Pe. ALFREDO J. GONÇALVES, CS*
O verbo deletar entrou definitivamente no vocabulário da
língua portuguesa. Os dicionários o traduzem por eliminar, suprimir,
excluir, apagar. As palavras como sabemos não são neutras. Nascem,
entram em uso e se consolidam num território bem preciso, do ponto de
vista social e cultural. Abrem-se como janelas sobre um determinado
contexto histórico. São filhas do tempo e do espaço. Todo organismo vivo
cria novas células e expele os tecidos necrosados. Sendo a língua um
desses organismos vivos, também ela faz brotar novas palavras de seu
metabolismo, enquanto outras morrem e desaparecem.
O termo deletar é filho da revolução informática das últimas
décadas. Insere-se no universo de um relativismo progressivo onde as
certezas cedem espaço às dúvidas, as perguntas substituem as respostas e
as referências se diluem como bolhas de sabão. Não há “verdades”, e sim
interpretações. De acordo com o filósofo francês François Lyotard, em
seu livro A Condição Pós-Moderna, acabaram-se as metalinguagens
ou metanarrativas, restando apenas os experimentos e estudos de caso.
Na contramão da globalização, o olhar amplo e universal deu lugar à
visão localizada, setorizada, especializada. Na medicina, o clínico
geral desaparece frente à proliferação dos especialistas.
Vem à tona toda a obra do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, com sua
insistência no adjetivo “líquido”. Os títulos de algumas de suas obras
são ilustrativos: Modernidade Líquida, Tempos líquidos, Vida Líquida, Medo Líquido, Amor Líquido.
Tudo parece derreter-se no oceano do relativismo: contratos, relações
interpessoais, valores morais, amizades, instituições, regras… Um
exemplo corriqueiro e muito frequente: hoje faço cinquenta novos amigos
através da rede social Facebook. Trocamos mensagens, fotos e até
intimidades. Mas amanhã mesmo, sem maiores explicações, posso deletá-los.
Com a mesma rapidez com que os contatei, eu simplesmente os ignoro. Ao
invés de um laço sólido e durável, a amizade se converte em um
relacionamento líquido, virtual, gasoso… Deletável!
Com o advento dos tempos modernos ou pós-modernos, o universo
predominantemente rural da tradição dá lugar ao universo urbano das
novidades. Neste último, nada é mais velho do que o jornal de ontem. As
notícias ou são simultâneas aos fatos, ou deixam de ter interesse. Os
antigos valores e contravalores, passados de geração para geração, são
facilmente trocados por novas formas de pensar e de se relacionar.
Entram em cena diferentes valores e contravalores, onde a pluralidade e a
diversidade tomam o lugar da uniformidade. O tempo, antes marcado pelo
sol e a lua, as estações do ano, o plantio e a colheita, o canto do galo
ou os sinos da Igreja, agora adquire o ritmo da máquina, do apito do
trem. A ciência e a tecnologia imprimiram uma velocidade sem precedentes
na produção de mercadorias, inovações e mentalidades.
Torna-se relativamente normal construir e simultaneamente deletar
relações de todo tipo. Instala-se progressivamente a ideia de que tudo é
descartável: roupas, sapatos, aparelhos domésticos, telefones
celulares, televisores, computadores… Mas também amizade, namoro,
casamento, profissão, vocação, e assim por diante. Diante de tamanha
abundância de coisas e oportunidades, como distinguir o que é essencial
do que é secundário? A profusão e pluralidade de pontos de vista podem
nivelar tudo por baixo. O experimento ganha força sobre o compromisso de
longo prazo. Faz-se uma experiência provisória, se não der certo… Bem, é
só deletar e partir para outra! No relacionamento amoroso, por
exemplo, o “ficar” substitui o “namorar”, pois este último exige o
respeito à alteridade, uma transformação profunda e recíproca, ao passo
que o outro representa apenas o uso prazeroso da pessoa em questão.
