresas. O governo deve encorajar a criação de negócios, mas sem tentar controlar ou administrar as empresas. Não acho que Israel tenha tentado copiar o modelo (do Vale do Silício), mas estamos seguindo seus passos, uma vez que uma série de empreendedores israelenses começaram lá. Em Israel, há um grande espírito de empreendedorismo, com muitos engenheiros pensando diferente e sonhando com a companhia que podem fundar.

ÉPOCA – Israel tem muitas empresas de tecnologia. Por quê?
Shechtman –
Muitos dos jovens em Israel pensam ativamente no que podem fazer na ciência e na tecnologia. Talvez a conexão esteja no ambiente de pensamento claro, de boa comunicação entre as pessoas e na natureza israelense de questionar tudo. Os jovens não aceitam nada sem entender. Eles precisam entender tudo e perguntam muito.

ÉPOCA – O senhor também foi bem insistente ao defender a descoberta que o levou a ganhar o Nobel. Foi difícil continuar, mesmo depois de ser desacreditado por colegas cientistas?
Shechtman –
Pude defender meus resultados porque sabia que estava correto. Eu era o especialista no assunto, podia repetir os experimentos e provar os resultados. Apenas continuei dizendo: “Eu sei que estou certo”.
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Fonte: http://revistaepoca.globo.com/ideias/noticia/2012/07/dan-shechtman-empresas-de-tecnologia-ajudam-salvar-o-mundo.html

A internet é um barril de pólvora

Entrevista
Guerra ciberespacial

RESUMO CEO da maior empresa de antivírus do mundo alerta para a guerra cibernética atualmente em curso, capaz de derrubar serviços hospitalares, energéticos etc., e preconiza a criação de uma entidade global de segurança cibernética, como a Agência Internacional de Energia Atômica, para arbitrar as regras do jogo.
 
Eugene kaspersky era funcionário do Ministério da Defesa da então União Soviética, em 1989, quando seu computador corporativo foi infectado pelo vírus Cascade. A dor de cabeça despertou o interesse do jovem russo para esses programas maliciosos. Em 1997, deixou o emprego no governo e fundou a Kaspersky Lab.
Autodenominada a maior desenvolvedora de softwares de proteção de computadores do mundo, a companhia diz que seus produtos contra "malwares" -códigos maliciosos encontrados, por exemplo, na internet, tais como "worms" e cavalos de troia- têm mais de 300 milhões de usuários.
Foi a Kaspersky Lab que, em 2009, detectou quase por acaso o vírus Flame, que infectou a rede das centrífugas de urânio no Irã. Em junho, o jornal "Washington Post" revelou, citando fontes anônimas, que os EUA e Israel desenvolveram o vírus para prejudicar o programa nuclear iraniano.
Em entrevista à Folha, concedida por e-mail, Kaspersky, 46, prevê um "armagedon cibernético", uma guerra on-line capaz de pôr abaixo serviços essenciais, como eletricidade, hospitais e aeroportos, e propõe a criação urgente de uma organização internacional de segurança cibernética.
Folha - O sr. poderia explicar o que é o vírus Flame e como foi detectado? Por quanto tempo operou e que danos ainda pode causar?
Eugene Kaspersky - O Flame foi identificado por especialistas no Kaspersky Lab depois que a União Internacional de Telecomunicações [agência da ONU especializada na área] nos procurou para ajudar a identificar um "malware" que apagava informações importantes em todo o Oriente Médio.
Quando saímos em busca daquele código -conhecido como Wiper-, descobrimos um novo "malware", o worm.win32.flame. Os criadores do Flame mudaram as datas de criação dos arquivos para impedir que os investigadores descobrissem quando foram criados. Tinham datas como 1992, 1994, 1995, mas eram datas falsas.
Descobrimos que um módulo da versão do [virus do tipo "worm"] Stuxnet, o "Resource 207", que começou a circular no começo de 2009, era um "plug-in" [programa auxiliar] do Flame. Ou seja, quando o Stuxnet foi criado, a plataforma Flame já existia e o código-fonte de pelo menos um módulo do Flame foi usado no Stuxnet.
Em 2010, o módulo "plug-in" do Flame foi removido do Stuxnet e substituído por outros, que exploravam novas vulnerabilidades. De acordo com nossos dados, havia uso do Flame em agosto de 2010. Outros apontam circulação do Flame já em fevereiro ou março de 2010. É possível que antes disso existisse uma versão anterior. 

