segunda-feira, 23 de julho de 2012

A filosofia budista, seu sentido e significado

Michel Aires de Souza*


Farei uma reflexão sobre o budismo inspirada no texto “Simbolismo Budista” de  Daisetz Suzuki ao interpretar um haiku (haikai) de Basho.   Basho é um dos grandes poetas haiku do Japão setecentista, ele produziu este poema guando “seus olhos se abriram pela primeira vez para o significado poético e filosófico de haiku” (Suzuki, 1980, p. 56).
Oh, velho tanque!
Uma rã salta para dentro
O som da água!

          O que pensava o velho Basho?  Basho teve uma experiência filosófica, de espanto e perplexidade, uma experiência que está na raiz de todas as grandes filosofias. A partir de minha própria experiência explicarei a intuição de Basho e tentarei expor qual o sentido e significado do budismo.    
             Estava eu num paraíso natural, em plena serra do mar, numa praia deserta. Havia ali um tanque de água formando uma piscina natural. Estava sentado numa pedra absorvido pela beleza daquele ambiente.  O sol penetrava entre as árvores, a beleza de tudo era uma promessa de felicidade. Estava tão absorvido, que me sentia como o próprio tanque ou como uma daquelas pedras submersas na água. A água era tão límpida e imperturbada, o ambiente era tão calmo e silencioso, que eu me esqueci de mim mesmo.  De repente um peixe pula na superfície da água. O pulo do peixe criou uma série de pequenas ondas em formas de círculos concêntricos. Ele produziu um ruído leve. Num ambiente calmo e silencioso, o ruído mesmo tênue, fez-me despertar de minha meditação.  Eu não pensava em nada de tão absorvido que estava no tanque bordejante de arbustos e plantas aquáticas.   A vida parecia inexistente naquele ambiente. Foi preciso um ruído de um peixe para mostrar que ali havia dinamismo, força, movimento, vida. O tanque d’água passou a ter interesse, vitalismo, valor. Senti espanto diante de tudo aquilo.  O meu espanto foi existencial, percebi que realmente existo.
         Quando o peixe pulou do tanque, foi o momento de intuição intelectual, de percepção suprema de que a vida existe e de que eu existo. Antes eu estava tão absorvido pela contemplação, que não existia diferença entre mim e aquele ambiente, eu era o tanque e o tanque era eu.   Existia uma identificação entre mim e o tanque. Quando despertei do meu torpor, o tanque passou a ter realidade, dinamismo.  Aí estava todo seu valor.  Antes disso não existia nada, não existia um mundo objetivo.   Foi no momento em que eu escutei o ruído do peixe que as coisas passaram a ter um significado. A realidade não tinha existência até aquele momento. O peixe pulou da água e o mundo surgiu do Nada – ex nihilo.  É o sentimento de exaltação espiritual. O mundo existe! É um milagre!
           Basho teve essa mesma experiência. Sentiu perplexidade diante da existência. Foi o momento do despertar, ele se assustou e exclamou - Oh, velho tanque! A experiência de Basho é filosófica, pois ele sentiu espanto, perplexidade, se maravilhou com a possibilidade de algo existir. É esse sentimento que está na raiz de toda filosofia.
        Segundo Daisetz Suzuki,   a filosofia budista nos ensina que tudo é um. Eu o tanque, as plantas aquáticas, as árvores, a luz do sol, o peixe, somos um. O todo em um, o um no todo. Quando eu olhei o peixe no tanque, eu era o peixe e também o tanque. O peixe e o tanque era eu. Mas eu permaneci sendo eu, o peixe o peixe, o tanque o tanque, as árvores as árvores. Mas todos nós somos uma totalidade absoluta, uma identidade. O universo inteiro está naquele tanque, ele representa a totalidade infinita das coisas.  Na filosofia budista nada existe além do tanque d”água, ele é completo em si mesmo. Ele é toda a realidade cósmica.

 "O sofrimento surge, portanto dos desejos, 
afetos e paixões num mundo inconstante 
e instável.  Por se apegar 
aos objetos do mundo, 
sendo estes contingentes e 
impermanentes, o homem só 
experimenta o sofrimento 
 (Dukka)."

