Para pesquisador, um novo modelo econômico baseado na conectividade está sendo gerado em plena crise global
O indiano-americano Parag Khanna é um intelectual
peculiar, que alia a sólida bagagem acadêmica à mochila de viagem com
que visita sociedades e culturas sobre as quais escreve. Nas "pesquisas
de campo" que fez por mais de cem países, Khanna - que tem apenas 35
anos - pratica, além de seu hindi nativo, o inglês, francês, alemão e
espanhol que fala com fluência, além de "um árabe básico". E coteja os
conhecimentos adquiridos em seu doutorado na London School of Economics e
em seu mestrado na School of Foreign Service da Universidade Georgetown
com as informações sutis de um futuro ainda em gestação no mundo.
Não é difícil entender por que esse "acadêmico aventureiro", como já
foi chamado pela imprensa norte-americana, define a si próprio como um
geoestrategista. Pesquisador sênior e diretor da Iniciativa de
Governança Global da New America Foundation e membro do European Council
on Foreign Relations, Khanna foi recrutado como conselheiro pelas
Forças Armadas dos EUA na tentativa de desatar o nó das campanhas
militares no Iraque e no Afeganistão. E integrou, como consultor para
assuntos de política externa, a equipe da campanha vitoriosa de Obama à
presidência.
Com dois livros publicados no Brasil pela editora Intrínseca, O
Segundo Mundo - Impérios e Influência na Nova Ordem Global (2008) e Como
Governar o Mundo - Os Caminhos para o Novo Renascimento (2011), ele
acaba de lançar nos EUA, em parceria com sua mulher Ayesha (economista e
doutora em Sistemas de Informação pela London School), Hybrid Reality. A
trilogia consolida sua visão de um mundo dominado por três grandes
impérios, os EUA, a União Europeia (UE) e a China, mas cujos parâmetros
de desenvolvimento foram modificados pela velocidade das trocas
tecnológicas em uma era de conectividade global.
Na entrevista a seguir, o pensador, eleito uma das 75 "pessoas mais
influentes do século 21" pela revista Esquire, vê o mundo convulsionado
pela mais violenta crise econômica desde o pós-guerra com lentes
voltadas para o que vem depois. "Esta não é uma crise global", sentencia
sem medo Parag Khanna, para quem, apesar dos efeitos no até então
intocado motor dos Brics, a China revela em sua resiliência que os
chamados mercados emergentes vieram para ficar. E que a transformação em
curso, na direção de uma "Era Híbrida" de seres humanos cada vez mais
conectados entre si e com as máquinas, vai subverter consideravelmente a
hierarquia de poder global.
"A tecnologia dirige a economia, não o contrário", provoca o
acadêmico aventureiro, que vê no novo cenário não só um potencial de
recuperação dos países ricos, como um universo de novas possibilidades
para os países em desenvolvimento, entre eles o Brasil. Eis a nota
otimista do diagnóstico que Khanna faz da crise a que assistimos hoje,
contra a qual pouco adiantam os velhos mecanismos de fomento econômico e
de nada vale a emulação nostálgica do antigo sonho americano: "A imensa
inovação em curso nas tecnologias da informação, na biotecnologia,
nanotecnologia, robótica, nas fontes de energia alternativas, está
criando possibilidades econômicas para muito mais gente no mundo que em
qualquer outra época".
O PIB chinês desacelerou, a Itália segue a Espanha no pedido
de ajuda à UE e a economia americana continua na lona. O que esperar do
mundo neste início de século 21?
Conforme escrevi em O Segundo Mundo há alguns anos, o mundo no século
21 será sustentado por três grandes impérios - os EUA, a União Europeia
e a China. Isso não significa, no entanto, que cada um desses três não
seja frágil. A retomada americana é muito dependente de estímulos
econômicos e do potencial de descobertas de reservas de gás de xisto
baratas. A UE nem se recuperando está, embora a crise econômica esteja
forçando o bloco a tomar medidas necessárias e progressivas na direção
de uma união mais forte. Já a China é considerada um pesadelo
estatístico, com dados econômicos nos quais não se pode confiar, mas não
acredito que vá ocorrer uma "aterrissagem forçada". A desaceleração do
crescimento em função do comércio externo do país será compensada pelo
crescente número de chineses que entram no mercado de consumo e na
classe média. Mantendo a inflação controlada e a moeda fraca, a China
será capaz de manter seu crescente progresso material enquanto retoma a
competitividade no comércio exterior. Continuo acreditando que os três
serão as superpotências mundiais no século 21, e não ainda a Índia, por
exemplo.
