Michel Aires de Souza*
Farei
uma reflexão sobre o budismo inspirada no texto “Simbolismo Budista”
de Daisetz Suzuki ao interpretar um haiku (haikai) de Basho. Basho é
um dos grandes poetas haiku do Japão setecentista, ele produziu este
poema guando “seus olhos se abriram pela primeira vez para o significado
poético e filosófico de haiku” (Suzuki, 1980, p. 56).
Oh, velho tanque!
Uma rã salta para dentro
O som da água!
O que pensava o velho Basho? Basho teve uma experiência filosófica, de
espanto e perplexidade, uma experiência que está na raiz de todas as
grandes filosofias. A partir de minha própria experiência explicarei a
intuição de Basho e tentarei expor qual o sentido e significado do
budismo.
Estava eu num paraíso natural, em plena serra do mar, numa praia
deserta. Havia ali um tanque de água formando uma piscina natural.
Estava sentado numa pedra absorvido pela beleza daquele ambiente. O sol
penetrava entre as árvores, a beleza de tudo era uma promessa de
felicidade. Estava tão absorvido, que me sentia como o próprio tanque ou
como uma daquelas pedras submersas na água. A água era tão límpida e
imperturbada, o ambiente era tão calmo e silencioso, que eu me esqueci
de mim mesmo. De repente um peixe pula na superfície da água. O pulo do
peixe criou uma série de pequenas ondas em formas de círculos
concêntricos. Ele produziu um ruído leve. Num ambiente calmo e
silencioso, o ruído mesmo tênue, fez-me despertar de minha meditação.
Eu não pensava em nada de tão absorvido que estava no tanque bordejante
de arbustos e plantas aquáticas. A vida parecia inexistente naquele
ambiente. Foi preciso um ruído de um peixe para mostrar que ali havia
dinamismo, força, movimento, vida. O tanque d’água passou a ter
interesse, vitalismo, valor. Senti espanto diante de tudo aquilo. O meu
espanto foi existencial, percebi que realmente existo.
Quando o peixe pulou do tanque, foi o momento de intuição intelectual,
de percepção suprema de que a vida existe e de que eu existo. Antes eu
estava tão absorvido pela contemplação, que não existia diferença entre
mim e aquele ambiente, eu era o tanque e o tanque era eu. Existia uma
identificação entre mim e o tanque. Quando despertei do meu torpor, o
tanque passou a ter realidade, dinamismo. Aí estava todo seu valor.
Antes disso não existia nada, não existia um mundo objetivo. Foi no
momento em que eu escutei o ruído do peixe que as coisas passaram a ter
um significado. A realidade não tinha existência até aquele momento. O
peixe pulou da água e o mundo surgiu do Nada – ex nihilo. É o
sentimento de exaltação espiritual. O mundo existe! É um milagre!
Basho teve essa mesma experiência. Sentiu perplexidade diante da
existência. Foi o momento do despertar, ele se assustou e exclamou - Oh,
velho tanque! A experiência de Basho é filosófica, pois ele sentiu
espanto, perplexidade, se maravilhou com a possibilidade de algo
existir. É esse sentimento que está na raiz de toda filosofia.
Segundo Daisetz Suzuki, a filosofia budista nos ensina que tudo é um.
Eu o tanque, as plantas aquáticas, as árvores, a luz do sol, o peixe,
somos um. O todo em um, o um no todo. Quando eu olhei o peixe no tanque,
eu era o peixe e também o tanque. O peixe e o tanque era eu. Mas eu
permaneci sendo eu, o peixe o peixe, o tanque o tanque, as árvores as
árvores. Mas todos nós somos uma totalidade absoluta, uma identidade. O
universo inteiro está naquele tanque, ele representa a totalidade
infinita das coisas. Na filosofia budista nada existe além do tanque
d”água, ele é completo em si mesmo. Ele é toda a realidade cósmica.
"O
sofrimento surge, portanto dos desejos,
afetos e paixões num mundo
inconstante
e instável. Por se apegar
aos objetos do mundo,
sendo estes
contingentes e
impermanentes, o homem só
experimenta o sofrimento
(Dukka)."
Suzuki explica-nos que para a filosofia budista ser é significar.
Tudo o que existe é um símbolo. “O simbolismo budista declararia,
portanto, que tudo é simbólico, comporta uma significação em si, tem
valores próprios, existe por direito próprio e não aponta para qualquer
outra realidade senão a que é intrínseca a cada coisa” (Suzuki, 1980,
p. 60). O peixe, o tanque, as árvores e eu somos um símbolo. Tudo que
existe têm um significado. Tudo é, porque existe em si mesmo, tem valor
em si mesmo e não aponta para uma realidade diferente, não existe nada
fora da própria realidade. As coisas não existem por causa de Deus. Não
existe uma realidade diferente das coisas.
