segunda-feira, 9 de julho de 2012

A literatura de Javier Cercas. Ou a ‘História’ como ficção


Depois de ter o livro Soldados de Salamina, que mistura realidade com ficção, apontado pela revista The New Yorker como um dos principais de 2011, o escritor espanhol Javier Cercas voltou a beber na fonte da história para escrever Anatomia de um Instante, recém-lançado no Brasil pela Globo Livros. Apesar de se sentir de mãos atadas ao deixar de inventar tramas, Cercas disse não ter visto sentido em ficcionalizar o episódio espanhol que ficou conhecido como 23-F, uma tentativa de golpe de estado feita em 23 de fevereiro de 1981. “A história desse episódio é cheio de lendas, mentiras, meias verdades construídas por muita gente. Assim como não há um americano que não tenha uma teoria sobre a morte de Kennedy, não há um espanhol que não tenha uma para esse golpe. Pensei que seria irrelevante contar a ficção de outra ficção.”
A pesquisa para o livro, que durou alguns anos, deu origem a um romance que conta minuciosamente – não por acaso a obra leva a palavra “anatomia” no título – o que aconteceu naquele dia, quando um grupo de civis liderados pelo tenente-coronel Antonio Tejo invadiu a Câmara dos Deputados, em Madri. O golpe se mostrou um fracasso na manhã seguinte. Mesmo trabalhando com fatos reais, o escritor admite que alguma coisa em Anatomia de um Instante é fruto de sua imaginação, uma vez que, ao contrário de historiadores, ele se interessou por entender os personagens envolvidos.
“Não posso dizer que o livro não seja também um romance, porque ele tem uma estrutura de romance, com perspectivas múltiplas sobre o mesmo assunto. Eu tentei entender os personagens e mostrá-los não como deuses ou demônios, como alguns os veem, mas como pessoas”, diz. Essa seria, portanto, a diferença da história que escreveu daquela que se conta em livros escolares. Diferença que agradou aos estudiosos, segundo Cercas. “Todos receberam muito bem o livro, exceto pelos protagonistas, os políticos que estavam no parlamento no dia do golpe.”
Se a literatura tem a função de preservar a memória de um país, o espanhol não sabe. “Responder a essa pergunta é difícil, mas acredito que os escritores têm algumas obrigações: escrever bem, criar um mundo coerente e mudar a percepção das pessoas”, diz. Confira abaixo uma seleção das perguntas feitas a Javier Cercas, que recebeu VEJA Meus Livros na pousada em que se hospedou em Paraty.

Em Anatomia de um Instante, o que existe de diferente da história ensinada na escola? É uma obrigação de todo escritor não se conformar com a história oficial e contar a sua própria versão. No fundo, esse livro é impossível, porque tenta buscar ao mesmo tempo duas verdades contraditórias: a da história e a da literatura. A verdade da história é uma verdade concreta, factual, se preocupa em averiguar o que ocorreu a determinadas pessoas em determinados lugares. A verdade da literatura é uma verdade moral, abstrata, universal, porque persegue o que acontece a todos em todos os lugares, a qualquer tempo. O livro busca a verdade histórica, através da narração do que ocorre a três personagens em um instante mínimo, e também a verdade da literatura com uma moral, como se faz em romances. O livro é um oxímoro. Quem dera eu tivesse conseguido achar essas duas verdades.
O passado é a sua principal fonte de inspiração? O que me inspira é a relação entre o passado e o presente. Eu não escrevo romances históricos porque não gosto da ideia. Quando fiz Soldados de Salamina, descobri que o presente, isolado, não pode ser explicado. O passado é uma dimensão do presente. Sem ele, não podemos entender o agora. No entanto, o presente também modifica o passado, é falso achar que ele está quieto, porque novos descobrimentos podem mudar tudo. Descobri também algo que mudou minha forma de escrever: o individual não pode ser explicado sem o coletivo. Eu não posso explicar a mim mesmo sem a sociedade com a qual vivo. Isso deu uma dimensão histórica aos meus livros.
Quanto há de ficção e realidade em Soldados de Salamina? A “História”, com letra maiúscula, é toda real, mas o que se atém a mim eu posso inventar. Eu trabalhei como um historiador, tentando averiguar tudo o que era possível, mas muitas partes eram sombrias. A partir do momento em que a História não pode mais explicar, a ficção ilumina. Se a ficção é boa, pode nos levar além da História.
O senhor acha que, nos próximos romances, separará ficção da realidade? A ficção pura não existe. Toda ficção parte da realidade. Quem acha que a ficção pura existe não sabe como ela funciona. Nada é ficção, nem Shakespeare nem Homero, todos mesclam com a realidade. No último livro que escrevi, que espero que fique pronto logo na Espanha e aqui também, volto para a ficção, o que me custou muito trabalho, tanto quanto escrever uma obra sem ficção.
Quais escritores latinos o senhor admira? Para mim, os escritores latino-americanos são muito importantes, porque criaram uma literatura muito potente. Foi a primeira literatura em minha língua que me interessou, com escritores com Jorge Luis Borges, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar. Roberto Bolaño era, sobretudo, um amigo, mas não sei se me influenciou. No entanto, há outros escritores que são muito importantes para mim, como o italiano Ítalo Calvino e o francês Flaubert, que foi o modelo para o primeiro livro que escrevi. Gosto muito também da literatura anglo-saxã, principalmente a americana. Ernest Hemingway me influenciou bastante. Ele é um escritor indispensável.
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Fonte:  http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/entrevista/javier-cercas-quando-a-historia-nao-pode-explicar-a-ficcao-ilumina/08/07/2012

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