PAULO ROBERTO DE ALMEIDA*
Religiões são construções humanas, profundamente humanas (no sentido
social ou “societal”, da palavra). Elas podem ter sido elaboradas por
algum “profeta” individual, mas são mais exatamente uma construção
envolvendo mais de um ator. Como resultado de seu processo de
“fabricação”, elas guardam íntima relação com os valores e as crenças
normalmente partilhados por uma dada sociedade num determinado momento
histórico. Este é o caso das grandes religiões modernas – cristianismo,
islamismo, budismo –, criadas entre os últimos séculos da antiguidade
(inclusive o judaísmo moderno) e os primeiros séculos da “era Cristã”
(não há como evitar, aqui, o padrão universal de contagem do tempo,
criado pelo cristianismo, uma das mais poderosas forças sociais de todo o
mundo). Excluo das presentes considerações o hinduísmo, que não se
tornou tão “universal” como as duas grandes religiões concorrentes, o
cristianismo e o islamismo.
Todas as grandes religiões apresentam “benfeitorias”, do ponto de
vista da “ideologia” e da “vida social” de uma certa época, sem o que
elas não teriam tido sucesso e se disseminado de modo tão amplo. Nem
todas essas benfeitorias representam, contudo, progresso absoluto do
ponto de vista dos direitos humanos e dos direitos da mulher, mais
especificamente, se é possível aceitar o conceito de “progresso” num
sentido lato (não parece haver progresso moral da humanidade, stricto
senso, como uma interpretação estritamente darwinista da vida social
poderia deixar entender).
O judaísmo, por exemplo, ao ressaltar os valores da vida humana, da
igualdade entre os seres, da submissão a um conjunto de regras para a
conduta em sociedade – como evidenciado na lei mosaica –, representou um
progresso em relação às religiões de cunho vingativo então existentes. O
cristianismo, por sua vez, enfatizou a fraternidade dos homens, ao amor
ao próximo, o perdão e a caridade como “benfeitorias” que muito fizeram
para elevar o padrão moral da humanidade. Da mesma forma, o budismo
trouxe o respeito à vida humana, ou melhor, a qualquer forma de vida a
um patamar certamente elevado, enfatizando, como o cristianismo, o
respeito a todo ser humano como princípio universalmente válido. Essas
três religiões me parecem assumir plenamente a tolerância como regra de
conduta válida na vida social, mesmo se variantes “fundamentalistas” do
cristianismo militante (“evangelizador”, ou de “conversão”) tenham
conspurcado a mensagem cristã da aceitação das opiniões de terceiros.
Em momentos diversos de suas trajetórias históricas, as sociedades
que abrigaram essas três grandes religiões com vocação “universalista”
passaram por processos reais de secularização e de laicização que
diminuíram em muito o papel da religião (e da liturgia, isto é a forma
organizada e talvez “burocratizada” da religião) na organização da vida
social, na socialização das pessoas, na condução da vida diária. A
religião passou à esfera do privado e a vida política e social passou a
ser organizada em bases legais e racionais. Este “caminho weberiano” não
parece ter sido experimentado, ainda, pelo islamismo, que permanece
como um “bloco” indivisível e praticamente impermeável a variações
interpretativas. Não houve, como na história do cristianismo, por
exemplo, nenhuma divisão entre escolas dotadas de liturgias diferentes
(como ocorreu, primeiro, com a cisão entre ortodoxia e catolicismo,
depois com a divisão deste na reforma protestante).
O islamismo “penetra” e domina a vida individual como nenhuma outra
religião de vocação universalista o faz. Ele comanda uma submissão
total, ocupando não apenas os espaços da vida familiar e social, mas
também, em grande medida, os campos político e econômico. Mesmo
sociedades islâmicas contemporâneas que passaram por processos de
relativa secularização ressentem uma enorme pressão para a aplicação da sharia, isto é, a lei costumeira dos tempos do profeta, cujos princípios parecem ser mais vingativos do que propriamente retributivos.