Quando o economista Jim O’Neill cunhou, em 2001, a expressão
Brics, anunciando a transferência do poder econômico global do G7 para
os países emergentes, não podia adivinhar o impacto que teria a crise
financeira de 2008, seguida por essa que se abateu sobre a zona do euro.
O tranco pode inviabilizar os países emergentes?
O termo Brics surgiu de uma expressão crucial: mercados emergentes. A
categoria "mercados emergentes" é bem mais ampla e compreende muito do
que eu chamo de "segundo mundo". Por ser tão aberta e conter trajetórias
tão diferentes, é difícil resumi-la em uma frase. Mas a ideia sugeria
desde o princípio que certos países tenderiam a emergir, como o Brasil e
a Malásia, enquanto outros iriam fatalmente cambalear, como a Venezuela
e a Líbia. E o fato é que, neste exato momento, os mercados emergentes
têm feito um bom trabalho para amenizar os efeitos da crise financeira
de 2008 e da crise na zona do euro. Eles continuam a crescer, embora
mais modestamente. Existe neles um certo grau de descolamento, que vejo
como um forte sinal da emergência desses mercados e de um outro padrão
de investimentos.
No Brasil, a desaceleração da previsão do PIB para este ano
causa grande preocupação. Ainda mais levando em conta os problemas da
China, tida como 'motor' dos Brics...
De novo, essa não é uma crise global, embora todos os países tenham
fatores de risco com que se preocupar. O fato de a economia chinesa
estar desacelerando não deveria espantar ninguém, tendo em vista as
taxas de crescimento que o país apresentou nas últimas três décadas. E o
fato de a China ainda exibir taxas bastante distintas das americanas e
europeias mostra quanto o país foi capaz de estreitar laços com outras
regiões, como a África, o Oriente Médio e a América Latina, e manter em
bom nível suas exportações.
A crítica às políticas de austeridade para combater a crise
têm crescido na Europa, especialmente após a vitória de François
Hollande na França. Em uma região onde 4,5 milhões de pessoas deverão
perder seus empregos nos próximos quatro anos, segundo a Organização
Internacional do Trabalho (OIT), austeridade é a solução?
Austeridade e disciplina são coisas diferentes. Eu acredito na
disciplina, mas não em austeridade em contexto de desemprego tão alto.
Mas essa disciplina de que estou falando requer visão estratégica para
os próximos anos, o que os países periféricos da zona do euro ainda não
demonstraram.
Apesar disso, a leitura de Hybrid Reality transparece
otimismo. O que o sr. e sua mulher, que também assina o livro, estão
vendo que ninguém mais parece estar?
Estamos olhando não para questões de crescimento econômico no curto
prazo, mas para as trocas e rupturas tecnológicas de médio e longo
prazo. A tecnologia dirige a economia, não o contrário. A imensa
inovação que está em curso nas tecnologias da informação, na
biotecnologia, nanotecnologia, robótica, nas fontes de energia
alternativas e em outras áreas - e na combinação de todos esses campos -
está criando novas possibilidades econômicas para muito mais gente no
mundo do que em qualquer outra época. Ao contrário do que se pensa, a
tecnologia tem criado de longe muito mais empregos do que destruído.
Por que o sr. diz que a civilização humana necessita hoje
menos de QI (quociente de inteligência) e QE (quociente emocional) do
que de QT, quociente tecnológico?
Porque a tecnologia está evoluindo e se espraiando rapidamente no
mundo. O que distingue as sociedades hoje não é tanto a renda ou o
sistema político, mas o grau de acesso e domínio da tecnologia. As
sociedades que estiverem à frente da curva tecnológica e educarem suas
populações a permanecerem empregadas em um ambiente globalmente
competitivo vão permanecer estáveis e prósperas. O que requer quociente
tecnológico, a capacidade de se adaptar à mudança tecnológica, não
apenas a uma rotina conhecida.
Mas em um mundo economicamente tão desigual é possível
acreditar nisso? Ou o que o sr. chama de 'Era Híbrida' chegará apenas
para uns poucos e privilegiados países?
A Era Híbrida está chegando para todos. Aqui está o mais simples e
profundo exemplo: os trabalhadores chineses, que formaram o "chão de
fábrica" global, estão agora ameaçados pela automação robótica. A
FoxConn (companhia chinesa responsável pela montagem de produtos de alta
tecnologia, como iPhones e iPads) planeja introduzir mais de 1 milhão
de robôs em suas fábricas. E também este fato: o celular é a
infraestrutura mais penetrante e disseminada da história da humanidade.
