Paulo Ghiraldelli Jr*
Está
na moda a crítica ao “consumismo”. Mas, de onde vem essa crítica?
Poderíamos investigar como ela se tornou tão popular a ponto de todos,
em determinado momento, acharem que estão falando algo grandioso,
“intelectual”, moralmente sadio ao dizerem com boquinha torta: “isso é
consumismo”.
Tenho algumas pistas.
É claro que a pista mais fácil é vermos
nossas raízes católicas. A Igreja sabia-se uma instituição feudal e,
quando veio a sociedade de mercado, ela logo percebeu que viria também a
“sociedade de massas” e a “sociedade de consumo”, e que nesse novo
mundo todos se relacionariam com todos segundo regras dadas pelo mercado
e pela política nele envolvida, não mais pelo fio religioso. O mundo de
príncipes e servos, todos cristãos antes de serem qualquer coisa, e
todos obedientes ao Papa, terminaria. Então, a Igreja foi condenando
como pecado tudo que poderia ser visto como próprio desse novo mundo.
Ela sabia que perderia a batalha, mas sempre esteve disposta a retardar o
máximo a sua derrocada. Condenou a usura, o dinheiro se reproduzindo
por ele mesmo, sem a mão divina como o que pode criar. Também condenou o
consumo, a satisfação com bens materiais “efêmeros”, que desviaria a
idéia de felicidade para outra coisa, o prazer, e não mais a
contemplação do Bom, Belo e Verdadeiro que é Deus.
Uma das críticas ao “consumismo” e mesmo
ao consumo vem dessa mentalidade. Mas é só? Não! Um dos inimigos da
Igreja, o marxismo, também deu seu empurrão na mesma direção.
Marx considerou a sociedade de mercado
como sendo ela própria geradora de ideologia, ou seja, falsa
consciência. Como tal falsa consciência se manifesta? Ora, pela
alienação: as pessoas que trabalham e produzem as coisas são alienadas
dessas coisas e estas, então, não mais como produtos, mas como
mercadorias, vão para o mercado e aparecem para as pessoas, seus antigos
fabricadores, como aquilo que as comanda. Por que as coisas é que
comandam? Porque se tornam elas próprias coisas desejáveis, necessárias
ou não, e então aparecem como seres vivos diante do seu antigo produtor,
agora alienado delas e com poder de compra limitado. Essas coisas,
obtendo assim poder de comando, exigindo das pessoas que as levem para
casa, ganham feição de sujeitos, de coisa viva, e as pessoas que as
querem obedecer, ou seja, levá-las para casa, são então, nessa relação,
transformadas em objetos, passam a ser a parte morta da relação. As
coisas são fetichizadas e as pessoas são coisas, isto é, reificadas.
Inverte-se a relação entre o homem e os objetos. Cria-se aí uma segunda
alienação: a alienação da própria consciência, ou seja, a consciência
dominada pela ideologia. A consciência humana, agora como falsa
consciência, toma o mercado e as coisas nele não como o que realmente dá
ordem para tudo, mas segundo a ilusão de que não são as coisas que dão
ordens, mas que ainda é cada homem que vai comprá-la o seu senhor.
Aliás, é por causa disso que o
liberalismo, que prega a idéia de indivíduo autônomo como um direito, é
tomado por Marx como também ideologia. Pois na sociedade de mercado essa
crença na autonomia individual humana não estaria ocorrendo.
O consumo aparece aí, então, como uma
parte da ideologia: tomo-me autônomo e passo a exercer essa autonomia,
falsamente, no lugar em que menos sou autônomo, o de consumidor.
Reifico-me cada vezmais se deixo meu desejo, que não seria provocado por
um desejo real, natural, mas forçado ideologicamente, a alimentar a
segunda alienação. Fico iludido. Há momentos em que percebo isso, quando
estou abarrotado de coisas em minha casa sem utilidade ou quebradas ou
coisas que eu nem gosto, mas que me foram empurradas goela abaixo por eu
ter vivido a situação invertida. Assim, o consumismo foi visto pelo
marxismo como um coadjuvante do pecado maior do mercado, a produção
desse tipo de ideologia.
Assim, padres e marxistas, pessoas
“espiritualizadas” e “materialistas”, deram as mãos para alimentar a
mentalidade que vê erro moral no consumo, quase sempre tomado como
“consumismo”. Aliás, fala-se em “consumismo”, mas, para essas duas
doutrinas, o consumo e consumismo pouco se diferenciam, uma vez que os
dois surgem da mesma fonte para ambos: o mercado ou, como dizem “o
capitalismo” – palavra que pronunciam como quem pronuncia o nome de
Lúcifer.
