A convergência digital, a blogosfera e a comunicação
compartilhada não ameaçam apenas a oligarquia da mídia corporativa.
Também requerem um novo projeto para democratizar o jornalismo, e outros
mecanismos para remunerar os produtores culturais
Antonio Martins
1.Nos últimos anos, graças a certas ferramentas tecnológicas, mas
especialmente a algumas mudanças de paradigma, os antigos conceitos de
liberdade de informação e propriedade intelectual estão sendo superados.
Em seu lugar, surgem idéias como comunicação compartilhada,
inteligência coletiva, fim da passividade do receptor, direito à
intercomunicação. Essas mudanças têm enormes repercussões em nossa vida
social, econômica, política e simbólica. Estão, por sua vez,
relacionadas a sinais de que uma outra lógica de organização das
sociedades – capaz de superar a que está baseada no lucro e na
competição – é possível e necessária.
2.Um dos problemas-chaves a resolver é, precisamente, a produção de
símbolos — arte, comunicação, literatura — num mundo em que a vida
continua sendo comprada e vendida como mercadoria. Em outras palavras:
se queremos que as obras culturais circulem e sejam apropriadas e
recriadas por todos; se queremos fazer de cada ser humano um criador
cultural, como remunerar o trabalho do artista? Como permitir que, sendo
livre seu trabalho, possa ele alimentar-se, vestir-se, habitar, viajar,
equipar-se – em suma, satisfazer suas múltiplas necessidades e desejos.
3.Um dos pontos essenciais para encontrar uma resposta foi oferecido
em conferência pronunciada no ano passado, durante o Fórum Cultural
Mundial, por Gilberto Gil. Vivemos num mundo em transição e em transe.
São tão profundos quanto os que marcaram a passagem do mundo feudal à
modernidade e geraram, entre outros fenômenos, o Renascimento europeu.
4. Alguns dos mecanismos sociais que marcaram a modernidade e
representaram, em sua época, liberdade, transformaram-se em prisões. O
ser humano medieval recuperou a moeda e ampliou os mercados para se
libertar das relações obrigatórias e limitadas que o prendiam à terra,
ao senhor, aos afazeres que haviam sido repetidos por seus ancentrais
desde muitas gerações. A cidade e o mercado eram os espaços em que cada
um podia oferecer livremente seu trabalho – ou seja, encontrar uma
alternativa à obrigação de permanecer no feudo, trocando favores
pessoais com o senhor, sempre subordinado, sempre sem liberdade de
escolher seu próprio destino pessoal. A moeda era o que permitia a tal
ser humano “livre” ganhar o mundo e comprar sua vida sem o limite dos
vínculos de favor.
Quando os mercados, que o ser humano desenvolveu para se livrar do mundo feudal, passam a dominar seu criador
5. Ocorre que o mercado é, por natureza, um espaço marcado pela
competição, pela desigualdade e por um tipo de alienação que leva à
hipervalorização do produto e apagamento do produtor. Se produzo
laranjas, ou fios de cobre mais baratos, serei o vencedor. O mercado
ignora se meu vizinho é obrigado a lavrar terras mais áridas, ou se as
relações sociais na fábrica em que trabalha são mais humanas. Algo muito
semelhante se dava no mundo da indústria cultural, onde os padrões de
belo, bom e agradável eram definidos por um sistema onde alguns grandes
operadores tinham enorme poder de definir, por exemplo, que estilo de
produção cinematográfica, ou que enfoque de cobertura midiática, tinham o
poder de encantar ou convencer.
6.No terreno da produção simbólica, o período que vivemos é marcado
por duas tendências contraditórias. Alguns fatores tendem a padronizar
os produtos de forma cada vez mais intensa . Garantir a circulação de um
jornal diário em papel, na escala e nos padrões de “qualidade”
requeridos pelo mercado, exige investimentos de dezenas de milhões de
reais. As produções cinematográficas tradicionais consomem uma parcela
cada vez maior de seu orçamento com publicidade.
7.No entanto, dois fatores combinados têm servido como uma
contra-tendência formidável, que questiona a própria idéia de
mercantilização da produção simbólica. A primeira é tecnológica: a
internet começou, a vários anos, a erodir a receita da indústria
cultural. Primeiro, veio o compartilhamento de música, sem contrapartida
financeira. Depois – e ainda mais interessante e transformador –
surgiram as possibilidades não apenas de trocar o que já está pronto,
mas de criar em conjunto, a partir de múltiplos pontos do planeta.
