Paulo Ghiraldelli Jr.*
O
filósofo italiano Giorgio Agamben escreve: “a arte de viver é (…) a
capacidade de nos mantermos numa relação harmoniosa com aquilo que nos
escapa”.[1]
À primeira vista, trata-se de uma fórmula enigmática. Mas não é.
Agamben explica que o conhecimento parece ter necessidade de um
pressuposto, que é a existência de um campo no qual reina o que não é
conhecido, um centro do qual emana a ignorância. Sem esse lugar da
ignorância, como poderíamos falar de um espaço preenchido de
conhecimento. O conhecimento então é conhecimento do conhecido e
concomitantemente um saber do que se pode pressupor como existente,
embora um campo cheio do que nada sabemos ou ainda não sabemos.
Ah! Mas como é difícil rapidamente
deixar a harmonia de lado e acreditar que o campo do conhecimento,
sozinho, é o que importa, e o que nos escapa é algo de menos valor.
Podemos escapar disso e encontrar a harmonia entre ambos os campos, em
favor da “arte de viver” de Agamben?
Na história da filosofia a relação entre Platão e Sócrates faz-me entender Agamben, mesmo que por uma via não indicada por ele.
Sócrates passou uma vida fazendo
questões que não foram respondidas. As respostas, como não vinham,
alimentavam o campo da ignorância. Ele perguntava, por exemplo, “o que é
a coragem?”, e o que se pedia não vinha. Os interlocutores davam
exemplos, relatando atos corajosos. Falam historicamente e não
filosoficamente. A “natureza mesma da coragem”, pedida por Sócrates
literalmente, definia um campo de ignorância. Poder-se-ia saber muitas
coisas e ter como alguma coisa conhecida à medida que se soubesse o que
era não saber alguma coisa, por exemplo, não saber o que é a coragem.
Ora, talvez temeroso de ver seu mestre igualado aos sofistas pela
consciência popular, em determinado momento Platão quis romper com esse
limite de Sócrates. Em uma dada altura de seus escritos quis um Sócrates
que dissesse que a coragem era a Coragem, a forma Coragem, o eidos
existente em um campo que já não era o da ignorância, mas o campo em
que a forma Coragem sempre compartilhou com as outras formas – matrizes
epistemológicas e ontológicas supra-sensíveis do existente no mundo
sensível.
Platão quebrou com a harmonia necessária
à “arte de viver”. Platão destituiu de seu status relativamente
igualitário o campo do qual emanava a ignorância, transformando-o em um
lugar de fonte do saber real, justamente o lugar em que, o que não se
poderia ter mesmo era um tiquinho de produção de ignorância. A
ignorância, então, ganhou o caráter de falta, carência, defeito ou mesmo
produto do erro ou da ilusão – a opinião, então oposta ao conhecimento.
Enquanto Sócrates reinou em Atenas, o
erro não era uma falta em si (ainda que o desconhecimento intelectual
fosse responsável pela falta moral), mas a indicação de que de um lado
havia o conhecimento e de outro um campo em relação aos quais vários
emudeciam, o campo produtor da ignorância. A “arte do viver” era
equilibrar-se entre saber e não saber. Sócrates não separava filosofia e
vida, ou seja, ele inquiria todos procurando o saber que viria das
respostas, isso era sua arte de viver e seu filosofar. Era o todo de sua
vida. Sócrates nunca disse que só sabia que nada sabia. Ele disse que
em relação às perguntas que fazia, ele não sabia a resposta. Mas sabia
muito bem o que não sabia, então, sabia algo: sabia o tanto que era
necessário para continuar a perguntar, a filosofar, a exercer a “arte do
viver”. Ele tinha uma relação altamente inquietante entre saber e
não-saber, mas jamais uma relação não harmoniosa.
Sócrates era pobre, feio e plebeu, no
entanto, espalhava harmonia em sua “arte de viver”. Platão era rico,
nobre e belo, mas, durante um tempo, não conseguiu viver harmoniosamente
e, segundo o que se pode inferir de alguns historiadores helenistas e
filósofos (de certo modo, a tese Vlastos-Davidson à frente), ao final da
vida se arrependeu e tentou voltar a ser socrático.[2] Tentou voltar a acreditar que manter-se com o elenkhós,
o método da refutação, e suportar as aporias, não era um negócio ruim,
ao contrário, era bom à medida que era o possível dentro de uma razoável
“arte de viver”. Arrisco dizer que Platão chegou a perceber que aí
cabia uma harmonia que ele havia perdido ou havia desprezado. Ao fim e
ao cabo, Platão teria, ao final da vida, abandonado o platonismo, se
tomamos este como a confiança no Mundo da Formas como mecanismo para dar
respostas às perguntas socráticas. Uma vez mais velho, ele teria,
então, se voltado para a retomada de diálogos problematizadores e
refutadores, até de si mesmo.
