Francisco Daudt*
Freud falou que todos nós carregamos instintos opostos: um de vida (que
ele chamou de Eros), e um de morte (que ele não chamou de Tanatos). Este
último é dos mais mal compreendidos em psicanálise, geralmente ligado a
um monstro que aqui e ali surgiria no ser humano fazendo ele se tornar
genocida, causador de guerras, assassino serial, político predador e
coisas do gênero.
Enquanto o instinto de vida é bem acolhido como parte da nossa "boa
natureza estragada pela cultura" (vide o bom selvagem de Rousseau), o de
morte é olhado como um inimigo oculto dentro de nós, esperando sua
oportunidade para cravar suas garras.
Deste mal entendido vêm crendices como a de que pessoas são capazes de
"fazer" um câncer, já que são tão amargas. O que é uma crueldade
adicional para os cancerosos, pois além da doença eles carregam a culpa
de tê-la. Sem mencionar otimistas incuráveis que também desenvolvem
câncer.
Você pode perguntar o que um conceito psicanalítico está fazendo numa
coluna que cuida de natureza humana. É que o velho professor teve
sacações brilhantes sobre o funcionamento universal de nossa mente, a
acima descrita entre elas. Um dia desses, eu dedico uma coluna a
comentar a lista de comportamentos universais da espécie (ou seja,
presentes em todas as culturas do mundo, através dos tempos) que Donald
E. Brown fez, e que está publicada no livro "Tabula rasa" de Steven
Pinker. É fascinante. Entre eles, Brown colocou o Complexo de Édipo,
outro conceito do velho. Prometo para depois.
Mas afinal, como entender o funcionamento da dupla vida/morte no nosso
dia a dia? Entenda como se fosse uma conversa interminável entre a
destruição e a construção. "Eros" ficou como símbolo de construção
porque o sexo (a procriação) é nosso principal motor para construir e
para destruir. Explico: tive uma linda filha e criei-a com desvelo,
custo e eventuais noites insones, de tal forma que ela é hoje
inteligente, um amor, hábil e autônoma. Eros operando, certo? Pois logo
virá um ser monstruoso para destruir nossa bela família, casando-se com
ela, levando-a daqui para construir a família deles. Eros operando
novamente... Não posso me queixar: fiz o mesmo com a família da mãe
dela!
Destruo a vida de uma vaca (eu não, que os bifes vêm do supermercado),
corto-a em pedacinhos, queimo-a parcialmente e ainda a trituro com gosto
entre os dentes. Seus tijolinhos de aminoácidos vão se juntar na
construção de meus músculos. Você não imagina quantas palavras eu
destruí ("deletei", do latim "delendere", que significa "destruir") para
escrever esta coluna. Você se encanta ao ver uma catedral em mármore.
Vá dar uma olhada na pedreira de onde ela saiu. Na Austrália é
necessário se matar uma série de animais que, por seu surto de
"construção", destruíram plantações e outras espécies, ameaçando a
humana. Um estímulo à reflexão dos que pensam que ecologia é ter peninha
de bichos e plantas.
Portanto vida e morte, construção e destruição fazem parte de nossa natureza e são necessárias à nossa existência.
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* Francisco Daudt, psicanalista e médico, é autor de "Onde Foi Que
Eu Acertei?", entre outros livros. Escreve às terças, a cada duas
semanas, na versão impressa do caderno "Cotidiano".
Fonte: Folha on line, 10/07/2012
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