sexta-feira, 20 de julho de 2012

O perigo da proximidade com os escritores

Miguel Sanches Neto*
Transformado em personalidade, o escritor atrai a atenção de leitores que se colocam no papel de fãs. O convívio com quem escreve apresenta, no entanto, alguns perigos. O principal deles é o de se ver transformado num personagem, indo parar nas páginas abertas do próximo livro do autor. São comuns contos e romances em que gente próxima dos criadores identifica aspectos de sua personalidade e situações íntimas devassados pelas ferramentas impiedosas da ficção.
Nesses casos, a primeira acusação que se faz é de que o escritor não foi ético, rompeu com os códigos de relacionamento e amizade. Pedir que o escritor não lance mão do material colhido nos embates com o mundo é o mesmo que pedir que ele não escreva. O escritor autêntico é um ser condenado à sua arte e age na vida como se estivesse no âmbito da ficção. O lado de fora existe na medida em que alimenta o lado de dentro, espaço em que ele cumpre uma condenação eterna.
Em depoimento a Luiz Vilela ("Jornal da Tarde", 6/7/1968), o contista paranaense Dalton Trevisan explica o seu processo de criação, assumindo de forma resignada a natureza do escritor. Para não negar a sua vocação, o ficcionista tem que se valer das confissões que lhe são feitas. É um procedimento invertido: o escritor trai para não se trair. Trevisan chama isso de "má consciência", deixando implícito que sem ela não há arte verdadeira:
"O escritor é uma pessoa que não merece nenhuma confiança. Um amigo chega e me conta as maiores dores; eu escuto com atenção, mas estou é colhendo material para mais um conto. E eu sei disso na hora. Surge então a má consciência. Sei que estou fazendo assim e não desejaria fazer, mas não há outro jeito. O escritor é um ser maldito".
O escritor é o profissional que se apropria indevidamente de histórias, não reconhecendo limites para o seu trabalho. O Outro é uma reserva narrativa, que deve ser incorporada à obra. Escrever funciona como um assalto à vida, não sendo possível pedir permissão para compreender a condição humana. Ao publicar "A Faca no Coração" (Civilização Brasileira, 1975), Trevisan reelabora essa confissão feita a Vilela, estampando na orelha do livro, numa pequena arte da escrita, um tópico sobre o tema: "Vampiro, sim, de almas. Espião dos corações solitários. Escorpião de bote armado, eis o contista". Espionar toda e qualquer pessoa é a tarefa do escritor que se move por um desejo de desvendar o outro e de se desvendar. O contista está sempre preparado para o ataque, em sua natureza de "monstro moral" - para usar as palavras de Trevisan.
A literatura parte, assim, desses vínculos biográficos, que a potencializam e lhe dão um funcionamento próximo do real. Ao estabelecer amizade com um escritor, nasce automaticamente um pacto de que esse convívio é, desde o início, um laboratório, no qual estão sendo desenvolvidas novas histórias. Um casamento, um namoro ou uma situação de trabalho ou de companheirismo, tudo enfim que force um contato mais verdadeiro e intenso é matéria de ficção para o escritor, que se sente autorizado a fazer um uso narrativo do Outro. Assim, ao nos aproximarmos de um ficcionista estamos aceitando alimentar o seu mundo, entrando nele não com a imagem que temos de nós mesmos, mas com uma imagem nossa que ele construiu.
Os personagens obtidos dessa forma são, no entanto, invariavelmente menores do que as pessoas reais que lhes deram origem. Não remetem diretamente a quem existe ou existiu no plano histórico. Ao vampirizar alguém que lhe era próximo, o escritor está escolhendo uma imagem dele, aquela que é possível a partir de um dado mirante. O ser biográfico, na sua variedade de eus, de estados de alma e de faces, nunca será totalmente apreendido, fugindo a qualquer percepção literária, por mais fiel que ela seja. Ao passar do plano da existência para o plano da expressão artística há a fixação de uma identidade que, viva e contraditória, se movia dentro de uma multiplicidade de opções. O estabelecimento de um personagem criado à imagem e semelhança de um ser real petrifica uma das faces, na maioria das vezes exagerando-a, pois a representação literária de personalidades tende para a caricatura.