Felizmente, há uma terceira pista para a
crítica do consumismo. Digo felizmente porque dela podemos aprender
algo interessante para nossas vidas. Não vejo qualquer graça nas
anteriores. Elas me parecem um tanto que fantasiosas demais. Possuem
dados reais, mas, no todo, não ajudam muito a vivermos melhor. A
terceira pista é a da crítica antes à “atitude do consumo” que ao
consumo ou consumismo e está ligada ao nome de Hanna Arendt.
Começo com um exemplo. Li no Facebook, num post
que tinha lá o rosto da Fernanda Montenegro, a frase “A beleza só
importa nos primeiros quinze minutos, depois é necessário oferecer algo
mais”. Embaixo da frase tinha lá umas garotas dizendo “aí Fernanda”
aplaudindo e gritando. Talvez a mesmas que, não raro, aparecem também no
Facebook se descabelando contra o tal “consumismo”. É exatamente isso
que Arendt tomou como sendo a “mentalidade do consumo”: a perda da
capacidade de poder apreciar e admirar, pois, logo depois (Fernando deu
quinze minutos), é necessário outro entretenimento, pois o tédio voltou,
uma vez que a própria beleza não é mais admirável. Perdi a educação dos
olhos para contemplar a beleza, de vê-la sob diversos ângulos, de
viajar mundos por ela aberto enquanto beleza, enquanto pura estética,
que exigiria da minha capacidade saber valer o juízo do belo de Kant:
apreender sem interesse. Ou dizendo de uma forma minha,
própria: tomar o interessante pelo que ele é interessante e, no entanto,
desinteressadamente. Quem perde essa capacidade ou quem nunca a
adquiriu é chamado por Arendt de o filisteu.
O filisteu da cultura pode ser inculto e
culto. Ambos só olham o que tem para eles alguma utilidade imediata.
Consomem no sentido de devorar, de fazer acabar, de fazer desaparecer. E
querem então passar para outro entretenimento, para outro consumo. O
primeiro faz isso dentro de seus limites. O segundo faz isso até com a
cultura sofisticada. Ele a entende, mas não consegue vivê-la e
vivenciá-la, porque a toma como mera utilidade para sua ascensão social,
para seu status, para o seu proveito que não é o proveito da admiração,
mas exterior, o de poder se por socialmente distante do filisteu
inculto e parecer ser aquele que realmente aprecia o que lhe é
oferecido.
Fernanda Montenegro, ao menos no cartaz
do Facebook, é a filistéia cultivada. Ela vê a beleza como o que só dura
quinze minutos. Toda beleza. Depois, é preciso servir outro prato, algo
novo. A indústria do entretenimento, ao pegar um livro e resumi-lo numa
peça modernizadora do clássico, faz exatamente isso. Transforma o
produto cuja beleza exigia disciplina e compreensão da objetividade da
obra – suas razões de existir – por um novo produto que pode ser
consumido em quinze minutos, porque depois a indústria já terá outro
tipo de coisa a oferecer – ou deverá ter. Vivacidade será o próximo
atrativo, talvez? Charme, talvez? Espírito? Sabe-se lá o que se pode
oferecer depois! E será que essas coisas seriam perenes? Ledo engano
pensar que seriam mais importantes ou mais duradouras dentro do clima de
quem não conseguiu dar mais que quinze minutos para a beleza. Ou
Fernanda perceberia que ao dar quinze minutos para a beleza ela talvez
não consiga dar vinte minutos para outros “atrativos”?
A idéia básica de Fernanda (tenha ela
percebido ou não) é de que a mulher deve ser um poço sem fundo de
pequenos entretenimentos. Pois só a beleza não basta. Inverte-se a
coisa: a beleza, que poderia ser apreciada uma vida, não pode ser
apreciada. Gostar dela é vulgar. É preciso exigir da mulher mais e mais.
Como quem exige uma sessão corrida de filmes na TV, sem muito se
importar com o conteúdo. Eles precisam entreter e divertir. Esse é o
“espírito da sociedade de massas” e da “sociedade de consumo” de Arendt.
É nessa “atitude de consumo” que mora o problema e onde se baseia a
melhor crítica do consumo ou consumismo. Penso que é por aí que Olgária
Matos iria, ao falar contra a “sociedade de consumo”, ainda que, às
vezes, ele case isso com as regras da sociedade de mercado.
Em todo caso, tenho minhas dúvidas que
as pessoas que falam contra o consumismo tenham uma postura realmente
crítica em relação a ele. Penso que falam por falar, e que as
mentalidades acima descritas são confusas nas suas cabeças. Talvez se
perguntarmos a cada uma delas por que criticam o tal “consumismo”, não
tenham nada a dizer.
--------------------------* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Acompanhe o filósofo agora também como cartunista,
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/07/19/por-que-voce-critica-o-consumismo/
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