O conceito de bem-estar pessoal se sobrepõe ao bem-estar social. O
engajamento político e social é substituído pela busca do “estar numa
boa”. Prevalece o “eu” sobre o “nós”. Os imperativos morais de uma
consciência que se sente responsável diante da realidade sociopolítica
ou diante da multidão dos pobres cedem o posto ao imperativo da saúde
corporal acima de qualquer preço. Multiplicam-se a compra e venda de
cosméticos, as academias de ginástica, o culto ao próprio corpo ou às
celebridades. Com isso, trocar de partido, de religião, de amigo ou de
relacionamento amoroso é quase como trocar de roupa, de sabonete, de
shampoo ou de operadora do telefone celular. Busca-se ansiosamente a
marca ou grife do momento, mas também elas se perdem na voracidade dos
modismos. Tudo se troca, tudo tem vida curta, tudo se deleta… “Tudo que é
sólido se desmancha no ar”, afirmava o Manifesto Comunista de Marx e
Engels ainda em 1848.
Essa passagem da predominância da tradição ao imperativo da novidade
constitui um terreno profundamente ambíguo. Tomemos por exemplo o
conceito de liberdade. No mundo da tradição rural e fortemente
hierarquizada, a liberdade tem limites convencionais. Desenvolve-se sob a
pressão contínua da família, da religião, da moral e da sociedade no
seu conjunto. No cenário industrializado e urbano, a liberdade abre
novos horizontes. As vielas estreitas se convertem em amplas estradas
Mas o caminho largo pode levar aos becos sem saída da violência, da
droga, do álcool e da prostituição. Tanto a “liberdade vigiada”, num
caso, quanto a “liberdade de fazer o que se quer”, no outro, são
extremos que escondem perigos. No primeiro caso, é fácil deletar de uma vez só uma longa e sólida tradição, às vezes adquirida como uma camisa de força. No segundo, é igualmente fácil deletar
os laços tênues de relações superficiais e momentâneas. Em geral, tudo o
que se engole à força, cedo ou tarde se vomita; mas também é comum
vomitar o que se engole com excessiva sofreguidão.
Além disso, num universo pressionado pela observação moral ou
moralista de princípios rígidos e hierárquicos, há uma tendência natural
ao infantilismo. O indivíduo está mais protegido, sem dúvida, mas tende
a manter o cordão umbilical que rege o comportamento. Mantém-se
comodamente dentro das normas, dificilmente se arriscando ao novo. Ao
invés de ousar, tende a neutralizar-se. Já na atmosfera mais aberta,
livre e dinâmica do mundo urbano, o indivíduo sente-se exposto a uma
série de riscos e aventuras, mas isso pode levar ao desenvolvimento de
uma consciência mais madura. No primeiro caso, digamos, a pessoa nasce
revestida pela roupagem protetora da família, do compadrio, da religião,
da tradição… Sua identidade não terá grandes sobressaltos. No segundo, a
pessoa nasce nua, terá que abrir a própria picada na selva de pedra, a
identidade é algo a ser construído passo a passo. Cada um tende a
regular-se menos pelas conveniências sociais e mais pelos próprios
princípios éticos. Por isso mesmo, apesar dos riscos, os laços tendem a
ser mais autênticos.
Mas, na medida em que o universo urbano coloniza gradativamente o mundo rural, em ambos os casos o verbo deletar
pode ser acionado: ou para desfazer-se das amarras de um
convencionalismo estreito e castrador, ou para exibir-se a cada momento
com as novidades de uma sociedade que não pára de fabricá-las. Lojas e
farmácias, profusamente iluminadas, expõem uma multidão de objetos e de
analgésicos que torna líquido toda forma de comprometimento moral. O
desejo, motor implícito ou explícito do comportamento humano, se vê
atraído, seduzido, fascinado por todo tipo de apelo e modismo, onde o
marketing, a propaganda e a publicidade exercem poderosa influência.
Dois estudos de Gilles Lipovetsky poderiam ser chamados aqui em
testemunho: A Era do Vazio e O Império do Efêmero, respectivamente sobre o individualismo contemporâneo e a moda e seu destino nas sociedades modernas.
Produzir, comprar, usar, descartar… Eis o círculo de aço que amarra
fortemente nossa vontade, nossos projetos e nossos passos. Entramos nele
quase sem nos darmos conta, mas, depois de a ele atados, é difícil
desvencilhar-se. Mesmo professando o credo da preservação do meio
ambiente, hoje em voga, não é fácil libertar-se da ratoeira armada pelo
mercado total. Se o enxotamos pela porta, ele entra pela janela ou, mais
frequentemente, pela telinha da TV ou da Internet. Para facilitar as
coisas, lá está a tecla do deletar.
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*Fonte: http://espacoacademico.wordpress.com/
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