Isso aconteceu com João do Rio (1881-1921) e com Coelho Neto (1864-1934), que, transportados para os domínios da ficção por Lima Barreto (1881-1922), em "Recordações do Escrivão Isaías Caminha", aparecem em traços toscos e cores fortes. João do Rio é retratado como Raul Gusmão, um animal das letras: "uma desencontrada mistura de porco e de símio adiantado", que não falava, mas guinchava. Lima Barreto insiste na zoomorfização: "uma fisionomia de porco Yorkshire" e "corpo alentado de elefante indiano". Há uma impiedade nessa descrição que transforma o ser humano em charge. Igualmente implacável é a descrição que faz de Coelho Neto. Este figura no romance como Veiga Filho, um escritor marcado pela vaidade física e estilística.
Nem todo escritor vai abusar tanto de tal recurso, mas todos captam apenas uma das faces do modelo. Assim, os personagens nunca remetem totalmente às pessoas que lhe deram origem, pois funcionam dentro de uma lógica narrativa, sofrendo intensificações ou alterações necessárias para a verossimilhança interna da obra.
A pessoa que se encontra espelhada num conto, poema ou romance deve ter sempre duas coisas em mente: ao se relacionar com o escritor estava tacitamente concordando com o uso de elementos de sua biografia para fins literários; aquela versão sua que foi cristalizada no livro não passa de uma interpretação ou de uma fração de si próprio.
Quando lançou o romance "Ravelstein" (2000), Saul Bellow foi acusado de inescrupuloso por basear um personagem em seu amigo íntimo Allan Bloom, fazendo uma leitura crítica dele. Bellow, que sabia das coisas, disse que, por mais que um reenviasse ao outro, o seu romance não revelava a vida íntima do amigo, mas os seus sentimentos a respeito dele. Ou seja, toda escrita é construção, mesmo a mais mimética.
A melhor postura quando alguém se encontra retratado pela lente deformada de um livro literário é aceitar o jogo. Foi essa a opção do escritor e publicitário paranaense Jamil Snege em suas memórias irreverentes: "Como Eu Se Fiz por Si Mesmo" (Curitiba, 1994). Dalton Trevisan, com quem ele convivera durante um tempo, usara-o num conto. Outros amigos dele passaram pelo mesmo processo. Snege não perde a graça e confessa, sentindo orgulho e ao mesmo tempo repelindo a identidade que ganhara no livro:
"Quando saiu 'O Pássaro de Cinco Asas' [coletânea de contos de Trevisan], corremos a identificar os personagens. Negrinho [o cronista Carlos Alberto Pessoa], herói principal, era o personagem-título. Fábio Campana contentou-se com 'O Gatinho Perneta' e a mim coube o 'Eu, Bicha'; Ali Chaim diluía-se aqui e ali, e foi visível seu desapontamento. Em retribuição, torturamos o vampiro com a notícia de que um notório brigão da cidade, identificando-se num dos contos, prometia ir à forra. Foi o mesmo que dentes de alho; por uns tempos Dalton sumiu (pág.183)".
Ao se enxergar no conto de Dalton Trevisan, Snege aceitou o jogo, vendo a coisa com humor. Irônico, ele reconhecia no outro o direito de olhá-lo corrosivamente, pagando-o na mesma moeda ao espalhar um boato.
O que aparece nos domínios da literatura só tem valor como literatura, não servindo jamais como verdade sobre pessoas reais.
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* Miguel Sanches Neto é autor, entre outros, dos romances "Chove sobre Minha Infância" e "Chá das Cinco com o Vampiro". Seu livro de contos "Então Você Quer Ser Escritor?" é um dos finalistas do Prêmio Portugal Telecom deste ano.
Fonte: Valor Econômico on line, 20/07/2012

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