Em uma conferência sobre guerra cibernética, no começo de junho, em Tel Aviv, o sr. fez um alerta sobre os riscos de terrorismo digital, afirmando que ele poderia causar "o fim do mundo como o conhecemos". O que isso significa?
A evolução do "armagedon cibernético" vem seguindo a trajetória prevista. A internet não é mais um local para conhecer pessoas. Agora ela afeta as nossas vidas diretamente, por ser usada em todos os serviços vitais, como aeroportos, hospitais, bancos, polícia etc.
A infraestrutura de todo o planeta depende da internet. Não é mais brincadeira de criança. Alguém pode pregar uma peça inofensiva que pode ter consequências desastrosas. No futuro, poderemos ter falta de luz ou paralisações em hospitais por causa de algum "malware" aleatório ou, pior, em decorrência de um ato deliberado de guerra cibernética.
A questão não é se isso vai acontecer, mas quando. Pense no blecaute na região nordeste dos EUA, em 2003, na queda do voo 5022 da Spanair, em 2008, nos aviões militares não tripulados que perderam o controle ou na escassez de banda de internet da Coreia do Sul -todos esses incidentes foram causados por surtos de vírus. 

O terrorismo e a guerra cibernética se tornarão comuns? Há outros vírus como o Flame ou ainda piores?
As Forças Armadas de diversos países, como EUA, Índia, Reino Unido, Alemanha, França, China, Coreia do Sul e Coreia do Norte, estão criando unidades de guerra cibernética e armas para ela. Casos de espionagem industrial e atos de sabotagem também são de conhecimento público (vide as notícias sobre ataques patrocinados por nações, como o Stuxnet, o Duqu e, agora, o Flame).
Tudo isso é apenas a ponta do iceberg. Sempre que descobrimos um novo programa de infiltração, logo surgem as seguintes informações: o "malware" foi exposto por engano ou acidente; infestava diversas redes há algum tempo; e não temos como saber o que andou fazendo por lá. Muitas características técnicas do "malware" e a motivação de seus criadores continuam sendo um mistério.
Estamos sentados sobre um barril de pólvora e serrando o galho que sustenta toda a internet e, ao mesmo tempo, toda a infraestrutura do planeta. Aos poucos, os militares estão transformando a internet em um grande campo minado. Quanto mais se observa, mais assustadora a situação parece. 

O sr. citou EUA, Reino Unido, Israel, China, Rússia e, possivelmente, Índia, Japão e Romênia como países capazes de desenvolver o Flame. O sr. chegou a alguma conclusão sobre a autoria do vírus?
Não existem informações no código, nem de outras fontes, que permitam vincular o Flame a um Estado-nação. Por isso, seus autores continuam desconhecidos. 

O sr. disse que é necessário um esforço mundial para enfrentar o terrorismo cibernético. Como acha que isso deveria ser feito e quem deveria comandar o processo?
O mínimo que podemos fazer no momento é estabelecer as regras do jogo para o campo de batalha virtual, regulamentar o desenvolvimento e uso de armas cibernéticas, criar novas definições e ajustar as leis tradicionais de guerra.
É preciso urgentemente um equivalente cibernético da Agência Internacional de Energia Atômica, uma agência que coordene essas questões. Já existem duas organizações que anseiam por essa responsabilidade em nível mundial -a Unidade de Ação contra o Terrorismo, da ONU, e a Interpol, que planeja estabelecer, em 2014, uma divisão de policiamento cibernético sediada em Cingapura.
Também creio que alguma forma de organização internacional de segurança cibernética deveria ser criada para agir como plataforma independente para cooperação e promoção de tratados para evitar o uso de armas cibernéticas, além de regulamentar a segurança da infraestrutura essencial. Essa organização também seria responsável por investigar incidentes de ataques cibernéticos e pelo combate ao terrorismo na rede.
É claro que isso não eliminaria as armas cibernéticas, mas ao menos melhoraria a situação. As partes mais vulneráveis, ou seja, os países desenvolvidos com alto uso de internet, seriam beneficiados por uma organização como essa e, portanto, deveriam apoiá-la. 