8. Estes enormes passos tecnológicos teriam pouco sentido e efeito se
não coincidissem com um profundo mal-estar em relação aos paradigmas
que marcaram a modernidade – em especial a mercantilização do mundo. Tem
crescido – o Fórum Social Mundial é expressão disso – a consciência de
que o mercado, embora surgisse como uma ferramenta de libertação do ser
humano, se não cotrolado, domina seu criador. Já não somos o que somos,
mas o que compramos. O mais interessante é que surgem, em paralelo,
alternativas. Afirma-se a lógica dos direitos. Debate-se, nos Fóruns
Sociais, a idéia de que certos bens e serviços, necessários para
assegurar vida digna, devem ser oferecidos a todos os seres humanos do
planeta, independentemente de sua capacidade de pagar por eles. Acesso à
terra, água potável, eletricidade, renda básica da cidadania, saúde de
qualidade, educação, internet, bens culturais. A lista vai se refinando,
felizmente, e é possível vislumbrar o dia em que essa lógica se
desdobrará no direito a viajar para ter contato com novas culturas, ou
no direito à psicanálise.
Tecnologia é fator secundário. Conhecimento livre é movido pela
busca de nova lógica social e desencanto com oligopólio das narrativas
9. É precisamente nesse contexto que surgem o direito à
intercomunicação, a inteligência coletiva, o fim da passividade do
receptor, o conhecimento livre. Graças à tecnologia — mais especialmente
à busca de um mundo organizado segundo uma nova lógica social —, está
se esfacelando um dos grandes instrumentos de dominação da era
capitalista: o oligopólio das narrativas e discursos. Embora partidária
do neoliberalismo, a revista Economist apontou, num estudo publicado em
meados de 2006, que está se encerrando a era da comunicação de massa.
Iniciada com a invenção dos tipos móveis, por Gutemberg, ela foi marcada
pela produção de um volume cada vez mais maciço de bens simbólicos, por
um número cada vez mais reduzidos de emissores. Em seu lugar, está
surgindo a era da comunicação pessoal e participativa. Sua marca será o
poder que uma parcela cada vez maior da humanidade terá para se livrar
da condição de mero consumidor, e tornar-se, também, produtor de bens
simbólicos. As transformações serão tão profundas que Economist chega a
prever o fim do jornal diário impresso, ainda na primeira metade do
século atual.
10. A mudança de paradigma, extremamente positiva, cria dois
problemas complexos. O primeiro é a necessidade de recriar espaços
públicos de debate, para evitar que a multiplicação dos produtores de
conteúdo gere apenas um caos multifônico. O fato de cada ser humano ser
um produtor de narrativas e discursos não deve significar que cada um se
satisfaça consigo mesmo e dispense o diálogo. Nesse caso, estaríamos
diante de uma nova forma de incomunicação e alienação. Para evitar o
risco, é importante criar outros nós na grande rede, certos lugares onde
os produtores de símbolos se encontram, se reconhecem e estabelecem
trocas. Isso não se faz de forma piramidal, nem com base em relações
mercantis, nem sob a batuta de um editor todo-poderoso – mas a partir de
recortes e pontos de vista compartilhados por uma comunidade. No
Brasil, um exemplo desbravador é o site de jornalismo cultural
Overmundo. Centenas de leitores, muitos dos quais mantêm seus próprios
blogs, ou produzem vídeo ou áudio – ou seja, já são produtores de
conteúdo cultural – sentem-se atraídos para contribuir também para o
Overmundo. Por que surgiu um nó, onde é possível estabelecer diálogos
mais amplos. Lançado em outubro, o Caderno Brasil de Le Monde
Diplomatique persegue um objetivo semelhante, no terreno do pensamento
crítico e da busca de alternativas políticas. Num primeiro momento, ela
reunirá colaboradores já reconhecidos por sua capacidade de análise, ou
por atuar em iniciativas transformadoras e refletir sobre elas. Numa
segunda etapa, como em Overmundo, a participação estará aberta a
qualquer leitor que se tenha pontos de vista relevantes a expressar.
Uma possibilidade radical: desmercantilizar o trabalho humano, desvinculando o direito à vida digna de um emprego assalariado
11. O segundo grande desafio é o da remuneração e sobrevivência dos
novos produtores de símbolos. De certa maneira, a liberdade de
conhecimento e de produção cultural é profundamente utópica, no melhor
sentido do termo: o de antecipar um futuro possível. Ela aponta para a
possibilidade da desmercantilização mais radical: a do próprio trabalho
humano. Produzir comunicação, cultura ou arte não deve ser algo que
dependa de remuneração, mas um prazer e algo inerente à própria condição
humana. Outras atividades, cada vez mais numerosas, deveriam ter o
mesmo status: cuidar da natureza, educar as crianças, mostrar nossa
cidade a visitantes que não a conhecem. No caso de muitas outras
atividades, o desenvolvimento da tecnologia poderia ser visto como um
alívio, não como um drama – desde que houvesse outras relações sociais.