Essa submissão não se submete, ela mesma, ao crivo da razão, isto é,
ao trabalho exegético, eventualmente contestador, que caracteriza o
cristianismo como um todo. A “profissão” de teólogo, ou intérprete dos
preceitos “divinos” – típica dos povos da Bíblia – praticamente inexiste
no islamismo, que abriga apenas “conhecedores” da palavra do profeta.
Não há propriamente um “diálogo” com deus, ou com seus “intérpretes
oficiais”, uma vez que o que está escrito no livro sagrado é considerado
como a própria palavra de deus, insuscetível, portanto, de
interpretações ou de “aperfeiçoamentos”.
A característica mais importante a separar essas religiões, porém,
não é apenas a capacidade de interpretar a palavra divina, e sim a
faculdade de contestá-la. É possível, dentro da religião cristã,
contestar a palavra de Deus, o que pode levar, no máximo, à excomunhão
do “incréu”, o que em outros tempos poderia resultar na fogueira. O fato
histórico é que essas sociedades evoluíram ao ponto de abolir a
condenação da pregação anti-religiosa. É possível ser ateu, iconoclasta,
blasfemo militante e até mesmo apóstata, sem incorrer nas iras da lei
ou no castigo da instituição religiosa. É possível abandonar ou trocar
de religião, sem ter de temer acusação de apostasia ou de crime contra a
religião.
Nada disso é possível na religião islâmica: viver à margem ou contra a
religião é extremamente perigoso, proclamar publicamente apostasia ou
blasfêmia constitui um grave crime contra a religião do profeta,
passível da pena de morte. Mas é possível, publicamente, em terras do
Islã, repudiar a religião cristã, ou qualquer outra, que não a do
profeta. É possível, à esposa não muçulmana de um verdadeiro “crente”,
conservar a sua fé, mas ela não poderá educar os seus filhos senão na
religião do profeta.
Trata-se de um verdadeiro “imperialismo” da religião, que assume
aspectos por vezes trágico na vida individual ou no relacionamento com
pessoas de outros credos. O assunto das charges dinamarquesas, no início
de fevereiro de 2006, revelou, por outro lado, todo o potencial de
conflito embutido numa religião que pode ser utilizada para fins de
mobilização popular. O que esta questão revela é, sobretudo, a
intolerância total em relação a “contestações” do sentimento religioso
dos seguidores do profeta: mesmo os incréus são passíveis da “pena de
morte”, na interpretação dos verdadeiros crentes.
Não se trata, aqui, de um “conflito entre civilizações”, como muitos
proclamam, mas simplesmente de um conflito entre “religião” e
“sociedade”, ou seja, de uma dada configuração da estrutura mental das
sociedades islâmicas, que as impede de conciliar, ou mais propriamente
de separar, manifestações de pensamento e expressões da crença. Não há
fissura entre ambas, daí o totalitarismo da palavra se convertendo em
totalitarismo da ação.
Isso se chama intolerância. Ela constitui, no meu modo de ver, uma
das mais poderosas barreiras ao necessário processo de “aggiornamento”
do islamismo, sem o qual ele será incapaz de juntar às correntes
modernas de produção científica e intelectual, ou de oferecer um terreno
seguro para o desenvolvimento de formas de organização políticas mais
democráticas e abertas à inovação e à criatividade individuais. Essa é
uma batalha que vai separar profundamente o islamismo, mas que terá de
ser travada algum dia.
* PAULO ROBERTO DE ALMEIDA
é Doutor em Ciências Sociais, diplomata, autor de vários trabalhos
sobre relações internacionais e política externa do Brasil. Publicado na
REA nº 66, novembro de 2006, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/066/66pra.htm
Fonte: http://espacoacademico.wordpress.com/2012/07/21/sobre-a-intolerancia/
Imagem da Internet
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