Em geral, a guerra e o terrorismo cibernéticos são percebidos como problemas por países e empresas. Que riscos os usuários comuns enfrentam? De que forma se proteger?
O alvo das armas cibernéticas recentes são organizações, ainda que as vítimas do Flame variem de indivíduos a organizações ligadas ao Estado e instituições de ensino. Ou seja, os riscos afetam a todos e significam, para governos e Forças Armadas, perda de informações sigilosas; para empresas privadas, perda de propriedade intelectual; para indivíduos, tornarem-se parte de redes de espionagem.
A proteção contra essas ameaças é praticamente impossível para um usuário comum de computador. Mas existem alguns conselhos que podem melhorar a segurança das máquinas. Entre elas, usar um sistema operacional moderno como o Windows 7 ou o Mac OS X; quando possível, utilizar a versão em 64 bits do sistema, porque é mais resistente a ataques de "malwares"; manter atualizados tanto o sistema operacional quanto os softwares criados por terceiros; instalar e manter um pacote de segurança operacional decente; tomar cuidado ao abrir anexos de fontes desconhecidas, evitar divulgar informações pessoais em redes sociais e usar senhas fortes. 

O sr. se espantou com o filme "Duro de Matar 4.0", que aborda um ataque cibernético massivo aos EUA. O sr. se preocupa mais com o fato de o tabu sobre terrorismo cibernético ser exposto ou por ele ter sobrevivido por tanto tempo?
As ameaças de terrorismo cibernético e de guerra cibernética começaram a ser encaradas com seriedade no começo da década de 2000, mas foram pouco debatidas em público. Até que "Duro de Matar 4.0" foi lançado, em 2007.
Era fácil zombar do tema do filme, mas fiquei assustado. Na Kaspersky Lab, nós víamos o lado sério, porque entendíamos que nada impede que um cenário como aquele aconteça na vida real.
Depois de assistir ao filme, comecei a falar e a fazer alertas sobre o terrorismo cibernético, que se provaram precisos: a ameaça é real, não exagerei em nada. 

O que um país emergente como o Brasil pode fazer para se proteger contra o terrorismo cibernético?
Desdobramentos recentes, como Stuxnet, Duqu e Flame, demonstraram que mesmo sistemas supostamente seguros de infraestrutura industrial podem ser atacados. É quase impossível se proteger contra um ataque como esse. Seria preciso reescrever todo o software de sistemas vitais para protegê-los. Mas isso exigiria muito tempo e dinheiro, e temo que nenhum país possa investir um orçamento dessa ordem na proteção à tecnologia de informação.
O caminho é criar, como falei, uma organização internacional que controle as armas no ciberespaço. Ela adotaria estruturas semelhantes às de segurança nuclear de que dispomos, mas aplicadas ao ciberespaço. O ideal seria proclamar a internet uma zona desmilitarizada. Mas não estou seguro de que o desarmamento seja possível.
A oportunidade já foi perdida, os investimentos foram realizados, as armas foram criadas e a paranoia já existe. Mas os países precisam ao menos chegar a um acordo sobre regras e controles quanto às armas cibernéticas. 

Há quem diga que seus alertas são exagerados e o acuse de possível conflito de interesse. Como o sr. responde a elas?
É justo dizer que sou meio paranoico e que não penso muito antes de me pronunciar sobre meu medo de futuras catástrofes na internet ou sobre a cobiça e a degeneração dos vilões cibernéticos e a imensa ameaça que representam.
Mas basta que você se atenha aos fatos que expus acima. Os incidentes de espionagem industrial e os atos de sabotagem não são fantasias. Diversos países estão criando unidades especiais de guerra cibernética e isso não ocorre sem propósito. Devido à minha tendência a falar abertamente, sempre sou acusado de causar medo. Mas não me incomodo, ainda que as acusações sejam tolas.
Vou continuar dizendo o que precisa ser dito sem me importar com as críticas.

No futuro, poderemos ter falta de eletricidade ou paralisações em hospitais por causa de um "malware" aleatório ou, pior, em função de um ato deliberado de guerra cibernética
Estamos sentados sobre um barril de pólvora. Aos poucos, os militares estão transformando a internet em um campo minado. Quanto mais se observa, mais assustadora a situação parece
Depois de assistir a "Duro de Matar 4.0", comecei a falar e a fazer alertas sobre o terrorismo cibernético, que se provaram muito precisos: a ameaça é real e não exagerei em nada
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Reportagem de MARCELO NINIO
tradução
PAULO MIGLIACCI
Fonte: Folha on line, 29/07/2012
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