Em dez anos, todas as pessoas na Terra terão um aparelho celular. Em
cima dessa rede, poderão ser desenvolvidas outras tecnologias, como
contas bancárias via celular e telemedicina. Esses são fenômenos do que
chamamos de Era Híbrida - algo que atinge tanto os mais ricos do mundo,
que terão acesso a órgãos artificiais e todo o tipo de privilégios
futuristas, quanto os mais pobres.
Mas para os pobres não seria apenas um modo mais sofisticado
de consumir produtos produzidos em nações ricas? É difícil imaginar o
cidadão de um rincão longínquo da África ou da América Latina tomando
parte ativa nessa nova economia tecnológica globalizada de que o sr.
fala.
Na verdade, as vendas de produtos que mais crescem na África hoje são
de bens de baixo custo oriundos da China e da Índia. Então, você pode
perceber como são importantes hoje os fluxos entre países em
desenvolvimento - mais do que de países "ricos" para "pobres". Além
disso, muita inovação tem surgido nos emergentes, como os celulares
movidos a energia solar, por exemplo. Sem falar no fato de que
tecnologias como o tablet estão difundindo rapidamente a literatura em
países como Ruanda e Camboja. Então, a Era Híbrida também tem o
potencial de reverter as dinâmicas hierárquicas de dominância econômica
ocidental.
O sr. foi consultor da campanha presidencial de Barack Obama. Como avalia o desempenho dele até agora?
Esses quatro anos, evidentemente, foram uma decepção. Foi um mandato
que passou rapidamente, deixando um pequeno progresso na saúde
financeira do país e pouco - ou nenhum, eu diria - sucesso na política
externa. Claro que as condições em que ele assumiu foram terríveis,
quase as piores imagináveis.
Acha que Obama será reeleito?
Espero que seja, mas que sua performance dessa vez seja melhor, e seu
governo, capaz de formular políticas de longo prazo mais criativas e
eficazes. A administração Obama ainda carece de uma grande estratégia, o
que é especialmente problemático em relação à política externa.
Em um livro recentemente lançado no Brasil, Éramos Nós - A
Crise Americana e como Resolvê-la, o jornalista Thomas Friedman e o
professor Michael Mandelbaum lamentam o fim do 'sonho americano' mas
acreditam que o sistema político do país será capaz de retomar seu peso
histórico. O sr. concorda?
Eu já refutava esse argumento no Segundo Mundo. Não podemos
simplesmente esperar por uma renovação geracional baseada nas conquistas
do pós-guerra na metade do século 20. Ela não vai ocorrer. O que
precisamos é de um consenso político e de políticas de investimento
doméstico sensatas. Isso não está acontecendo. Eu prefiro uma mudança
substantiva ao apego a esse tipo de nostalgia.
E até que ponto potências tradicionais e emergentes, como os
EUA, a Índia e a China, por exemplo, estão preparadas para essa nova era
de conectividade e inovação compartilhada que o sr. antevê?
Não há uma resposta comum na preparação de nações tão diversas.
Ayesha e eu chamamos essa capacidade de se adaptar às novas tecnologias
de "technik". Os EUA são grandes inovadores e criadores de tecnologias,
mas estão ficando para trás na difusão de penetração de internet de
banda larga no país e também na educação científica dos jovens. A Índia,
embora muito pobre, tem leis sofisticadas no que diz respeito ao
"direito à informação" que demonstram uma impressionante technik.
E o Brasil? O que deve fazer para garantir uma boa inserção nessa nova era?
O Brasil está diversificando sua economia e investindo em energias
alternativas, biotecnologia e outras áreas. Avanços já são visíveis na
agricultura, em alguns setores manufatureiros, na área da construção
civil e no turismo. Tudo isso é importante para impulsionar o emprego e
aperfeiçoar a infraestrutura do país. Sem uma boa infraestrutura é bem
mais difícil absorver as novas tecnologias sistematicamente, como será
necessário. Essa é uma estratégia inteligente na escalada aos
setores-chave de liderança no futuro. Sem exagero, vejo o Brasil em
condições de igualdade de poder com os EUA na Era Híbrida.
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Reportagem por: Ivan Marsiglia, de O Estado de S. Paulo
Fonte: Estadão on line, 14/07/2012
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