André Conti*
Nerds dominaram as novas formas de interação; colecionar gibis deixou de ser atividade clandestina
Até pouco tempo atrás, chamar alguém de nerd era um insulto forte.
Representava um passo além do "quatro-olhos" e implicava carga de
solidão, ausência de trato básico, inadequação para o chamado flerte e
assim vai.
Em algum lugar do caminho, os nerds venceram. Quando a internet se
popularizou, eles já estavam lá, com território demarcado. E algo dessa
cultura -que vai do senso de humor aos programas de TV a que assistiam-
firmou-se na base da rede e direcionou um pouco sua linguagem e seus
códigos de conduta.
Tidos como antissociais, nerds passaram a dominar as novas formas de
interação. Foi preciso, inclusive, aumentar a abrangência do termo
"geek", antes igualmente ofensivo. Nas palavras de um hacker célebre,
"geek" virou sinônimo para "nerd com traquejo social".
Assim, colecionar gibis deixou de ser uma atividade clandestina, por
exemplo. Como sacanear alguém lendo um quadrinho que deu origem ao filme
visto por você e todos os amigos no fim de semana?
O problema é que, se o sentimento de comunidade foi genuíno, ele trouxe
consigo inúmeras possibilidades de capitalização. Nada como um grupo
unido, engajado em seus gostos, novidadeiro e, chegando à faixa dos 20 e
30 anos, com enorme capacidade de compra. Difícil pensar numa commodity
mais valiosa.
O que antes era uma cultura difusa -o nerd podia ser tanto o fã de
"Jornada nas Estrelas" que nunca saiu da casa da mãe quanto o gênio
matemático introspectivo- foi homogeneizado num discurso de fora para
dentro, moldado em filmes, livros e jogos que visavam atender aquele
público.
Nesse sentido, nada mais natural que o sucesso de uma série como "The
Big Bang Theory", feita sob medida para um grupo de identidade tão
variada. Ali, todos os estereótipos estão em harmonia: a inadequação
social, o conhecimento enciclopédico de cultura pop, o gênio científico,
a doçura de caráter etc.
Mas o que une mesmo todos esses fatores em uma cultura homogênea é a
infantilização. Como que se, para manter esse público ligado em jogos e
quadrinhos e filmes, fosse preciso prendê-lo em uma adolescência
nostálgica permanente.
Numa série boa, como "Spaced", feita pela BBC, essa paralisia é usada
para retratar toda uma geração. Em "Big Bang Theory", parece uma
tentativa mal engravatada de vender camisetas, DVDs e bordões.
Não estou aqui advogando uma suposta pureza da cultura nerd, ou algo do
tipo. Nem acho que ela possa existir, pelo menos não de forma tão
artificialmente unificada. Mas, se houve uma confluência de interesses e
gostos, o certo é que ela nunca foi pautada.
Infelizmente, qualquer grupo tão grande de consumidores sempre passará,
numa medida ou em outra, a pautar o que consome. Os prejuízos são
imensos, basta ver a apropriação sistemática das culturas urbanas na
moda e na publicidade.
Diz a velha piada do Groucho que não se entra em clube que o aceite como
sócio. A onda de orgulho nerd vem na mesma esteira que elegeu os
"tweens" como grandes consumidores da década passada. E é tão genuína
quanto. Espero que passe.
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* Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 09/07/2012
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