A filosofia budista não é uma religião, nem um sistema ético, não é uma
crença ou uma adoração, ela é antes de tudo uma prática voltada para a
interioridade humana. É uma prática de autoconhecimento que busca a
libertação. Mas libertação do quê? Libertação do sofrimento. O sentido
mais próximo e imediato da vida é o sofrimento, pois compreender a
vida em sua totalidade é compreendê-la em meio dor. O filósofo Arthur
Schopenhauer, influenciado pelo budismo, compreendeu muito bem essa
verdade. Segundo ele, “se o sentido mais próximo e imediato de nossa
vida não é o sofrimento, nossa existência é o maior contra-senso do
mundo. Pois constitui um absurdo supor que a dor infinita, originária
da necessidade essencial à vida, de que o mundo está pleno, é sem
sentido e puramente acidental. Nossa receptividade para a dor é quase
infinita, aquela para o prazer possui limites estreitos. Embora toda
infelicidade individual apareça como exceção, a infelicidade em geral
constitui a regra” (Schopenhauer, 1974, p.122).
O budismo é, portanto, o caminho para a libertação da dor inerente ao
mundo, pois ela desperta o indivíduo para o conhecimento da verdadeira
natureza dos seres e das coisas. O budismo nos leva a ver a realidade
como ela é, e não como parece ser. No universo não há nada permanente, o
mundo é contingência, com isso o homem experimenta uma realidade
inconstante que lhe traz inquietação (Dukka). Da mesma forma, não existe
Eu, não existe uma natureza humana acabada, fixa, permanente. O que
existe de fato são sensações, percepções e memória. Eu tenho a
experiência de que tenho um corpo, um cérebro, que sinto esse talher,
sinto certas texturas, tenho a intuição do amarelo, azul, branco, vejo o
horizonte. Tenho muitas impressões, eu vivencio muitas coisas, tenho a
impressão de minhas mãos, meu pés, meu coração, mas quando procuro
analisar meu eu, não o encontro. Sou levado a concluir que não há
nenhuma vivência que me demonstre ser o eu. O eu não corresponde a
nenhuma impressão. O eu parece ser uma ficção.
Para o budismo o eu é uma ilusão da nossa consciência. A consciência
nos possibilita a idéia de um mundo permanente, estável, onde ele possa
prever o curso das coisas e dos acontecimentos. Para que isso seja
possível o homem cria através da linguagem palavras para se comunicar,
dando permanência, existência e realidade a coisas que não existem: Eu,
Alma, Deus, Essência, Mal, Bem. Nada disso existe. O mundo é como é. O
homem usa palavras procurando dar sentido ao mundo. Para o budismo não
existe Ser, o mundo é vir-a-ser. A noção de Ser é a pedra angular que
deu origem ao pensamento filosófico ocidental. Para o budismo este é um
falso problema. O que existe de fato é a impermanência de todas as
coisas. Buda nos ensinou que “a natureza de todo o fenômeno, de toda
aparência, é semelhante ao reflexo da lua na água”.
Num mundo onde tudo é impermanente, onde o Eu é uma ficção da nossa
consciência, não podemos nos apegar a nada. A maioria dos homens buscam
engrandecer o “Eu” buscando a fama, a glória, o dinheiro, os prazeres e
não percebem que o motivo de seus sofrimentos está nessa inquietação. O
sofrimento surge, portanto dos desejos, afetos e paixões num mundo
inconstante e instável. Por se apegar aos objetos do mundo, sendo estes
contingentes e impermanentes, o homem só experimenta o sofrimento
(Dukka). Dessa forma, é só pela libertação dos desejos e paixões, ou
seja pelo desapego, que atingimos a libertação, a paz, a quietude. É o
que Buda entende por Nirvana. A palavra Nirvana só pode ser compreendida
intuitivamente, como quase tudo no budismo. Se apegar a conceitos é uma
característica do mundo ocidental, algo que é um grave erro, uma vez
que os conceitos servem para dar permanência a algo impermanente. Os
orientais são mais intuitivos, mais poéticos, souberam captar melhor o
devir de todas as coisas. Se tivermos que necessariamente dar uma
definição para a palavra Nirvana, devemos dizer que é a felicidade, a
liberdade e a quietude.
Para o budismo, portanto, conhecer significa compreender que tudo no
universo está conectado, que o “eu”, nem os fenômenos possui qualquer
autonomia, que tudo é interdependente, tudo é impermanente. O universo
com seu espaços infinitos é um vazio eterno, assim como toda realidade. O
mundo não tem um sentido, todo sentido está no homem, somente ele pode
colocar sentido nas coisas. Como afirmou buda “somos o que pensamos.
Tudo o que somos surge com nossos pensamentos. Com nossos pensamentos,
fazemos o nosso mundo”.
Bibliografia
SCHOPENHAUER, Arthur. Parerga e Paraliponema. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
SUZUKI,
Daisets T. Simbolismo Budista. In: Revolução na Comunicação, Org.
Edmund Carpenter e Marshall Mcluham, Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p.
56-63.
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* Professor.
Fonte: http://filosofonet.wordpress.com/author/filosofonet/
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