     Suzuki explica-nos que para a filosofia budista ser é significar. Tudo o que existe é um símbolo.  “O simbolismo budista declararia, portanto, que tudo é simbólico, comporta uma significação em si, tem valores próprios, existe por direito próprio e não aponta para qualquer outra realidade senão a que é intrínseca a cada coisa”  (Suzuki, 1980, p. 60).  O peixe, o tanque, as árvores e eu somos um símbolo. Tudo que existe têm um significado. Tudo é, porque existe em si mesmo, tem valor em si mesmo e não aponta para uma realidade diferente, não existe nada fora da própria realidade. As coisas não existem por causa de Deus.  Não existe uma realidade diferente das coisas.  
         A filosofia budista não é uma religião, nem um sistema ético, não é uma crença ou uma adoração, ela é antes de tudo uma prática voltada para a interioridade humana. É uma prática de autoconhecimento que busca a libertação.  Mas libertação do quê?  Libertação do sofrimento. O sentido mais próximo e imediato da vida é o sofrimento, pois compreender  a vida  em sua totalidade é compreendê-la em meio dor.  O filósofo  Arthur Schopenhauer, influenciado pelo budismo, compreendeu muito bem essa verdade. Segundo ele, “se o sentido mais próximo e imediato de nossa vida não é o sofrimento, nossa existência é o maior contra-senso do mundo.  Pois constitui um absurdo supor que a dor infinita, originária da necessidade essencial à vida, de que o mundo está pleno, é sem sentido e puramente acidental. Nossa receptividade para a dor é quase infinita, aquela para o prazer possui limites estreitos. Embora toda infelicidade individual apareça como exceção, a infelicidade em geral constitui a regra”  (Schopenhauer, 1974, p.122).
          O budismo é, portanto, o caminho para a libertação da dor inerente ao mundo, pois ela desperta o indivíduo para o conhecimento da verdadeira natureza dos seres e das coisas.  O budismo nos leva a ver a realidade como ela é, e não como parece ser. No universo não há nada permanente, o mundo é contingência,  com isso o homem experimenta uma realidade inconstante que lhe traz inquietação (Dukka). Da mesma forma, não existe Eu, não existe uma natureza humana acabada, fixa, permanente. O que existe de fato são sensações, percepções e memória. Eu tenho a experiência de que tenho um corpo, um cérebro, que sinto esse talher, sinto certas texturas, tenho a intuição do amarelo, azul, branco, vejo o horizonte. Tenho muitas impressões, eu vivencio muitas coisas, tenho a impressão de minhas mãos, meu pés, meu coração, mas quando procuro analisar meu eu, não o encontro. Sou levado a concluir que não há nenhuma vivência que me demonstre ser o eu. O eu não corresponde a nenhuma impressão. O eu parece ser uma ficção.
         Para o budismo o eu é uma ilusão da nossa consciência. A consciência nos possibilita a idéia de um mundo permanente, estável, onde ele possa prever o curso das coisas e dos acontecimentos. Para que isso seja possível o homem cria através da linguagem palavras para se comunicar, dando permanência, existência e realidade a coisas que não existem: Eu, Alma, Deus, Essência, Mal, Bem. Nada disso existe. O mundo é como é. O homem usa palavras procurando dar sentido ao mundo.  Para o budismo não existe Ser, o mundo é vir-a-ser.  A noção de Ser é a pedra angular que deu origem ao pensamento filosófico ocidental. Para o budismo este é um falso problema.   O que existe de fato é a impermanência de todas as coisas. Buda nos ensinou que “a natureza de todo o fenômeno, de toda aparência, é semelhante ao reflexo da lua na água”.  
          Num mundo onde tudo é impermanente, onde o Eu é uma ficção da nossa consciência, não podemos nos apegar a nada. A maioria dos homens buscam engrandecer o “Eu” buscando a fama, a glória, o dinheiro, os prazeres e não percebem que o motivo de seus sofrimentos está nessa inquietação. O sofrimento surge, portanto dos desejos, afetos e paixões num mundo inconstante e instável.  Por se apegar aos objetos do mundo, sendo estes contingentes e impermanentes, o homem só experimenta o sofrimento (Dukka).  Dessa forma, é só pela libertação dos desejos e paixões, ou seja pelo desapego,  que atingimos a libertação, a paz, a quietude. É o que Buda entende por Nirvana. A palavra Nirvana só pode ser compreendida intuitivamente, como quase tudo no budismo. Se apegar a conceitos é uma característica do  mundo ocidental, algo que é um grave erro, uma vez que os conceitos servem para dar permanência a algo impermanente. Os orientais são mais intuitivos, mais poéticos, souberam captar melhor o devir de todas as coisas. Se tivermos que necessariamente dar uma definição para a palavra Nirvana, devemos dizer que é a felicidade, a liberdade e a quietude.  
        Para o budismo, portanto, conhecer significa compreender que tudo no universo está conectado, que o “eu”, nem os fenômenos possui qualquer autonomia, que tudo é interdependente, tudo é impermanente. O universo com seu espaços infinitos é um vazio eterno, assim como toda realidade. O mundo não tem um sentido, todo sentido está no homem, somente ele pode colocar sentido nas coisas. Como afirmou buda “somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos pensamentos. Com nossos pensamentos, fazemos o nosso mundo”.

 Bibliografia
SCHOPENHAUER, Arthur. Parerga e Paraliponema. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
SUZUKI, Daisets T. Simbolismo Budista. In: Revolução na Comunicação, Org. Edmund Carpenter e Marshall Mcluham, Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 56-63.   
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* Professor.
Fonte: http://filosofonet.wordpress.com/author/filosofonet/

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