Entrevista Dagmar Herzog, 51
Consulado dos EUA/Divulgação |
A historiadora Dagmar Herzog, da Universidade da Cidade de Nova York |
Conservadores cristãos se apropriaram de parte do discurso da revolução sexual e a fizeram retroceder no país, diz acadêmica
CRISTINA GRILLO
DO RIO
DO RIO
Ao se apropriar de partes do discurso da revolução sexual, prometendo
prazeres ilimitados para aqueles que seguissem seus preceitos -como
condenar aborto, homossexualidade e sexo antes do casamento-,
evangélicos e católicos de correntes mais conservadoras nos EUA
conseguiram, em poucos anos, desfazer muito do que essa revolução havia
conquistado.
É o que afirma a historiadora Dagmar Herzog, 51, professora da
Universidade da Cidade de Nova York e autora de livros que analisam a
evolução da sexualidade.
"Nenhum movimento conservador consegue sucesso se for apenas
repressivo", afirma. Mas o que se tem hoje, diz Herzog, é uma juventude
muito mais desconfortável com sua sexualidade do que as gerações dos
anos 90.
Ao mesmo tempo, segundo ela, o discurso que incentiva a sexualidade
pós-casamento criou uma indústria de manuais de sexo cristão e de sex
shops online -"há até 'vibradores cristãos' à venda".
Herzog falou à Folha na semana passada no Rio.
Folha - Em seu livro, "Sex in Crisis" ("Sexo em crise", 2008, não
traduzido no Brasil) a senhora afirma que houve uma nova revolução
sexual nos EUA a partir dos anos 90, mas desta vez com viés conservador.
Como ela aconteceu?
Dagmar Herzog - O movimento pelos direitos religiosos, que surgiu
nos anos 90, se tornou um movimento sexualmente conservador. Tomou
conta das congregações cristãs nos EUA, excluiu pastores com ideias mais
liberais, levou ao Congresso legisladores mais conservadores e culminou
com a eleição de George W. Bush para a Presidência (2000-2009).
Esse movimento foi bem-sucedido em intimidar os democratas e a parcela
da população que sempre considerou como direitos líquidos e certos ter
acesso a meios de contracepção e que seus filhos tivessem aulas de
educação sexual nas escolas.
Foi um grande choque quando eles perceberam que os conservadores estavam
vencendo a batalha e que os liberais não conseguiam nem mesmo abrir a
boca para apresentar suas opiniões.
E como isso aconteceu?
Há três explicações. O movimento pelos direitos religiosos é, de certa
forma, o filho ilegítimo da revolução sexual dos anos 60 e 70, já que
também promete prazeres sexuais. Nenhum movimento conservador teria
sucesso hoje se fosse apenas repressivo. Tem que prometer prazer para
seus seguidores.
Os manuais de sexo cristão são bastante pornográficos e explícitos.
Prometem aos fiéis décadas de paraíso matrimonial desde que sigam
algumas regras. Basta ser contra homossexuais, aborto e sexo antes do
casamento.
Há vários sites que vendem produtos eróticos para cristãos [neles há
sempre a menção de que os produtos são indicados para casados, como
forma de "apimentar" a relação]. Há até vibradores.
Existe um mundo subterrâneo que se aproveita do discurso da revolução
sexual, mas fala do sexo de forma a lhe dar mais valor do que a esquerda
e os democratas.
Esse movimento também se apoderou de elementos do feminismo, como o
desconforto com a pornografia, com a prostituição, o desejo da mulher de
ser adorada e desejada por seus maridos. Dessa forma, falam de forma
muito inteligente às mulheres. Esse é o primeiro ponto: a promessa do
prazer.
Qual é o segundo ponto?
É o fato de que eles têm um linguajar secular. Não falando em Deus, mas
sim em saúde, bem-estar psicológico e autoestima, eles transformaram o
discurso nas escolas secundárias nos EUA.
Afirmam que, se alguém faz sexo antes do casamento, se usa pornografia,
tem baixa autoestima. Nesse discurso, os homossexuais ou têm baixa
autoestima ou vão criar filhos com baixa autoestima. Eles trouxeram
todos os seus conceitos religiosos para a linguagem da psicologia.
No discurso público, inclusive em sua campanha homofóbica, eles usam
argumentos seculares. Em sua luta contra o homossexualismo, focam no
conceito de que é algo sujo, vulgar, indecente e um perigo para as
crianças.
O que mais levou ao sucesso do movimento?
Eles atuam nos desejos mais profundos de aceitação e esperança que as
pessoas têm. A ansiedade que se tem de ser amado por toda a vida, de
manter a paixão ao longo do casamento, o sentimento de proteção dos
filhos.
Quando falam contra a pornografia, dizem: "Você quer ser amada pelo que
é, e não ter seu marido pensando em outra pessoa quando está com você". É
um raciocínio muito sofisticado, porque mexe com os sentimentos em seus
estágios mais primários.
