Arnaldo Jabor*
Fui ver o "Cavaleiro das Trevas", mas não vou analisar o Batman como
'arte'. Agora existe um novo tipo de coisa - um filme-game que não se
mede por estrelinhas ou bonequinhos aplaudindo. Não existe mais ‘gostei’
ou ‘não gostei’. Os roteiros não contam mais, a mise-en-scène é a
tempestade de planos de três segundos montados em enxurrada com efeitos
especiais incessantes.
O significado dos filmes está além deles. Interessa ver os conceitos
que estão por baixo das cenas, a intenção por baixo da ação. O filme se
esconde no décor - ali está o verdadeiro sentido. Acabaram mocinhos x
bandidos; as personagens principais são as coisas, os computadores, a
tecnociência.
Esse filme se pretende mais complexo que os outros; mas não é. Parece
"complexo", mas é apenas "emaranhado". Isso. Assim como o mistério da
arte é abolido no "entretenimento", nos atuais filmes de ação a
"complexidade" é substituída por um simulacro: o proposital
"emaranhamento", que nos dá a sensação de "profundo". É claro que o
Batman é um herói genial, que os outros empregados da Marvel são heróis
encantadores das histórias em quadrinhos. Nada contra as aventuras
maravilhosas que tinham uma cândida simplicidade nos enredos. O que
enche o saco é ver como os produtores se apropriam dessas historinhas
ingênuas e tentam dar-lhes um sentido do ‘ar do tempo’, construindo um
sarapatel de fatos políticos: terrorismo, patriotic act, política do
medo, impotência social, numa espécie de ‘rock do americano doido’...
"Ah... deixa de ser chato; é apenas gibi filmado..." Gibi é o cacete -
alguns desses filmes são manifestos com interpretações ridículas sobre o
momento atual. E ninguém percebe.
No entanto, gostei muito do Batman 2, com o Heath Ledger
criando uma obra-prima rara no cinema, uma ilha do cinismo
contemporâneo, misturando bem e mal, misturando horror e simpatia.
"Escolhi o caos" - ele diz para o Batman. Heath, de certo modo, faz uma
crítica ao próprio filme. Heath é quase uma paródia do "grande
espetáculo", é um marginal dentro do elenco.
Claro também que do meio desse barroquismo digital, linguagens e
verdades podem estar nascendo. Mas se descascarmos as camadas de
significação, em meio ao enxame de efeitos especiais, podemos ver Batman e
outros como "sintoma", como queriam os professores da "filmologia"
francesa. Nos anos 60, Gilbert Cohen-Seat criou uma espécie de filosofia
do cinema, a filmologia, em que analisava não só os filmes, mas o berço
de onde saíram, o chão histórico de onde brotavam. Foram várias fases
desse pós-cinema de porrada e velocidade.
Nos filmes violentíssimos dos anos 80, com os atores brutais como
Sylvester Stallone, Van Damme etc., Hollywood inventou o prazer do
sangue, das facas dentadas, dos peitos estourados, das metralhadoras
fálicas. Era a safra do cinema pós-Vietnã, como uma vingança na tela
pela derrota humilhante dos americanos pelos guerreiros comedores de
arroz; eram um show de força para compensar o fracasso da guerra.
Mais tarde, ainda antes do "11 de Setembro", rolou a grande onda de
filmes sobre a destruição de Nova York. Parecia uma sugestão ao Osama,
que acabou realizando essa volúpia destrutiva, satisfazendo esse
estranho desejo de autoextermínio dos americanos. Por quê? Ninguém filma
Paris acabando ou Londres em pó. Mas, americano paranoico só pensa em
inimigos. Podem conferir as obras: os USA invadidos por "Godzillas", por
discos voadores letais, por asteroides, por explosões no "Armageddon"
(há em Godzilla uma cena absolutamente igual à multidão real de
2001, fugindo pela rua, com as torres se suicidando ao fundo. Aliás, no
mundo real, as próprias torres encarnavam uma arrogância arquitetônica,
pedindo bombardeio.)
Osama, o Coringa do deserto, acabou com a ideia de guerra. Osama nos
atacou de outro tempo - fora da história. A queda das torres do WTC está
nos filmes de hoje como uma cicatriz na dramaturgia. Neste Batman 3 também tiveram o prazer de massacrar a Bolsa de Valores (dezenas metralhados como em Colorado), de explodir o Super Bowl, de ver a cidade tomada, a ponte doi Brooklyn desabando. Por quê?
Recentemente, a violência dos "estoura-peitos" e o suicídio virtual
dos filmes-catástrofe deram lugar a uma cultura de massas mais
"reflexiva". Hollywood, claro, se apropriou até dos heróis anarquistas
ou psicopatas, ameaçando a ‘boa’ sociedade. Passaram a fingir uma
‘crítica ao Sistema’ como em Matrix ou o Clube da Luta, que foi a tela de onde surgiu o nosso assassino Matheus, alguns anos atrás em São Paulo, lembram?
Hoje, a verdade de Hollywood está fora das telas, nas motivações
financeiras e paranoicas dos produtores. Já se disse que o 11 de
Setembro em NY foi o único momento de realidade na escalada do mundo
virtual. Depois da catástrofe das torres e agora, com a tremenda crise
do mundo atual, o cinema só quer faturar em cima da confusão, explorar o
inexplicável com fábulas ridículas com terroristas angustiados,
monstros do mal e heróis do bem, tudo bem simplificado para agradar à
patuleia. Onde estão os comportamentos humanos verdadeiros? Ninguém liga
mais para isso.
Este filme não é o Bem contra o Mal. Fala sobre a liberdade do povo,
mas deixa um odor republicano no ar. Gozamos o tempo todo com o mal e,
no fim, os produtores nos "concedem" o arbítrio de escolher o bem,
quando a tecnologia e as cenas celebram o mal durante toda a projeção.
Este "meio" é muito mais importante que as "mensagens" que, ao final,
vêm em pequenas lições morais defendendo a família, a solidariedade, o
amor.
No Batman, a política e a polícia tentam dar conta da
imensidão da corrupção e da criminalidade global. Ninguém sabe o que
fazer, mas o cinema americano acha que sabe, com suas alegorias
paranoicas e lucrativas. Quando Osama-Coringa atacará de novo?
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* Cineasta. Escritor. Cronista.
Fonte: Estadão on line, 31/07/2012
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