Barbara Gancia*
Alguém consegue explicar a má vontade dos médicos tapuias em relação aos Alcoólicos Anônimos?
A COLUNA do Contardo Calligaris de ontem, que menciona seu amigo
alcoólatra estimulado a voltar a beber pela mulher foi um clássico. Um
clássico equívoco a ser evitado.
Costumo ler o Contardo de joelhos. Mas não ontem. Ali ele trivializou
um assunto que não só conheço bem, como sou testemunha diária dos
efeitos devastadores que produz, inclusive pela negligência com que é
tratado. Não dá para entender a má vontade dos profissionais do país
com os Alcoólicos Anônimos, uma irmandade reconhecida no mundo todo
pelos excelentes serviços que presta.
O texto de Calligaris me remeteu ao hepatologista de Tarso de Castro,
que chegou ao cúmulo de liberar o jornalista, dependente, para tomar
uma taça de vinho ao dia.
Não sou especialista, apenas alguém que padece de uma doença que a
Organização Mundial da Saúde define como "incurável, progressiva e
mortal". E posso atestar que o texto serviu de luva para reafirmar o
propósito de que problemas relativos ao álcool devem ser tratados
dentro da sala dos Alcoólicos Anônimos, bem longe do divã do
psicanalista.
Veja. Quem conhece minimamente os 12 Passos dos AA sabe que o programa
não oferece garantias. Mas, a dada altura, por negligência ou mero
infortúnio, Contardo diz o seguinte: "O homem frequentou os AA e deu
certo". Ora, para nós, membros dos AA, ao contrário, o programa
funciona, se muito, "só por hoje", nunca "dá certo", inexiste esse
conceito. Eu posso voltar à ativa daqui a 20 minutos, corro esse risco, é
da natureza da doença.
Um dos maiores predicados dos AA, inclusive, é esse. O de me colocar o
tempo todo no presente para que eu consiga reduzir a angústia que a
lembrança do passado me traz e diminuir a ansiedade que o peso do futuro
pode vir a me causar.
Mas de que importa a filosofia dos AA? Bom mesmo é teorizar, não é para
isso que serve psiquiatra? Calligaris menciona ainda que, aconselhado
pelo seu grupo, o sujeito passou por uma "internação de um ano". De
onde tirou um absurdo desses, só Deus sabe. Internação longa nos AA?
Em 20 anos de Alcoólicos Anônimos nunca vi essa picaretagem. Aliás, é
cada vez mais comum no país a prática criminosa da internação longa que
isola o dependente da família e coloca o médico como intermediário
todo-poderoso, sem que ninguém fiscalize.
Adoro ler o Contardo, ele me explica muitas coisas. Mas não me explica
tudo. A psicanálise é aleijada da dimensão espiritual, um caminho
muito indicado, senão imprescindível, para alguém como eu, que produz
pouca endorfina, dopamina e outros opiatos naturais por conta dos anos
que passei mamando destilados. Jung já advertia sobre isso a Bill e
Bob, os dois sujeitos que fundaram os Alcoólicos Anônimos. Está
documentado.
Fico me perguntando a quem Calligaris refere os casos mais graves de
dependência. Não gosto nem de pensar na resposta. Em todo caso, uma
atividade não interfere na outra, não é mesmo? O colunista é um, o
médico é outro. Vamos deixar assim.
E deixar também um convite para que o amigo Contardo venha assistir a
qualquer próxima edição que eu for dar da palestra "Do Fundo da Garrafa
ao Domínio da Minha Vida", em que conto um pouco sobre meu trágico
envolvimento com o álcool e como consegui sair desse inferno. Quem sabe
ele não se anima a vir conhecer uma sala dos AA por dentro? Só por
hoje. Funciona.
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* Jornalista. Colunista da folha
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