segunda-feira, 16 de julho de 2012

Comunismo no poder e fora dele

Renato Janine Ribeiro*

 

O comunismo parece coisa antiga, que talvez subsista, com seus ideais, apenas em Cuba. Estive recentemente na China e, embora a retórica do regime fale em comunismo, sua prática está a mil léguas deste. De todo modo, ele marcou o século XX e deixou sua marca na sociedade atual. Vale a pena perguntar por que, no poder, ele foi ditatorial e totalitário, enquanto, na oposição, contribuía para os direitos trabalhistas, os direitos sociais e mesmo a democracia. Esse é o grande paradoxo do comunismo.
Nisto, ele se distingue do fascismo. É verdade que ambos, no poder, instituíram Estados policiais, campos de concentração e mataram milhões, sobretudo no período que vai de 1917, data da Revolução Russa, a 1953, quando morreu Stálin. Mas o fascismo, na oposição, já usava da extrema violência. Na Itália, dava óleo de rícino a beber aos inimigos. Na Alemanha, tomava as ruas com militantes bandidos. Não há diferença entre o fascismo na oposição e no governo: vejam a truculência dos nazistas gregos, hoje. Estão na oposição e já fazem mal; imaginem no governo.
Já o comunismo, na oposição, defendia direitos. É possível que essa diferença entre ele e o fascismo esteja no discurso, no texto, na doutrina de cada um. A doutrina comunista é bela. Muitos de seus críticos reconhecem isso - bela, dizem, mas irrealizável, utópica. Aliás, segundo alguns, o comunismo teria gerado o mal justamente porque propôs um bem inatingível. Não conseguindo implantar o mundo perfeito, utilizou a violência na tentativa de alcançá-lo. Como não extirpasse do ser humano a vontade de lucrar, de ter mais, tentou arrancar esse traço de caráter à força. Daí que, como tantos visionários antes e depois, ao longo dos tempos, o comunismo tenha se tornado cruel exatamente porque pretendia ser bom. Não admitiu uma bondade que não fosse a sua, ou melhor, não admitiu uma humanidade que não fosse boa como a sua.
O comunismo permitiu humanizar o capitalismo
Pode ser esta a explicação para os males do comunismo. Talvez! Mas permanece o fato de que ele delineou uma utopia - também no sentido bom, e original, da palavra. Já os fascistas jamais propuseram uma sociedade justa para a humanidade. O que propuseram, e continuam propondo na voz dos vários movimentos semifascistas que hoje há na Europa, como a Frente Nacional na França, foi uma sociedade supostamente vantajosa (o que não quer dizer moralmente boa) para um único grupo étnico. Os fascistas são, por definição, ultranacionalistas e xenófobos. Odeiam o estrangeiro, o diferente, o divergente.
O fascismo é o egoísmo tornado política. Detesta quem não é como ele. O próprio compatriota, ele só aceita se for um clone seu. Toda diferença será castigada.
O comunismo foi internacionalista. Entendia que as fronteiras nacionais foram construídas pelas classes dominantes. Pretendia uma sociedade justa, não apenas para os alemães ou italianos, mas para todos os seres humanos. No discurso comunista, há uma ética. No fascista, não.
Assim, quando os fascistas de antes e de hoje empregam a força física contra as pessoas de quem não gostam, apenas aplicam na prática a sua doutrina. Não há divergência entre o que dizem e o que fazem. Ações e palavras andam juntas. Eles prometem expulsar quem não é de seu país, reprimir quem diverge dos costumes dominantes - por exemplo, homossexuais e feministas -, eliminar quem pertence a uma raça dita inferior. Já em Mein Kampf (1925), Hitler já contava o que faria quinze ou vinte anos depois. Já os comunistas, no poder, quando agiram como os fascistas, estavam dizendo uma coisa e fazendo outra. Proclamavam a igualdade dos povos, mesmo quando submetiam várias outras nacionalidades à russa. Pregavam a liberdade, enquanto colocavam milhões a trabalhar como escravos. Isso não foi mera hipocrisia, embora em alguns casos clínicos, como o de Stálin, fosse pior que ela. Foi algo que pertenceu à essência do comunismo no poder.
Agora, por que o comunismo, na oposição, foi mais fiel a seus ideais do que quando esteve no poder? Por que ele foi melhor desobedecendo do que mandando? É verdade que falo aqui em linhas gerais. Mesmo no poder, houve comunistas leais aos ideais de humanismo que aparecem na doutrina - o húngaro Imre Nagy, o eslovaco Dubcek. Mesmo na oposição, houve comunistas que mataram dissidentes ou simples suspeitos, como Elza Fernandes, a adolescente morta em 1936 por ordem do Partidão. Mas, em linhas gerais, na oposição os comunistas defendiam as liberdades, e no poder as suprimiam. Terá sido justamente por causa do discurso deles? Seriam mais fiéis às promessas de Marx quando eram profetas desarmados do que armados? Terão sido melhores os comunistas com a pena do que com o fuzil, escrevendo e subvertendo do que decretando e impondo?
O comunismo talvez tenha sido a melhor oposição que o capitalismo pôde ter. É até provável que comunismo e capitalismo precisassem um do outro - ou que uma sociedade, para ser boa, precisasse dos dois. Isso resultou no que houve de melhor no século passado - os trinta anos gloriosos, após a II Guerra Mundial, quando o mundo (ou pelo menos o mundo então rico) mais se desenvolveu, econômica e socialmente. Mas esse duo só funcionava bem quando o capitalismo estava no poder, o comunismo na oposição. Sem esses opositores, os capitalistas teriam sangrado as classes sociais a fundo, como fizeram em tantas partes, inclusive no Brasil da ditadura. Sem o capital no poder, o comunismo seria só um totalitarismo a mais. É curioso esse equilíbrio de poderes, um em cima, outro em baixo. Curiosamente, pode ser que o comunismo - de oposição - faça falta, em nossos dias.
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* Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras
E-mail: rjanine@usp.br
Fonte:  http://www.valor.com.br/politica/2752366/comunismo-no-poder-e-fora-dele
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