sábado, 21 de julho de 2012

Cem anos e mais

 CLÁUDIA LAITANO*
 
Pessoas comuns, gente que nunca vai ocupar a atenção de um biógrafo ou mesmo escrever um livro de memórias, contam para si mesmas e para os outros uma história que segue uma lógica narrativa – costurando episódios às suas causas e consequências e incluindo reviravoltas e pausas dramáticas no enredo, como qualquer ficção ou texto biográfico. Essas “autoficções” costumam ser uma combinação nem sempre muito organizada de fatos biográficos, recordações de família, memórias de grande amores e realizações – em um balanço mais ou menos equilibrado de sonhos, frustrações, conquistas e arrependimentos.

Ao contrário dos livros, porém, nossas memórias de vida mudam o tempo todo. Personagens são eliminados sumariamente ou resgatados do limbo das notas de rodapé conforme o protagonista lança sobre eles um olhar mais ou menos condescendente ao longo da vida. O pai carrasco da juventude pode virar um sábio algum tempo depois – mesmo que tenha morrido muitos anos antes e não tenha feito nada para recuperar sua imagem desde então. A paixão avassaladora pode perder importância diante de um amor sereno – ou vice-versa – e até o sofrimento excruciante pode ser reinterpretado tempos depois como o motor de um movimento que traria sua cota inesperada de contentamento. O único volume de memórias realmente definitivo provavelmente foi aquele escrito por Brás Cubas – começando do fim e de lá organizando tudo o que veio antes, sem medo de ser criticado ou mal-interpretado pelos leitores do lado de cá da existência.

Outra forma possível de recontar a própria vida é tentar traçar a rota das pessoas que, de forma mais evidente, ajudaram a moldar aquilo que mais tarde nos tornaríamos. Não apenas as pessoas mais próximas, como pais, amigos íntimos ou grandes amores, mas todas aquelas que, em algum momento, nos chamaram a atenção para algo que não tínhamos percebido antes ou apontaram um caminho que ainda nem sabíamos que era exatamente aquele que estávamos procurando.

Quando eu estava saindo da faculdade, há exatamente 20 anos, conheci um jornalista aposentado que mal saía de casa. Recebia os muitos amigos sentado numa poltrona instalada no meio da sala, sempre com um livro no colo e uma história para contar. Recebia também gente que ele não conhecia, estudantes como eu, com a generosidade e a inesgotável paciência de quem estava em paz com o futuro – mesmo quando ele já começava a parecer cada vez mais curto.

Narrava com graça e riqueza de observação histórias do tempo em que editava as páginas de cultura do jornal e escrevia crônicas semanais. Lembrava as viagens que fez, as pessoas que conheceu e as obsessões intelectuais que cultivou ao longo da vida. Acreditava que o mundo estava cheio de histórias para serem descobertas – e parecia ter um estoque inesgotável delas para sugerir a quem se interessasse em contar.

Quando nos conhecemos, não imaginava que um dia eu também editaria páginas de cultura e escreveria crônicas, mas foi o que acabou acontecendo – por coincidência, influência ou simplesmente porque já era o que eu queria, mesmo que ainda não soubesse.

Neste sábado, completam-se 100 anos do nascimento de Carlos Reverbel, esse jornalista sábio e generoso que amigos e leitores lembram com tanto carinho, respeito e saudade. O que aprendi na convivência com ele permanece vivo e em transformação – e essa é a beleza das vidas que se misturam e se prolongam para além de uma ou de outra: a possibilidade de levarmos adiante o que dos outros fica em nós.
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* Cronista da ZH
Fonte: ZH on line, 21/07/2012 
Imagem da Internet: Carlos Reveerbel.

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