segunda-feira, 16 de julho de 2012

Deus e a máfia do cinismo













A convite do autor, apresentei "O Tesouro Escondido", de José Tolentino Mendonça. Aqui fica o texto sobre a fé num contexto de cínicos. 

I. O Tesouro Escondido reúne uma série de ensaios sobre a fé, num tempo em que a fé é desprezada, num tempo em que a fé é pasto para gozação e cinismo. São ensaios sobre a espiritualidade, sobre o caminho solitário e silencioso da espiritualidade, num tempo em que a solidão e o silêncio são animais raríssimos e desprezados. E, neste sentido, este é um livro de um guerreiro. O autor empunha um sorriso e não uma espada, mas não deixa de ser um guerreiro. É um monge guerreiro, à moda antiga. Apesar da sua doçura, apesar da ideologia tolentina (a amizade, a concórdia, o trazer para junto de si quem pensa de forma diferente), Tolentino Mendonça está em guerra com o tempo que vivemos, está em guerra com aquela cultura pós-moderninha que se tornou hegemónica. E logo no primeiro texto deste livro encontramos uma descrição perfeita desta cultura pós-moderninha: é a cultura das "cascas de cebola". É uma cultura sem um centro vital, que recusa a existência de uma substância sólida no seu centro, e que diz que apenas existem interpretações, pontos de vista, opiniões, emoções. 

II. Por outras palavras, estas "cascas de cebola" não passam de meros jogos de palavras, feitos num universo gasoso, bem longe dos dilemas morais dos homens. Representam a tal "viragem linguística" que acompanhou a pós-modernidade: as angústias, os dilemas morais, as escolhas éticas que temos de fazer deixam de ter substância, e passam a ser meras palavras. Tolentino Mendonça ataca esta farsa. No fundo, Tolentino vem dizer-nos que isto de pensar e de escrever não é só fazer joguinhos de palavras, não é só fazer joguinhos estéticos e formais, não é só "opiniões" e "perspectivas". É preciso defender qualquer coisa. É preciso representar qualquer coisa. É preciso criar um castelo. E é defendê-lo. Como é óbvio, o castelo de Tolentino Mendonça é a cristianismo. Por oposição às cascas pós-moderninhas, o autor propõe a visão cristã do mundo, essa coisa que é imune a variações históricas, de cultura, de ideologia ou classe. 

III. Num livro anterior, O Hipopótamo de Deus, a linguagem era de Atenas; neste O Tesouro Escondido, o autor fala-nos com a linguagem de Jerusalém. Mas a mensagem é a mesma: o "cristianismo não é o parque jurássico", é algo vivo que tem uma mensagem permanente a dar em todos os momentos históricos. E, neste momento histórico, aquilo que mais preocupa Tolentino Mendonça é esta cultura pós-moderninha que pode ser dividida em duas grandes faces: o cinismo e o individualismo extremo. Comecemos pelo individualismo. 

IV. Numa das passagens mais bélicas do livro, Tolentino Mendonça diz-nos o seguinte: "precisamos de passar de um entendimento egocêntrico da oração para um entendimento teocêntrico". Ora, isto é o mesmo que lançar um panzer contra o ar do tempo. Aqui, o autor já não tem um sorriso. Tem a espada, e está a enfrentar o dogma central do nosso tempo: não, o "eu" não é tudo. O mundo não começa nem acaba no "eu"; há coisas superiores ao "eu", mais importantes do que as nossas opiniões e emoções. 

V. A par do individualismo extremo do "eu", Tolentino Mendonça está preocupado com o cinismo vigente. E há, de facto, uma cultura do cinismo, do calculismo, que é um efeito das "cascas de cebola" já discutidas. "Se tudo é mera interpretação, então para quê acreditar?", eis o slogan cínico desta cultura. E assim, para o este engraçadismo pós-moderno, tudo fica transformado numa pasta disforme. É tudo pasto para a comédia cínica.  Repare-se: não estou a dizer que existem coisas que não podem ser gozadas. Para a sátira e crítica, nada existe de sagrado. Mas vivemos num tempo em que a suposta sofisticação só está do lado de quem não acredita em nada, de quem tudo transforma em brincadeira formal. E isso já não é aceitável. Neste ambiente, as crenças são meros sacos-de-boxe. Parte-se do pressuposto de que o crente é idiota ou louco, logo, a "fé" só pode ser assunto para piadas, para textos gozões que ficam pela rama. Mais: a fé e Deus só são tolerados quando aparecem numa forma cómica ou exótica, como no episódio da chuva de sapos do filme "Magnólia". Quando a coisa fica mais séria, as pessoas reagem mal. Por exemplo, hoje em dia, um filme como "A Paixão de Joana D'Arc" de Carl T. Dreyer seria passado a ferro pela crítica e pela opinião pública. Porque tem a violência da fé, ali em carne viva. É contra estas preguiçosas "tentações do cinismo" que Tolentino Mendonça nos alerta. O Tesouro Escondido é mesmo um livro contra a máfia do cinismo que se instalou nos neurónios do nosso tempo.  
Não se pode pregar a fé a estômagos vazios.Nem se pode adormecer o protesto com novenas.
A escrita hoje tem que ser um combate: pela justiça social, pela ditribuição equitativa da riqueza e dos recursos e pela dignidade do homem.
Cada vez mais quem escreve é chamado a intervir, a aproximar-se do homem,seu vizinho e seu próximo ,e dizer de que lado está.
A ecrita é assim uma TRINCHEIRA.E é nela que a palavra se deve afirmar,na defesa intransigente de uma moral quotidiana que levante quem está no chão, quem precisa de auxílio e de caminhar em frente.
Novos tempos,mas sempre a mesma ética e a mesma exigência na ponta da caneta.

OBS. do BLOG: Tenho comigo o LIVRO: O TESOURO ESCONDIDO, aqui na França, em Annecy. Uma preciosidade rara que me acompanha quando o francês me satura...
--------------
Texto de  Henrique Raposo (www.expresso.pt)
Fonte:  http://expresso.sapo.pt/deus-e-a-mafia-do-cinismo=f632610

Nenhum comentário:

Postar um comentário