A “arte de viver”, no lema de Agamben,
não é aceitar a ignorância. Longe dele a resignação do tipo “há ali um
campo misterioso” e inexpugnável que deve ser idolatrado ou mistificado.
A “arte de viver” não é isso, pois a harmonia de duas coisas não é
simplesmente o aceitar de uma ou das duas. Harmonia é ter certo que dois
campos podem se relacionar e devem se relacionar sem que um elimine o
outro com bofetadas ou até mesmo com beijos sedutores ou o subsuma com
discursos laudatórios. Sócrates não voltava para casa contente por não
ter obtido respostas ao que perguntava, dizendo então que o campo da
ignorância havia sido aceito. Ele voltava para casa contente, às vezes,
quando via que ao não ter conseguido resposta, também não havia perdido
as respostas que já possuía e nem se via impedido de colocar as mesmas
perguntas, ou semelhantes, novamente.
Hannah Arendt nos lembra da necessidade
que Sócrates sempre teve de concordar com aquele que vivia consigo, lá
na sua casa. Este “aquele” nada seria senão alguém que nós, do nosso
ponto de vista moderno, dizemos que seria ele próprio, Sócrates. O
problema que Sócrates se punha era o da impossibilidade de viver com
alguém, ele próprio, que não concordava com o que ele pensava e fazia.
Manter-se assim, de modo possível e harmonioso no “dois em um”[3],
era uma forma de harmonia e, de certo modo, de exercer uma boa “arte de
viver”. O “dois em um” aparecia nos momentos em que o diálogo já não
era com alguém exterior, mas aquilo que Platão chamava de uma “conversa
silenciosa” interior à alma. Nesse sentido, Sócrates dizia mais ou menos
assim: o que sei é, então, o que procuro refutar em mim para ver se sei
mesmo e para me certificar que se sustenta como crença, ou se, diante
de mecanismos de negação, vão me escapar. Essa é a regra da atividade do
“dois em um”. Não posso falhar nisso, porque o que sei e acredito não
pode ser desprezado como mera opinião, uma vez que moral é conhecimento.
Quando não sei, erro, e erro moralmente; ora, como conviver com alguém,
em nossa própria casa (nossa alma), que comete erros que não
suportamos. Dormir sob o mesmo teto, por exemplo, com um assassino, não é
algo bem incômodo?
Talvez essa atividade tão corriqueira
que nos é exigida por estarmos vivos seja uma das mais difíceis: ter uma
“arte de viver”. Como ter uma “arte de viver” e exercê-la se isso
depende cotidianamente de mantermos os campos do saber e da ignorância
sem que um colonize o outro? Fazer isso pressupõe não tomarmos o
conhecimento como rei absoluto e absolutista e o não-conhecimento como
pobre e pecador. O não saber não é plebeu, alguém pobre que, não raro,
vai acabar fazendo alguma oposição ao rei ou à ordem (o que dá no mesmo)
e, então, ser decapitado. O não saber não é pecador, alguém insensato
que vai errar sabendo que assim o rei o punirá com a pena de morte e a
própria sociedade salgará suas terras e amaldiçoará sua família até sei
lá quantas gerações. Nada disso! O campo do não-saber pode muito bem ser
apenas pressuposto para que o campo do saber seja o campo do saber. Uma
educação baseada nesse tipo de ética ou de “arte do viver” pararia de
fazer a apologia do acerto pelo acerto nas salas de aula, mas o tomaria,
de modo melhor, como o que só tem sua existência pelo não-acerto, o
erro, o desconhecimento, o que nos escapa.
Se a sala de aula quer ter alguma coisa a
ver com a vida, no sentido da vida que quem a vive é quem precisa de
uma “arte do viver”, ela tem de dar um estatuto ao não saber, ao que nos
escapa, ao erro inclusive.
[1] Agamben, G. Nudez. Lisboa: Relógio d’Água, 2010.
[2] Ver Ghiraldelli Jr., P. A aventura da filosofia. Barueri-SP: Manole, 2011; e também Ghiraldelli Jr., P. Dossiê Platão. São Paulo: Universo dos Livros. 2010.
[3] Ver o capítulo sobre Sócrates em Arendt, H. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
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* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ. Agora também como cartunista no http://gametas.blogspot.com
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/07/25/a-arte-de-viver-voce-a-conhece/
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