JOSÉ DE SOUZA MARTINS*
Alijados da sociedade, catadores que devolveram dinheiro achado retiveram como bem imaterial um antimoderno sentido da honra
Quando a honestidade surpreende e dela se desconfia é
porque alguma coisa essencial está mudando na sociedade. É o que incita à
compreensão sociológica dessa reação, suas ocultações e seus
significados no recente caso da devolução, ao dono de um restaurante,
dos R$ 20 mil que lhe foram roubados. O dinheiro fora achado por um
casal de moradores de rua de São Paulo, o maranhense Rejaniel e a
paranaense Sandra.
Já há um debate em relação ao suposto sentido do gesto dos dois
moradores dos baixos de um viaduto do Tatuapé. Uns veem nele vontade de
aparecer. Outros consideram trouxa o casal, pois "o achado não é
roubado". Não poucos no gesto reconhecem a simples e velha honestidade,
um valor de referência. Aliás, é por meio dela que a sociedade se
reproduz e se preserva, regula e organiza a vida de todos, dos
bem-intencionados e dos mal-intencionados, dos íntegros e também
daqueles para os quais a honestidade já não é senão uma anomalia.
Vontade de aparecer é pouco provável, pois essa vontade é
circunscrita a determinadas categorias sociais e depende de socialização
específica. É própria da classe média, cuja cultura valoriza o parecer
muito mais do que o propriamente ser. Quem procura parecer o que não é e
mais do que é quase sempre se denuncia nos gestos impróprios e na
inabilidade para manipular apropriadamente o código gestual que
corresponde à aparência que pretende ostentar. Pessoas pobres sabem
disso, mesmo quando imitam aquilo que não são. Os ricos também o sabem
porque com facilidade identificam quem não pertence à categoria social
dos que podem ostentar. As pessoas se traem nos desajustes da conduta.
Parecer traz identidade visual e o prestígio superficial da
aparência, o que é característico da sociedade de consumo. Os dois
moradores de rua, que são catadores de lixo reciclável, estão muito
longe das fantasias consumistas da maioria e suas possibilidades de
ostentação. São culturalmente incapazes de manipular os significados da
aparência porque não têm como dela beneficiar-se.
Quanto a ser trouxas porque deixaram de apoderar-se do que não era
seu, e do que claramente careciam, é algo improvável. Alguém que se
apodere de uma quantia de dinheiro muito superior à sua capacidade de
utilizá-la, mesmo dinheiro achado na rua ou no lixo, dificilmente poderá
utilizar esse dinheiro na escala de suas carências acumuladas sem ser
denunciado. A teia de regras e cautelas do mundo do consumo é vigilante e
repressiva para que um pobre não se meta a ser o que não é. Não é
improvável que o casal tenha levado isso em conta.
Mesmo que fosse a um restaurante para uma lauta refeição e matar a
fome de uma vida, correria o risco de não ser servido e de despertar
suspeitas. E, se pretensioso, mas prudente, pedisse uma garrafa de
modesto vinho da terra, maior seria a suspeita. Pobre que é pobre toma
água ou suco, dizem os vigilantes da conduta alheia. O que bem indica o
que são as suspeitas que regulam as relações sociais. Todos somos
devidamente observados todo o tempo por todos. O político que foi visto
com amigos num restaurante com dois Romanée Conti, um vinho de US$ 6 mil
a garrafa, já despertou suspeitas. Imagine-se o morador de rua
servindo-se de modestíssimo vinho local. Para entrar no restaurante,
teria antes que comprar os trajes apropriados à transitória escala de
ascensão social que R$ 20 mil permitem. Em condições assim, dinheiro
achado é inútil.
O gesto do casal repercutiu no Brasil e foi, no geral, bem-vindo como
indício de que nem tudo está perdido, no mesmo momento em que na
própria estrutura de poder a anomalia da corrupção compromete o sentido
democrático da vida política. O gesto, aliás, não é novo nem raro. São
frequentes casos semelhantes de dinheiro alheio achado e devolvido ao
dono desconhecido de quem o acha, geralmente por meio da polícia.
O homem que achou o dinheiro declarou que gostaria que sua mãe o
visse agora, pois ela se orgulharia dele. Eis a questão. Lançado para a
margem da sociedade, reteve, como um bem pessoal e imaterial que é, o
antimoderno sentido da honra. Por incrível que pareça, a maioria das
pessoas é honrada e faz parte dessa imensa massa invisível dos não
notados. Um trabalhador dedicado ao seu trabalho, ou um professor
devotado ao ensino e à formação de seus alunos, terá pouquíssima chance
de ser aplaudido, mesmo por quem de seu trabalho se beneficia. No
entanto, eles têm o que lhes basta como nutrição moral: o sentido da
honra e a honestidade. Já não se fala disso, mas os sociólogos sabem que
uma das carências humanas destes tempos de liquefação dos valores é a
da honradez e da honestidade, o alimento que sacia os que não foram
vencidos, os que se mantiveram antiquadamente honestos.
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*JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE
FILOSOFIA DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A SOCIABILIDADE DO HOMEM
SIMPLES (CONTEXTO)
Fonte: Estadão on line, 14/07/2012
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