Marcelo Rubens Paiva*
Depois brotará o vazio no pasto da solidão, e ela perguntará antes de dormir para seu confidente, o travesseiro: "Não é melhor ser menos exigente? Quem vai cuidar de mim quando ficar velhinha?" Até lá, vamos curtir, baby...
Ela jamais diria que a solteira é aquela que perdeu a ocasião de
tornar um homem infeliz. Acreditava nas relações. Apostava no amor. Sua
solteirice? Temporária, posta em xeque.
Queria apenas curar a ressaca da separação recente. Farreando, por
que não? Queria por um período aliar a independência financeira com a
afetiva. Queria se divertir sem parar, ir ao cinema sozinha, viajar com
amigas e amigos, reclamar que todos os homens são tolos e infantis, e
que os caras mais lindos, gays.
Porém, a fase festiva sofreu dois grandes baques:
1. O ex-marido se juntou com uma garota que não precisava de sutiã,
luzes no cabelo, nem maquiagem, e andava enjoando em demasia; o peito
tinha aumentado, e a barriga, começado a ficar redonda. Aquele ex que
nunca quis ter filhos. Mudou de ideia ou foi forçado a?
2. O anúncio de que a melhor amiga, que recebia convites para as
melhores festas, com quem saía todos os finais de semana e aprendeu a
ser adolescente depois de madura, viajava nos feriados prolongados,
desabafava sobre as loucuras do ex e as idiossincrasias das paqueras,
estava... namorando! Com um garoto interessante, cheio de amigos
interessantes que trabalhavam juntos num coletivo interessante e faziam
projetos de interesse social, tecnológico e além de tudo sustentáveis.
Claro que ela refez os planos, baixou a guarda, deixou a teimosia no
armário e flutuou pela correnteza da vida. Até enroscar numa curva e ser
seduzida por Pedro, que tocava pandeiro no grupinho de pagode do
coletivo, que se reunia no happy hour as sextas-feiras. E que fez tudo
certo: a esnobou até o limite, xavecou no momento preciso, investiu com
as armas apropriadas, falou o que precisava ser dito e, enfim, a beijou
exatamente quando a brecha apareceu depois de gentilmente trazer a
quinta latinha.
Pedro foi um mestre. Conquistou o grande troféu, a solteira mais
cobiçada. Recebeu reconhecimento dos amigos e adversários. Mas o
convívio... Sempre ele a denunciar nossas incongruências.
Pedro é daqueles que atendem celular no elevador. Viciados em UFC.
OK, é um segmento forte do mercado. Que buzinam para os carros da frente
assim que abre o farol. Tudo bem, ela se dizia, nem tudo é perfeito.
Que param em vagas de idosos no shopping e ainda contam vantagem:
"Dentro de estabelecimentos comerciais não podem multar."
Um dia ele implicou com a unha vermelha dela. "Não é coisa de
empregada?", disse ao entrar no carro quando ela foi pegá-lo, desviando
do caminho, num dia de congestionamento recorde, sem ao menos passar na
sua casa, para não atrasarem para o sambão do coletivo, para o qual
trocou o almoço pela manicure.
Calma, garota, não seja exigente. Sou suficientemente lúcida para
admitir que não existe o par perfeito, ilusão, escapismo utópico
inventado pelos românticos, e que exigir de alguém o mesmo comportamento
social é um exercício de fraqueza narcisista de pessoas problemáticas
que só conseguem se relacionar com o espelho.
Sustos apareceram no primeiro jogo de futebol pela TV que viram
juntos. Ela não era fanática. Nem o ex. Gostava, assistia, e que
ganhasse o melhor.
Já Pedro... O time dele disputava cabeça a cabeça a liderança do
campeonato com o de maior rivalidade. Xingava o juiz e os bandeirinhas
sem economia. O fato de uma bandeirinha ser mulher incrementava os
impropérios: "Vaca, piranha! Vai pra cozinha, filha da mãe!" Ela achava
engraçado porque quando a decisão do outro bandeirinha, homem, era
colocada em dúvida, sua heterossexualidade também.
Quando o zagueiro do próprio time deu uma furada, expressões de
preconceito social foram proferidas sem nenhum sentimento de culpa:
"Burro! Imbecil! Se pensasse direito não seria jogador de futebol!"
Quando o time fez um gol, a gritaria foi suficiente para matar de vez
todos aqueles com problemas cardíacos na vizinhança. No apito final,
palavras de carinho e solidariedade foram proferidas quando ele abriu a
janela e começou a gritar: "Chupa, desgraçados, filhos da pu%$! Toma,
seus via#$s do car%&*$!" O tempo em que ele ficou se comunicando aos
berros com outros vizinhos aliados e adversários foi suficiente para
esvaziar o estádio.
Então, como se diz no jargão do esporte bretão, o que era promessa
virou dúvida. Mas antes de um julgamento sem direito à defesa, ela ouviu
do travesseiro: "Egocêntrica, não consegue conviver com ninguém,
perdoar, aceitar as diferenças, passará o resto dos dias sozinha! O
problema está em você!" Perdeu a prática, menina. Vamos. Vai dar certo.
Ficou surpresa quando numa manhã viu na rede social que ele mudara o
status para "um relacionamento sério". Surpresa, lisonjeada e receosa.
Pedro jogava publicamente um estatuto de responsabilidades. Já está na
hora de alterarmos o status?
À tarde, o pânico tomou conta. Ele mudou a foto do perfil. Não era
mais a que beijava o escudo do time, mas uma foto dos dois, isso mesmo,
dele com ela, abraçados no sambão, olhando para a lente, cada um
segurando uma latinha, foto de que ela nem lembrava, em que, por sinal,
ela estava péssima, de retinas vermelhas e com a testa enrugada. Parecia
uma tia e seu afilhado.
Antes mesmo de ela sugerir que aquela foto não era apropriada,
recebeu uma mensagem com outra foto deles abraçados anexada, em que ela
estava pior, com a sugestão: "Se quiser usar no seu avatar."
Foi o fim. Celular no elevador, impropérios futebolísticos,
comentários desrespeitosos que exaltam a luta de classes, parar na vaga
de idosos e implicar com esmalte vermelho... Mas foto de casalzinho no
perfil individual de rede social? Aí é too much.
Sua resposta foi um calculado: "Pedro, precisamos conversar."
---------------
* Escritor. Colunista do Estadão.
Fonte: Estadão on line, 14/07/2012
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário