Marília Moskcovitch*
Por
pressão das bancadas fundamentalistas, Brasil pode ter lei que reduz
grávidas a objetos reprodutivos.
É hora de barrar ameaça
Um mundo onde as mulheres férteis são corpos a serviço do Estado.
Elas servem para gerar bebês, reproduzir a espécie. Seus corpos são
assunto público. É dever delas e de toda a sociedade cuidar desses
corpos, mantê-los em boas condições. Elas são um serviço. Atentar contra
este serviço é crime: qualquer ameaça a sua integridade física é punida
severamente, quer venha delas mesmas ou de outrem. Por isso, são
confinadas em espaços ultra-seguros, numa rotina rígida que inclui todas
as práticas que a medicina considera apropriadas antes, durante e
depois de uma gravidez. A vida destas mulheres vale menos do que os
óvulos ainda não fecundados em seus ovários, e menos ainda do que a
existência da potencial pessoa, ainda em forma de feto enquanto estão
grávidas.
O cenário de horror que descrevo foi inspirado no livro O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale),
de Margaret Atwood. Está longe da ficção, porém: a legislação
brasileira pode instaurar o mesmo tipo de contexto se algo não for feito
rápido. Muito rápido.
O Projeto de Lei 478/2007, “Estatuto do Nascituro” (acesse na íntegra aqui),
tramita na Câmara Federal e deve ir a votação dentro de pouco tempo. Já
em seus primeiros parágrafos define que “o ser humano” começaria “na
concepção”. Um erro crasso, já que a própria legislação brasileira, que
proíbe o aborto, permite a pílula do dia seguinte. A pílula do dia
seguinte não permite que o óvulo fertilizado se fixe nas paredes do
útero e, se esse óvulo fertilizado já é vida (segundo as correntes
religiosas que endossam esse projeto de lei), a pílula do dia seguinte
seria o equivalente a um assassinato. Ejaculação também. É neste tipo de
distorção que o Estatuto do Nascituro se baseia. Uma discussão muito
lúcida sobre essa suposta “defesa da vida” está no texto “Aborto: é
possível ser pró-vida e pró-escolha ao mesmo tempo?” do conhecido
cientista Carl Sagan (leia aqui).
O texto do PL defende que o “nascituro” (ou seja, algo que pode ser
um embrião ou um feto em qualquer estágio de desenvolvimento, pois não
há especificação alguma sobre isso no projeto) tenha direito à vida
(antes de nascer estaria ele morto?), à educação (intra-uterina?), à
saúde (porque, afinal de contas, a saúde da grávida não importaria
tanto, se não fosse pelo embrião ali dentro), à alimentação (alguém já
viu grávida fazer greve de fome? Seria crime então uma mulher que passa
fome engravidar, se esse PL fosse aprovado?), entre outras barbaridades e
incongruências. Ao fazê-lo, coloca o embrião e o feto enquanto sujeitos
de direitos numa posição mais alta do que as próprias mulheres grávidas
na hierarquia de quem “merece” mais direitos e proteção do Estado e da
sociedade. A função da pessoa grávida passa a ser interesse público,
como se ela estivesse prestando um serviço à sociedade.
No artigo 8º chega a ser ridícula a proposição de que seria dever do
SUS tratar o “nascituro” em condições iguais às de uma criança. Os
artigos 9º e 10º buscam enfatizar que todo embrião ou feto
necessariamente tem que nascer, mesmo que não haja expectativa de vida
fora do útero, como no caso dos anencéfalos cujo aborto já é entendido
como legal no Brasil.
Mais à frente, o artigo 13º é o que talvez represente o retrocesso
mais odioso de todo o PL: propõe que todo embrião ou feto concebido a
partir de estupro (que eles têm a “delicadeza” de chamar apenas de
“violência sexual” no texto) também tenha que nascer. Este artigo ignora
completamente a situação de violência vivida pela pessoa grávida e
oferece uma pensão durante o primeiro ano de vida. Um suborno estatal
para que pessoas que foram estupradas não façam aborto.
O texto ainda é recheado de punições penais desproporcionais caso as
pessoas grávidas (que, neste escopo, se tornariam menos pessoas ao se
tornarem grávidas) não sigam essa cartilha do bom comportamento, que não
apresenta sequer critérios específicos como parâmetro do que “causa
mal” ao tal “nascituro”, do que seria “negligência”, etc. uma vez que
nem mesmo na medicina há consenso sobre que práticas são melhores ou
piores para um feto em gestação.
Há risco real de estas atrocidades serem aprovadas em breve. Por este
motivo os movimentos de mulheres tomaram a dianteira em organizar um
abaixo-assinado nacional que mostre, nas audiências públicas e gabinetes
de políticos, que a sociedade brasileira desaprova essa tutela; que
entende que um projeto de lei como esse é uma ameaça muito grave aos
direitos humanos de mulheres. Embora uma assinatura num documento
digital pareça pouco, vale lembrar que a opinião pública ainda tem algum
peso (ainda bem) na atuação de vários representantes e instituições. É o
mínimo, mas o mínimo precisa ser feito.
A declaração geral do abaixo assinado, mostrando pontos cruciais de
retirada de direitos que essa legislação prevê, pode ser lida aqui. No mesmo endereço, você também pode contribuir com sua assinatura no documento.
O livro de Margaret Atwood é terrível. Terrível por ser verossímil,
se não agirmos rápido para garantirmos direitos básicos que não deveriam
sequer estar em disputa. Ela descreve, na distopia que nos horroriza, a
relação que as aias, servas reprodutivas, têm com o sexo obrigatório
oferecido aos Comandantes – homens em altas posições sociais, para quem
trabalham.
“Minha presença aqui é ilegal. É proibido para nós ficarmos sozinhas
com os Comandantes. Nós servimos para procriar: não somos concubinas,
gueixas, cortesãs. Pelo contrário: o máximo possível foi feito para nos
tirar destas categorias. Não deve haver nada de interessante em nós, não
deve haver espaço para a luxúria; nenhum favor deve ser trocado, por
nós ou por eles, e não deve haver brechas para o amor. Somos úteros com
pernas, apenas: invólucros sagrados, cálices ambulatoriais.”[1]
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[1] Margaret Atwood, The Handmaid’s Tale (“O Conto da Aia”), capítulo 23, tradução livre.
[1] Margaret Atwood, The Handmaid’s Tale (“O Conto da Aia”), capítulo 23, tradução livre.
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* Por Marília Moskcovitch, editora de Mulher Alternativa
Fonte: http://www.outraspalavras.net/2012/07/23/utero-servico-a-sociedade/
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