O grande problema é que esse discurso não se dirigiu só àqueles
afiliados a essas igrejas, mas a todo o país. Eles conseguiram mudar a
forma como as aulas de educação sexual são ministradas.
Fizeram um trabalho terrível ao conseguir cortar verbas dos programas de
distribuição de preservativos e insistir no discurso da abstinência
sexual. No fim, implantaram um discurso moralista.
Como os jovens americanos de hoje lidam com o sexo?
A educação para a abstinência tomou conta de praticamente todo o país,
mas os adolescentes continuam a fazer sexo. Não ouvem aqueles que pregam
a abstinência. Talvez adiem um pouco o início da vida sexual, mas,
quando começam, o fazem sem proteção contra gravidez ou doenças. É um
problema.
E os pais desses jovens, de que forma lidam com a situação?
Estão tão histéricos com a sexualização precoce de seus filhos que
resistem à volta das aulas de educação sexual. O que temos é uma radical
deterioração, em comparação com os anos 90, da informação disponível
para os adolescentes. Os jovens dos anos 90 se sentiam muito mais
confortáveis com relação ao sexo do que os de hoje.
Há duas décadas, os pais encaravam sexo entre adolescentes como algo
normal. Ensinavam seus filhos sobre responsabilidade, amor, mas a
mudança na opinião pública levou à intimidação.
O mais duro é que as pessoas voltaram a sentir vergonha de falar sobre
sexo. Os pais se sentem, então, muito desconfortáveis para defender seus
pontos de vista, para si mesmos e para seus filhos.
Ficou muito difícil para pais pressionarem para que haja educação
sexual, porque os outros olham como se eles fossem sujos e perigosos.
Nesse quadro conservador, como ficam as meninas?
O maior problema tem sido a perda de poder das meninas. Se numa escola
se usa um par de tênis sujos e gastos como símbolo de virgindade
perdida, é claro que quem se sente mais fraco e vulnerável são as
meninas.
Há 20 anos eu dou aulas de história da sexualidade para jovens
universitários e vejo uma grande mudança. As jovens não estão mais
confortáveis, confiantes sobre o que querem ou não fazer. A confiança
foi danificada e precisa ser recuperada. Mesmo as congressistas
democratas passam por momentos difíceis porque ninguém quer falar
publicamente sobre sexo.
De que forma o outro lado tem reagido a essa onda conservadora? Ou não tem reagido?
A comunidade LGBT é extremamente organizada e tem feito um bom trabalho
lutando contra os conservadores, com slogans como "eu também quero me
casar" e "meus filhos são felizes e sabem que são amados". Hoje, 50% da
população é favorável ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que é
um grande avanço em relação ao que ocorria há cinco anos.
A intimidação agora mira nos direitos reprodutivos femininos. É onde
vemos o maior retrocesso. A discussão não é mais só sobre aborto, mas
também sobre o direito à contracepção.
Só nos últimos meses as mulheres voltaram a lutar. Lisa Brown, deputada
em Michigan, usou a palavra "vagina" na Assembleia estadual e foi
censurada, impedida de falar no plenário, o que causou uma série de
protestos.
[Em junho, a deputada fez um discurso contra um projeto que restringia
as condições para abortos e concluiu sua fala dirigindo-se aos
deputados: "Fico lisonjeada que todos vocês estejam tão interessados na
minha vagina, mas 'não' significa 'não'".]
É uma interferência nunca vista nos direitos das mulheres. Há uma crescente mobilização feminina, mas é difícil.
As pessoas estão tentando falar agora, mas os conservadores levam
vantagem porque se sentem mais confortáveis em defender seus pontos de
vista. Essa situação esteve presente na Rio+20, quando o tópico a
respeito dos direitos reprodutivos das mulheres foi excluído do
documento final por pressões religiosas.
Não sei como as mulheres podem aprender com o movimento LGBT, mas alguém
tem que ir a público e dizer que mesmo os casamentos monogâmicos
heterossexuais precisam de meios contraceptivos. É uma lição que
precisamos aprender: se eles foram criativos para montar o discurso
conservador, nós também precisamos ser criativos para lutar de volta.
Raio-X Dagmar Herzog
IDADE51 anos
PROFISSÃO
Professora catedrática de história do Centro de Estudos de Pós-Graduação da Universidade da Cidade de Nova York (Cuny)
ÁREAS DE ESTUDO
História política e intelectual da Europa moderna, identidade sexual, estudos de gênero, revolução sexual, homossexualidade, história da religião
OBRA PUBLICADA
"Sex in Crisis: the New Sexual Revolution and the Future of American Politics" ("Sexo em crise: a nova revolução sexual e o futuro da política americana", 2008), entre outras
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Fonte: Folha on line, 23/07/2012
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