Se novas máquinas permitem fabricar computadores empregando muito menos
operários, ou se é possível automatizar a coleta de lixo, isso não
deveria ser visto como ameaça de desemprego, mas como redução do tempo
de trabalho, eliminação das tarefas humanas mais penosas e
desagradáveis. A condição é nos dispormos a imaginar a ultrapassagem da
sociedade-mercadoria e do trabalho-mercadoria. Uma decisão-chave é
reconhecer que, na época em que vivemos, a garantia de uma vida digna
não pode mais estar associada a um emprego remunerado. Por isso, é tão
decisivo o debate sobre a criação de uma Renda Cidadã internacional – e
mesmo medidas muito tímidas nesta direção, como o Bolsa-família
brasileiro merecem todo apoio.
12. Mas como viveremos nós, enquanto continuarmos imersos nas
relações capitalistas? Em primeiro lugar, é preciso afastar a idéia de
que uma nova sociedade pode ser construída num único ato, a partir do
qual as relações sociais transformam-se por encanto. Durante muito
tempo, teremos de ampliar o espaço das relações de solidariedade e
compartilhamento, estando, contudo, obrigados a aceitar as relações de
mercado, a vender nossa capacidade de produzir bens simbólicos. Uma
grande arte haverá em equilibrar esses dois aspectos de nossa vida
social.
13. Isso exige, ao mesmo tempo, imaginar e testar desde agora novas
relações. Se o trabalho necessário para produzir Overmundo é remunerado
graças ao apoio de uma empresa pública, mediante patrocínio, devemos ter
a ousadia de debater com a sociedade que se trata de uma relação muito
mais avançada que vender o conteúdo do site aos que podem pagá-lo.
14. No Brasil, uma importantíssima janela de oportunidades em favor
da comunicação compartilhada e de novos mecanismos de remuneração dos
produtores culturais está se abrindo, há vários meses. Certas atitudes
políticas adotadas quase em bloco pelo oligopólio que controla a mídia
provocaram um grave desgaste de sua legitimidade, principalmente entre a
parcela mais esclarecida e politizada de sua audiência. Surgiram, em
paralelo, sinais de articulação embrionária entre publicações e
produtores de conteúdo que atuam na blogosfera, o que poderia ser, no
futuro, uma rede – horizontal e não-hierárquica – de novas iniciativas
de comunicação independente.
Tiro pela culatra: o oligopólio da mídia tenta manipular duas vezes a opinião pública, e sai com credibilidade arranhada
15. Em pelo menos dois episódios, a mídia comercial tentou manipular
acontecimentos importantes, servindo-se do controle que julgava ter
sobre a opinião pública para produzir fatos políticos que interessavam a
si própria e às correntes políticas com quem se identifica. Às vésperas
do primeiro turno das eleições presidenciais de 2006, ela envolveu-se
com a campanha do candidato conservador, e com setores da Polícia
Federal, para produzir ilegalmente fotos, que foram apresentadas como
comprometedoras de outro candidato – o então presidente da República,
que acabou se reelegendo. Mais tarde, no primeiro semestre de 2007, o
oligopólio tentou tirar proveito de uma tragédia – um desastre aéreo com
200 mortes – para fabricar apressadamente uma suposta causa (problemas
na pista do aeroporto de Congonhas), responsabilizar o governo federal e
vitaminar um movimento de oposição de direita liderado por grandes
empresários, auto-denominado “Cansei”.
16. Em ocasiões anteriores, campanhas promovidas em bloco pelo
oligopólio foram capazes de sensibilizar a sociedade e produzir os
efeitos desejados.
[1]
Para ficar apenas em dois exemplos: por meio de campanhas semelhantes, o
oligopólio obteve, em 2002, a inviabilização da candidatura
presidencial de Roseana Sarney, então líder nas pesquisas de opinião
pública; e conseguiu abortar, em 2004, a criação do Conselho Nacional de
Jornalismo e da Agência Nacional de Cinema e Audivisual
[2] Vale a pena ler, em especial, a reportagem
em que Raimundo Pereira (em Carta Capital) descreve a construção, pela
mídia e pela candidatura de Geraldo Alckmin, de uma versão que
comprometia Lula, no chamado “escândalo da compra do dossiê”.
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Fonte: http://www.outraspalavras.net/muito-alem-de-gutenberg/
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